Em 9 de março de 2020, a Mongabay publicou um comentário escrito por Philip M. Fearnside sobre o Estudo Ambiental da Área Sedimentar do Solimões, projeto de petróleo e gás que implantaria milhares de poços na porção oeste do Amazonas – área florestal praticamente intacta devido à falta de acesso rodoviário. Segundo o comentário, o projeto traria muitos riscos para a região: derramamentos de petróleo, impacto em tribos indígenas isoladas e desmatamento devido à expansão de uma rede de estradas.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) enviou uma resposta à Mongabay em 27 de março de 2020 (publicado abaixo), alegando “erros conceituais”. Argumenta, entre outros pontos, que o principal objetivo do projeto Solimões é avaliar cenários futuros para um potencial sistema de exploração de petróleo e gás na área, e não uma implementação de fato desse sistema. O escritório também menciona o processo participativo no qual as comunidades locais estavam supostamente envolvidas e, com relação ao risco de desmatamento, refuta dizendo que esse tipo de operação é realizado principalmente por via aérea ou rios navegáveis.
Como réplica à resposta da EPE, também publicada aqui, Fearnside ressalta que o projeto é um “balão de ensaio” para avaliar as críticas que surgirão, de modo que os autores do estudo de impacto possam estar mais preparados para garantir a aprovação das licenças ambientais. Além disso, Fearnside enfatiza que a abertura de uma nova fronteira na Amazônia pode estimular o governo a construir estradas e atrair outras atividades ligadas ao desmatamento, como exploração madeireira, grilagem e produção de óleo de palma.
Comentário da Empresa de Pesquisa Energética em resposta ao comentário de Philip Fearnside publicado em 25 de março de 2020
Estudo ambiental estratégico de petróleo e gás natural como ferramenta de mitigação de conflitos na Amazônia
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) é uma instituição pública que possui o papel de desenvolver estudos que dão suporte ao planejamento energético nacional (http://www.epe.gov.br/pt), conduzido pelo Ministério de Minas e Energia. Seus estudos nas áreas de engenharia, economia, meio ambiente e sociedade contribuem para prever a demanda por energia nos próximos dez (http://epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/plano-decenal-de-expansao-de-energia-pde) e 30 anos (http://epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/plano-nacional-de-energia-pne) e a infraestrutura necessária para atendê-la (usinas de geração elétrica, linhas de transmissão, produção de petróleo e gás natural e dutos), de forma a minimizar os custos e os impactos da matriz energética (para saber mais sobre energia, acesse www.epe.gov.br/pt/abcdenergia).
Dentre esses estudos, está o Estudo Ambiental da Área Sedimentar do Solimões (EAAS Solimões) (http://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/estudo-ambiental-de-area-sedimentar-do-solimoes), objeto de comentário no artigo “Os riscos do projeto de gás e petróleo na ‘Área Sedimentar do Solimões’” (12 de março de 2020 por Philip Fearnside). Diante de equívocos conceituais contidos naquele comentário que podem resultar em ruídos na geração de conhecimento crítico da sociedade, a equipe da EPE envolvida no EAAS Solimões preparou o presente texto para elucidar as informações que concernem o estudo e sobre as atividades de petróleo e gás natural na região.
- O Estudo Ambiental da Área Sedimentar do Solimões se coaduna ao conceito de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) e não ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA)
Há diferenças marcantes entre esses dois tipos de estudos, tanto em escopo quanto enquadramento legal. O EIA é um estudo requerido para obtenção de uma licença ambiental prévia, ou seja, é um estudo com escala de projeto que considera as características socioambientais específicas do local onde se pretende instalar o empreendimento ou desenvolver a atividade e o desenho/cronograma do projeto. A AAE possui uma análise territorial bem mais abrangente, que busca refletir sobre estratégias de políticas públicas para o desenvolvimento regional e tem como objetivo contribuir para o processo de tomada de decisão, antecipando discussões, com embasamento técnico, e reduzindo conflitos que poderiam surgir durante o licenciamento ambiental. Neste sentido, o EAAS Solimões se assemelha a uma AAE, representando uma ferramenta de avaliação ambiental em escala estratégica e uma conquista na articulação dos setores socioambiental e energético no Brasil. Outros países elaboram AAEs regularmente, como o Reino Unido (https://www.gov.uk/government/collections/strategic-environmental-assessments) e Portugal (https://apambiente.pt/index.php?ref=17&subref=147), seguindo Diretiva da Comissão Europeia (Directive 2001/42/EC – https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/ALL/?uri=CELEX%3A32001L0042).
Ferramentas como esta se enquadram inclusive no que o próprio autor colocou como necessário em um dos textos citados “Most importantly, fundamental changes are needed in the decision-making process to arrive at rational decisions on oil development (or on any other form of development). These decisions need to be made with information on environmental and social impacts in hand and with institutional mechanisms for democratic discussion of the issues involved before (ênfase no original) the decision to implement a project is made in practice” (Azevedo-Santos, V.M., J.R. Garcia-Ayala, P.M. Fearnside, F.A. Esteves, F.M. Pelicice, W.F. Laurance, R.C. Benine. 2016. Amazon aquatic biodiversity imperiled by oil spills. Biodiversity and Conservation 25(13): 2831–2834.)
Portanto, diante das diferenças entre AAE e EIA, é equivocado afirmar que o EAAS Solimões autoriza ou implanta projetos ou atividades de petróleo e gás natural. Da mesma forma, é incorreto mencionar o EAAS Solimões como “um projeto de petróleo e gás que implantaria milhares de poços” e nem tampouco se trata de um “gigantesco projeto de exploração de gás e petróleo”. O EAAS Solimões não é um projeto, não “implanta poços” ou “visa milhares de perfurações”. Qualquer nova atividade petrolífera na região necessitará de um processo de licenciamento ambiental para obter as licenças ambientais, de acordo com a legislação federal e estadual.
Os principais objetivos do EAAS Solimões são: a) mapear áreas aptas, não aptas e em moratória a eventuais futuras atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural na área com maior potencial petrolífero da bacia sedimentar do Solimões (bacia efetiva), e b) elaborar diretrizes institucionais, recomendações ao licenciamento ambiental, e planos de ação para aprimorar a gestão socioambiental da região e o desenvolvimento sustentável.
Com esse propósito e como um estudo estratégico, o EAAS Solimões empregou diferentes técnicas de previsão e avaliação. A análise de cenários foi uma delas, que permitiu prever e comparar diferentes possíveis cenários futuros, levando em conta: tendências sociais e econômicas da região; capacidade técnica e tecnológica do setor de petróleo e gás natural e a atratividade da região para o setor. Outra técnica relevante utilizada foi a sobreposição de mapas: com ferramentas de geoprocessamento, foi possível mapear áreas de sensibilidade ambiental e social. Além disso, foram realizadas entrevistas e oficinas com representantes de grupos de atores na região, consulta pública, além de outras.
Para mais informações sobre o potencial de petróleo e gás natural no Brasil, acesse o Zoneamento Nacional de Óleo e Gás (http://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/zoneamento-nacional-de-recursos-de-oleo-e-gas).
- Exploração e produção de petróleo e gás natural terrestre
O comentário supracitado apresentou cópia de uma figura do estudo, alegando que esta apontava os locais futuros para perfuração de poços. No entanto, tal mapa, reexibido ao lado, apresenta linhas sísmicas, conforme escrito na figura original (“Sísmica 2D”) e não “locais para futuras perfurações”, como afirmado pelo autor. A pesquisa sísmica é um dos métodos usados para avaliar onde é possível encontrar um reservatório de petróleo e gás natural no subsolo. Ela permite entender as características geológicas por produzir ondas sísmicas que são refletidas diferentemente por camadas rochosas diversas. Os diferentes sinais são interpretados à busca de características geológicas que favoreçam a existência de petróleo ou gás natural. A partir dos resultados da pesquisa sísmica, as empresas decidem onde perfurar um poço exploratório, reduzindo, assim, os riscos econômicos da atividade. As linhas verdes mostram onde esses dados sísmicos já foram obtidos na bacia do Solimões.
Como demonstrado na Figura 1, é necessário um longo processo para iniciar a produção de petróleo e gás natural. Destacamos que o EAAS Solimões compõe a fase de planejamento. Após essa fase, áreas selecionadas são ofertadas em rodadas de licitação e, caso uma empresa seja bem sucedida em adquirir alguma dessas áreas, a fase de exploração inicia. Os primeiros poços são exploratórios e ajudam a determinar com maior precisão se existe recurso petrolífero e se o reservatório será economicamente viável. Quando um desses poços se demonstra promissor, a empresa declara sua comercialidade, instala a infraestrutura de produção e perfura os poços de produção.
- Risco de vazamentos de óleo da exploração e produção de petróleo na bacia sedimentar do Solimões é extremamente baixo
Na bacia sedimentar do Solimões, a produção de petróleo tem declinado profundamente (linha verde) e de gás natural tem crescido (linha vermelha) (Figura 2). Com base no potencial dos recursos, os cenários prospectivos do EAAS Solimões preveem principalmente gás natural para os próximos 20 anos.
O comentário mencionou vazamentos de óleo associado a áreas de exploração petrolífera na Amazônia peruana e equatoriana. Pelo que se pôde constatar em notícias sobre esses eventos, eles tiveram origem em acidentes com oleodutos e não os poços de exploração ou produção diretamente. Além disso, o contexto institucional e regulatório naqueles países é diferente do praticado no Brasil.
Na bacia sedimentar do Solimões, o óleo produzido é transferido do campo de produção para um terminal aquaviário pelo poliduto Urucu-Coari (279 km de extensão) e dali é transportado em navios-tanque até a refinaria em Manaus. Todos os dutos terrestres no Brasil seguem as especificações técnicas e de segurança estabelecidas e inspecionadas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP – www.anp.gov.br – Resolução n. 6, 2 de fevereiro de 2011).
Portanto, grandes vazamentos de óleo não são esperados como um risco significativo na bacia do Solimões, uma vez que a produção de petróleo está declinando profundamente e por existirem medidas regulatórias para evitar e lidar com eventuais acidentes.
- Povos indígenas e comunidades tradicionais
Quando o autor do artigo menciona “Os primeiros blocos colocados à disposição para as empresas excluíram os que poderiam ter indígenas isoladas, o que desagradou as empresas”, ele se refere a outra bacia sedimentar, a bacia do Amazonas, que é justaposta à bacia do Solimões, conforme demonstrado na figura a seguir.
Como em ambas as bacias a presença de povos indígenas e comunidades tradicionais é marcante, essa temática foi tratada com cuidado no EAAS Solimões. O estudo incluiu um processo participativo composto por seis fases, sendo duas dedicadas exclusivamente aos povos indígenas e comunidades tradicionais, que também participaram das outras quatro fases, quando tiveram atenção especial, devido ao direito à comunicação adaptada às suas linguagens diferenciadas.
Todo esse processo participativo foi estabelecido para promover a participação e o diálogo e os principais resultados foram a identificação de terras indígenas ainda não reconhecidas oficialmente e o registro das demandas por políticas públicas na região.
A informação coletada por meio da interação com comunidades locais foi adicionada aos dados secundários obtidos na literatura e analisada para estabelecer indicadores de inaptidão, ou seja, fenômenos socioculturais ou ambientais considerados incompatíveis com a exploração e produção de petróleo e gás natural. Tais indicadores estão presentes em áreas que deverão ser evitadas por futuras atividades de petróleo e gás natural (Figura 5): Terras tradicionalmente ocupadas por indígenas (oficialmente reconhecidas e sem providências oficiais – A), Unidades de Conservação (B), Lagos e Várzeas (C).
- O crescimento das atividades de petróleo e gás natural não deverá promover desmatamento intenso nos próximos 20 anos
É possível observar que o desmatamento está principalmente associado ao entorno das maiores cidades da região, o que resulta da carência de investimentos públicos nas áreas rurais ao longo do tempo e da migração populacional para áreas urbanas em busca de oportunidades e melhores condições de vida (Figura 6).
A principal preocupação expressa no comentário em pauta se baseia na hipótese de que as empresas de petróleo e gás abrirão estradas para transportar sua produção e, como consequência, promover um crescimento acentuado do desmatamento na região. Porém, isso não tem sido observado na prática. As atividades atualmente presentes na região são realizadas sob o “modelo plataforma”, no qual a produção é centralizada e a movimentação de equipamentos, insumos e trabalhadores é realizada por via aérea e aquaviária. Adicionalmente, o extenso gasoduto Urucu-Coari-Manaus demandou um processo construtivo muito caro e difícil, por atravessar florestas densas, solos alagados e rios largos. Uma estrada extensa demandaria custos ainda mais altos, que provavelmente incluiriam a necessidade de manutenção frequente devido às chuvas intensas na região. As empresas de petróleo e gás estão cientes de tais dificuldades e tendem a concentrar esforços e investimentos próximo a locais mais propícios a instalar infraestrutura, ou seja, próximo ao extenso gasoduto ou a algum rio navegável.
Sobre a afirmação “na medida em que se expande para centenas de locais, a viabilidade financeira de estradas aumentaria dramaticamente”, é preciso esclarecer que, mesmo o cenário hipotético de maior aumento na atividade petrolífera para os próximos 20 anos estudado no EAAS Solimões prevê somente mais seis novos campos de produção, sendo quatro em áreas já concedidas. Cada campo de produção é um conjunto de vários poços de produção conectados a uma base de produção, onde o petróleo ou o gás natural é pré-processado e preparado para ser transportado. Mesmo que centenas de poços de produção sejam perfurados na bacia do Solimões, não serão simultâneos (veja as atividades de petróleo e gás natural terrestres, item 2). Ainda, não seria técnica ou financeiramente viável transportar petróleo ou gás natural diretamente a partir de cada poço de produção.
Finalmente, o EAAS Solimões tem uma longa história de desenvolvimento, tendo iniciado com a Portaria Interministerial 198/2012, publicada pelos Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente, depois com a concorrência pública e contratação em maio de 2018, pela EPE, de pesquisadores universitários para desenvolver o estudo. Ao longo desses anos, vem sendo acompanhado e supervisionado pelo Comitê Técnico de Acompanhamento do Solimões (CTA Solimões), composto por instituições vinculadas aos dois ministérios. É importante enfatizar que a EPE, bem como as demais instituições governamentais envolvidas com o EAAS Solimões estão constantemente preocupadas com impactos sociais e ambientais associados com as atividades petrolíferas e em como evitá-los e mitigá-los.
O EAAS Solimões está em consulta pública pela internet até o dia 3 de abril de 2020 (http://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/estudo-ambiental-de-area-sedimentar-do-solimoes).
O perigo dos planos do Brasil para gás e petróleo na Amazônia: Resposta à EPE
Por Philip M. Fearnside
É oportuno responder ao comentário intitulado “Estudo ambiental estratégico de petróleo e gás natural como ferramenta de mitigação de conflitos na Amazônia”, enviado a Mongabay pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O comentário da EPE sobre meu texto de 25 de março de 2020 “Projeto de petróleo e gás ameaça último grande bloco de floresta na Amazônia” [1] alega que meu texto “pode resultar em ruídos na geração de conhecimento crítico da sociedade”. O comentário da EPE é revelador justamente diante das ameaças ambientais e sociais que levantei no meu texto.
Me referi ao documento do EAAS Solimões (Estudo Ambiental da Área Sedimentar do Solimões) [2] como uma espécie de “EIA preliminar”, o que descreve a sua função na prática. O comentário da EPE explica que o EAAS Solimões “se assemelha a” uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) e que não é um Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Acredito que, na essência, o EAAS Solimões serve como um “balão de ensaio” para ver quais críticas surgirão, e, assim, preparar os autores do EIA para lidar com eles. O comentário da EPE descreve o objetivo de uma AAE como “reduzindo conflitos que poderiam surgir durante o licenciamento ambiental”, ou seja, em português mais claro, aumentar a aceitação do projeto de exploração para assegurar a aprovação das licenças ambientais. A descrição do EAAS Solimões no título do comentário da EPE como “ferramenta de mitigação de conflitos na Amazônia” seria uma alusão a viabilizar a aprovação, evitando “ruídos” incômodos.
A EPE tem uma grande responsabilidade por ter a função de pensar e sugerir quais são os caminhos mais sensatos para o País na sua área de atuação, no caso, a energia. Isto é fundamentalmente diferente de instâncias executoras, que seguem ordens para implantar uma determinada política pública ou construir uma determinada obra. O comentário da EPE se esquiva dessa responsabilidade, enfatizando que o EAAS Solimões não é um EIA, sugerindo que é o EIA, que virá depois, que vai servir como um escudo para proteger o meio ambiente contra qualquer impacto. A EPE enfatiza que “O EAAS Solimões não é um projeto, não ‘implanta poços’…”. É claro que não chegou a esta fase ainda, mas o EAAS Solimões, sim, faz parte do processo burocrático que leva justamente a essas ações futuras e aos seus impactos associados.
O comentário da EPE diz que o EAAS Solimões fez uma “análise de cenários” levando em conta as “tendências sociais e econômicas da região” e a “atratividade da região para o setor [de petróleo e gás]”. O problema é que esses cenários não incluem a atratividade da região para outros setores, inclusive atores como grileiros [3], sem terras [4], pecuaristas [5], madeireiros (inclusive chineses e malaios) [6] e empresas da Malásia interessadas em plantar dendê [7]. As “tendências sociais e econômicas” de uma região isolada, com uma população de ribeirinhos tradicionais, são totalmente diferentes das tendências em uma fronteira que esteja aberta à entrada de atores externos como esses.
A extensão espacial da exploração futura de petróleo e gás é minimizada no comentário da EPE, enfatizando que as linhas verdes no mapa reproduzido no meu texto são apenas locais de prospecção já realizada por técnicas sísmicas, e não (ainda) por perfuração de poços exploratórios. Mas o mapa demonstra justamente a enorme extensão da iniciativa, fato que não é alterado pelo plano de perfurar poços apenas nos locais mais promissores ao longo das linhas verdes indicadas no mapa.
O comentário minimiza o perigo de derramamentos de petróleo, insinuando que os derramamentos no Peru e Equador não são relevantes porque o “contexto institucional e regulatório naqueles países é diferente do praticado no Brasil”. No entanto, o “contexto institucional e regulatório” no Brasil não oferece tanta garantia contra acidentes, como ficou claro com os desastres de Mariana [8] e Brumadinho [9]. Além disso, o atual governo brasileiro tem realizado um desmonte marcante dos órgãos reguladores e fiscalizadores [10, 11].
Com relação aos povos indígenas e tradicionais, o fato da área onde empresas de petróleo e gás estão querendo permissão para explorar nos territórios de povos isolados se localiza adjacente da “bacia efetiva” tratada no EAAS Solimões não altera a gravidade do quadro. As empresas interessadas na bacia efetiva Solimões incluem companhia estatal russa Rosneft, que é alvo de uma longíssima série de acusações, inclusive um relatório do Greenpeace Rússia em 2018 que indica a empresa como responsável por mais de 10 mil derramamentos de petróleo por ano no mundo (ver [12]). Não é provável que empresas como Rosneft respeitassem os direitos indígenas mais que o mínimo absoluto efetivamente exigido pelo governo brasileiro. Também não é provável que o governo fizesse cumprir as garantias contidas na legislação brasileira, como é demonstrado pela atual falta de consulta de povos indígenas impactados pela rodovia BR-319 [13]. O atual governo brasileiro está empenhado em um esforço abertamente declarado para reduzir as proteções de povos indígenas [14, 15] e para abrir áreas indígenas à entrada de diversos tipos de exploração, inclusive petróleo e gás [16, 17].
Na seção do comentário intitulado “O crescimento das atividades de petróleo e gás natural não deverá promover desmatamento intenso nos próximos 20 anos”, a EPE argumenta que eu havia me baseado “na hipótese de que as empresas de petróleo e gás abrirão estradas para transportar sua produção e, como consequência, promover um crescimento acentuado do desmatamento na região”, e que isto seria economicamente inviável para as empresas e, portanto, não aconteceria. No entanto, meu texto não alega que sejam as próprias empresas de petróleo e gás que construiriam as estradas, nem que o uso das estradas seria para transportar “a produção [de petróleo e gás]”. As estradas são mais prováveis de serem feitas pelo governo, embora podendo responder a um lobby que incluiria as empresas de petróleo e gás. A vantagem para as empresas seria de baratear o transporte de material e pessoal hoje feito por transporte aéreo bastante caro no “modelo plataforma”, como se as bases de exploração fossem plataformas petrolíferas no mar. Caso que forem construídas, não seriam as empresas que iriam “promover” desmatamento, mesmo após o prazo de apenas 20 anos que o titulo da seção afirma que as atividades de petróleo e gás não levariam a “desmatamento intenso”. O desmatamento seria feito por outros atores que não fazem parte dos cenários imaginados no EAAS Solimões.
É notável que o comentário da EPE não contenha nenhuma menção da explicação no meu texto dos graves impactos prováveis em um cenário com abertura de estradas e consequente desmatamento. A área em questão é o último grande bloco de floresta amazônica intacta, e é essencial para serviços ambientais que incluem a manutenção do regime de chuvas em partes do País fora da Amazônia, inclusive o abastecimento de água para a cidade de São Paulo e a geração hidrelétrica nas bacias dos rios Paraná e São Francisco [18]. Manter a capacidade de geração das hidrelétricas existentes no País faz parte das atribuições diretas da EPE. Certamente não há uma prioridade maior para os que planejam os rumos de desenvolvimento no Brasil do que tomar todas as precauções para manter este bloco de floresta intacto. A EPE, como agência que compartilha a responsabilidade para traçar o caminho de desenvolvimento no Brasil, seria omissa em não considerar as consequências de facilitar um projeto de petróleo e gás que implica em riscos desta magnitude.
A EPE conclui lembrando que o EAAS Solimões está aberto para consulta pública até 03 de abril. Antes do prazo original de 19 de março, entreguei uma observação pelo site oficial da consulta alertando para a necessidade de garantir que estradas não sejam feitas. Também levantei esta preocupação oralmente durante a apresentação inicial do EAAS Solimões que foi realizada no Hotel Holiday Inn em Manaus. É claro que a mera afirmação no documento do EAAS Solimões de que não seriam construídas estradas não garante que isto não ocorra. A minha conclusão, de que o perigo da abertura da área para entrada de desmatadores não está sendo considerada no andamento dos planos, está agora ainda mais reforçada pelo comentário enviado à Mongabay pela EPE.
Notas
[1]. Fearnside, P.M. 2020. Oil and gas project threatens Brazil’s last great block of Amazon forest (commentary). Mongabay, 9 March 2020. https://news-mongabay-com.mongabay.com/2020/03/oil-and-gas-project-threatens-brazils-last-great-block-of-amazon-forest-commentary/
[2]. Consórcio PIATAM/COPPETEC & EPE. 2019. Estudo Ambiental de Área Sedimentar na Bacia Terrestre do Solimões: EAAS Preliminar Relatório Técnico destinado à Consulta Pública. Consórcio PIATAM/COPPETEC, Manaus, AM & Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Rio de Janeiro, RJ, Brazil. 497 pp. http://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/estudoambiental-de-area-sedimentar-do-solimoes
[3]. Fearnside, P.M. 2008. The roles and movements of actors in the deforestation of Brazilian Amazonia. Ecology and Society 13(1): art. 23. http://www.ecologyandsociety.org/vol13/iss1/art23/
[4]. Fearnside, P.M. 2001. Land-tenure issues as factors in environmental destruction in Brazilian Amazonia: The case of southern Pará. World Development 29(8): 1361-1372. https://doi.org/10.1016/S0305-750X(01)00039-0
[5]. McAlpine, C.A., A. Etter, P.M. Fearnside, L. Seabrook & W.F. Laurance. 2009. Increasing world consumption of beef as a driver of regional and global change: A call for policy action based on evidence from Queensland (Australia), Colombia and Brazil. Global Environmental Change 19: 21-33. https://doi.org/10.1016/j.gloenvcha.2008.10.008
[6]. Luis, E. 1997. Embaixador da Malásia depõe sobre madeireiras asiáticas. Amazonas em Tempo, 26 June 1997.
[7]. Amazonas em Tempo. 2008. Malaios querem terras do Amazonas. 22 August 2008.
[8]. Fernandes, G.W., F.F. Goulart, B.D. Ranieri, M.S. Coelho, K. Dales, N. Boesche, M. Bustamante, F.A. Carvalho, D.C. Carvalho, R. Dirzo, S. Fernandes, P.M. Galetti Jr., V.E.G. Millan, C. Mielke, J.L. Ramirez, A. Neves, C. Rogass, S.P. Ribeiro, A. Scariot & B. Soares-Filho. 2016. Deep into the mud: ecological and socio-economic impacts of the dam breach in Mariana, Brazil. Natureza & Conservação 14: 35-45. https://doi.org/10.1016/j.ncon.2016.10.003
[9]. Darlington, S., J. Glanz, M. Andreoni, M. Bloch, S. Peçanha, A. Singhvi & T. Griggs. 2019. A tidal wave of mud. The New York Times, 9 February 2019. https://www.nytimes.com/interactive/2019/02/09/world/americas/brazil-dam-collapse.html
[10]. Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. Brazil’s new president and “ruralists” threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46(4): 261-263. https://doi.org/10.1017/S0376892919000213
[11]. Fearnside, P.M. 2019. Desmonte da legislação ambiental brasileira. pp. 317-381. In: J.S. Weiss (ed.) Movimentos Socioambientais: Lutas – Avanços – Conquistas – Retrocessos – Esperanças. Xapuri Socioambiental, Formosa, Goiás, Brazil. 442 pp. https://doi.org/10.37682/xapbk.msoc-ed1-010
[12]. Wikipedia. 2020. Rosneft. https://en.wikipedia.org/wiki/Rosneft
[13]. Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy 94: art. 104598. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2020.104548
[14]. Gullino, D. & G. Shinohara. 2019. Bolsonaro diz que reservas indígenas buscam’ inviabilizar’ Brasil. O Globo, 27 August 2019. https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-diz-que-reservas-indigenas-buscam-inviabilizar-brasil-23908043
[15]. Valente, R. 2019. Grupo do governo quer rever consulta a índios sobre grandes obras. Folha de São Paulo, 04 October 2019. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/grupo-do-governo-articula-revisao-de-consulta-a-indios-sobre-grandes-obras.shtml.
[16]. Ventura, M. 2020. Projeto do governo libera exploração econômica ampla em terras indígenas. O Globo, 11 January 2020. https://oglobo.globo.com/brasil/projeto-do-governo-libera-exploracao-economica-ampla-em-terras-indigenas-1-24184572
[17]. Senado Notícias. 2020. Chega ao Congresso projeto que permite mineração em terras indígenas. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/02/06/chega-ao-congresso-projeto-que-permite-mineracao-em-terras-indigenas
[18]. Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo [Amazônia Real Complete series]. https://doi.org/10.13140/RG.2.1.2430.1601