O desmatamento provocado pela pecuária vem aumentando no Brasil desde 2014. Com 60 a 80% das terras desmatadas na Amazônia sendo aproveitadas para pasto, os distribuidores europeus que compram carne bovina do Brasil podem aumentar a destruição da Floresta Amazônica, a menos que sejam tomadas medidas em nível internacional.
Segundo um artigo da ONG britânica Earthsight, as cadeias de supermercados do Reino Unido — incluindo Sainsbury’s, Asda, Morrisons e Lidl — ainda importam carne bovina em conserva da maior produtora de carne bovina do Brasil, a JBS, apesar do envolvimento da empresa em uma longa série de escândalos de corrupção e desmatamento ilegal no decorrer da última década.
A JBS, uma das maiores produtoras de alimentos do mundo, responde por múltiplas acusações de corrupção que levaram à prisão de dois de seus antigos CEOs e foi multada em US$ 8 milhões em 2017 por desmatamento ilegal na Amazônia.
Espera-se que o comunicado da UE sobre intensificação de ações para deter o desmatamento proponha leis para garantir que as empresas e os fornecedores da UE não contribuam para o desmatamento e os abusos contra os direitos humanos. Contudo, especialistas afirmam que um acordo desse tipo só funcionará se as normas empresariais forem compulsórias, e não voluntárias.
O mês de maio não havia chegado nem na metade, mas já se configurava como um marco no mundo das notícias ambientais: na segunda semana do mês, o IPBES da ONU emitiu seu Relatório preliminar de avaliação global da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, no qual constata que os seres humanos, tanto de países desenvolvidos como de países em desenvolvimento, são agora os maiores responsáveis pela perda de biodiversidade. O relatório foi divulgado logo depois que o parlamento do Reino Unido declarou uma “emergência climática”, juntamente com uma pressão crescente sobre a UE para regular as commodities que causam desmatamento.
Dois grandes fomentadores de todas essas emergências ambientais: bois, muitos bois, e produtores de carne.
O gado bovino é um grande agente de desmatamento agente de desmatamento 80% da perda de árvores na Amazônia, o que contribui consideravelmente para as emissões de gases de efeito estufa.
Um artigo recente, que também foi publicado em maio, chama a atenção para os supermercados do Reino Unido e para os principais supermercados na Europa que fomentam o desmatamento ilegal ao fazer negócios com a indústria pecuária brasileira — principalmente com a produtora de carne bovina JBS. Segundo a organização investigativa Earthsight, as redes varejistas continuam a fornecer carne bovina em conserva oriunda da produtora envolvida em graves abusos contra os direitos humanos e o meio ambiente.
É difícil comprar carne bovina brasileira que não esteja vinculada à JBS. A empresa é uma das maiores produtoras de alimentos do mundo e, segundo um relatório de 2018 do site Chain Reaction Research, um dos três frigoríficos (JBS, Minerva e Marfrig) que controlam cerca de 70% da capacidade de abate da Amazônia brasileira.
Segundo a Forest500, em 2016 a JBS era a principal exportadora de carne bovina do Brasil. Porém, nos últimos 10 anos, a empresa tem sido alvo de graves acusações de corrupção e desmatamento que resultaram, por exemplo, na prisão de dois de seus antigos CEOs — Joesley e Wesley Batista — integrantes de um esquema escandaloso de suborno que chegou ao alto escalão do governo, envolvendo inclusive o então presidente Michel Temer.
Apesar dessas questões, o Reino Unido, a Itália, os Países Baixos, a Bélgica e a Espanha compraram quase 90% da carne bovina exportada para a Europa pela JBS em 2018; só o Reino Unido sozinho importou 28.550 toneladas métricas (31.500 toneladas curtas) de carne bovina em conserva.
Pesquisadores da Earthsight encontraram carne bovina em conserva fornecida pela JBS nas prateleiras de supermercados das redes Sainsbury’s, Asda, Morrisons e Lidl. A Morrisons e a Lidl usam a carne da JBS para a fabricação de carne enlatada de marca própria, enquanto a Sainsbury’s e a Asda vendem carne enlatada das marcas Exeter e Princes, que também usam carne fornecida pela JBS.
A Mongabay entrou em contato com os varejistas, que não confirmaram nem negaram as alegações. Em vez disso, citaram uma declaração do Consórcio Varejista Britânico (BRC, na sigla em inglês) que afirma que “o BRC e nossos membros consideram absolutamente inaceitável qualquer tipo de exploração laboral e desmatamento ilegal. Espera-se que todos os fornecedores obedeçam à legislação local e aos elevados padrões dos varejistas. Os varejistas mantêm esse compromisso por meio de códigos de conduta acordados com os fornecedores, fiscalizações rigorosas, treinamento de funcionários e esquemas colaborativos.”
Há quem conteste o apoio contínuo prestado por esses grandes varejistas britânicos à empresa brasileira. “A JBS já deu várias provas de que não é confiável. Já prometeu inúmeras vezes rever suas práticas”, mas não cumpriu, segundo o diretor da Earthsight, Sam Lawson. “O que já entendemos é que os governos precisam agir. As empresas não conseguem sozinhas.”
Gado e desmatamento na Amazônia
Falar sobre desmatamentos na Amazônia brasileira — onde há quatro bois para cada pessoa — é falar sobre criação de gado bovino.
Quase metade do desmatamento mundial acontece atualmente no chamado “arco do desmatamento” — uma porção de terra localizada ao longo da fronteira ao sul da floresta Amazônica e dentro do bioma Cerrado (savana brasileira). A maior parte desse desmatamento é ilegal, lprovocado principalmente pelo uso de queimadas intencionais para eliminar a vegetação nativa e criar áreas para pastagem. Um estudo realizado pela ONG brasileira Imazon afirma que, entre as empresas de empacotamento de carne bovina que compram gado na Amazônia, a JBS é a mais exposta aos riscos associados ao desmatamento em virtude da localização dos abatedouros, que ficavam próximos a 1,7 milhão de hectares de fazendas embargadas, 1,6 milhão de hectares de área desmatada entre os anos 2010 e 2015, e 1,2 milhão de hectares de florestas sob risco de desmatamento entre os anos 2016 e 2018. O mesmo estudo também aponta que empresas como a JBS seriam as maiores beneficiadas se houvesse maior controle e reforço nos mecanismos regulatórios.
“A criação de gado bovino substitui a maior parte da floresta”, diz Philip Fearnside, ecologista do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia que estuda o desmatamento na região há duas décadas. “Todo o gado criado na Amazônia precisa passar pelos abatedouros de alguma forma para deixar a região [para exportação]. Com certeza, a JBS é a maior [produtora com negócios aqui]; portanto, boa parte da carne acaba indo para lá.”
Segundo a instituição de pesquisa brasileira sem fins lucrativos Imazon, os pastos ocupavam 65% da área desmatada na Amazônia brasileira entre os anos 2013 e 2014. Os índices de desmatamento do país aumentaram desde 2014, registrando os níveis mais elevados de perda de cobertura florestal da década em 2018 — o mesmo ano em que o Brasil abateu quase 32 milhões de cabeças de gado, o maior número de animais abatidos desde 2014.
Em 2017, a JBS foi multada em US$ 8 milhões pelo governo brasileiro por ter comprado quase 50 mil cabeças de gado de fazendas que praticaram desmatamento ilegal na Amazônia. Mais recentemente, uma investigação realizada pelo site de jornalismo ambiental e parceiro coeditor da Mongabay O Eco alegou que a JBS adquiriu gado de no mínimo quatro fazendas ilegais em atividade dentro da reserva extrativista Jaci-Paraná no estado de Rondônia em dezembro de 2018.
A JBS escreveu uma nota para Mongabay em que afirma que “as operações de aquisição de gado bovino e todo o sistema de monitoramento dos fornecedores são auditados anualmente e de forma independente”. Segundo a empresa, os resultados das suas auditorias revelam que mais de 99,9% das aquisições de gado realizadas pela JBS nos últimos três anos obedeciam aos critérios sociais e ambientais da organização.
Contudo, segundo o artigo essa afirmação não procede. O Ministério Público do Estado do Pará, que em 2016 solicitou por conta própria auditorias de grandes empresas produtoras de carne, constatou que a JBS foi um dos frigoríficos com pior desempenho no estado naquele ano.
“Trata-se de uma empresa que não é confiável”, diz Sam Lawson. “Sempre que alguém a acusa de praticar desmatamento ilegal, o pressuposto é que a JBS é uma organização idônea que acidentalmente cometeu um erro e mudará sua conduta. Se adotarmos uma perspectiva mais ampla, veremos que a intenção é outra. A ideia de que se pode confiar na JBS é absurda.”
Segundo analistas, uma brecha na legislação ambiental brasileira possibilita a implementação de um esquema de “lavagem de gado” fácil e em grande escala: em geral, no Brasil o gado bovino é inicialmente criado em fazendas que praticam intenso desmatamento. Posteriormente, os animais são transferidos para fazendas que não derrubaram árvores, e os rebanhos são então vendidos para abatedouros, que só precisam identificar o fornecedor direto. Assim, o desmatamento passa despercebido.
Corrupção generalizada
O artigo da Earthsight também explica a onda de escândalos de corrupção e suborno que varreu a JBS nos últimos anos.
“Como mostra o artigo, a JBS é uma empresa relevante para o financiamento legal e ilegal de campanhas políticas”, diz o pesquisador sênior da Imazon Paulo Barreto. “Ela financiou campanhas e ofereceu propina a políticos em troca de benefícios como desregulamentações ambientais, isenções fiscais e créditos subsidiados.”
Em maio de 2017, a JBS foi citada na operação Lava Jato, o maior escândalo de corrupção da história do Brasil. Advogados independentes descobriram que executivos da empresa haviam feito doações ilícitas para as campanhas de 1.829 candidatos de 28 partidos políticos ao longo de mais de dez anos. A J&F Investimentos, acionista controladora da JBS, concordou em pagar uma multa de R$ 10,3 bilhões pela participação da JBS no escândalo. Segundo a legislação brasileira, quando membros de cartéis ou outros esquemas de corrupção denunciam outros participantes do esquema, sua multa pode ser reduzida por meio de um acordo de leniência. O valor pago pela J&F Investimentos foi a maior multa já aplicada em um acordo de leniência em todo o mundo.
Segundo uma declaração feita pela empresa, “a JBS reafirma seu compromisso permanente com Compliance e Governança Corporativa, por meio de uma abordagem sólida e transparente, alinhada com os pilares e as diretrizes que orientam a gestão diária da empresa. Em 2018, a diretoria global de Compliance comemorou a capacitação em ética e governança de 99% dos colaboradores e 100% dos líderes da empresa em todo o mundo.”
Acredita-se que o ex-presidente Temer tenha recebido da JBS um total de R$ 38 milhões em propina. Este ano, a Justiça Federal aceitou uma denúncia contra Temer, apresentada pelo então procurador-geral da República ligado ao caso.
As acusações de corrupção não terminam aí. Em 2017, como parte da operação Carne Fraca, agentes federais realizaram operações em frigoríficos e acusaram a JBS e outros produtores de oferecerem propinas a inspetores sanitários para que eles ignorassem as normas de segurança alimentar, o que levou a embargos temporários à carne brasileira em todo o mundo. Uma investigação do jornal The Guardian, também realizada em 2017, constatou que a carne presente nos produtos da JBS vendidos na Europa estava vinculada a trabalho escravo em fazendas brasileiras. Com isso, alguns varejistas europeus, como a Waitrose, retiraram das prateleiras sua carne bovina em conserva (de marca própria) produzida com carne da JBS.
Acordo da pecuária no limbo
Está provado que os casos de corrupção envolvendo a indústria de processamento de carne no Brasil são um grande obstáculo para o acordo voluntário a favor da pecuária sem desmatamento na Amazônia, um acordo histórico assinado em 2009 pelos quatro maiores frigoríficos da época, em resposta a um relatório do Greenpeace intitulado “Slaughtering the Amazon” (“Abatendo a Amazônia”, em tradução livre). Nele, o Greenpeace descreve em detalhes o vínculo entre destruição da floresta, a expansão da pecuária bovina na Amazônia e frigoríficos localizados no Pará.
O relatório extremamente crítico resultou em ações judiciais movidas pelo governo brasileiro contra frigoríficos como a JBS, por adquirirem gado de fazendas ligadas a práticas de desmatamento ilícito. As empresas concordaram em cumprir Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), cujas exigências incluíam a suspensão da aquisição de gado de fazendas envolvidas em práticas de desmatamento, trabalho escravo ou invasões de terras indígenas e áreas protegidas.
Embora tenha havido algum progresso muitos especialistas concordam que ainda há muitas falhas.
“Os acordos assinados pelos frigoríficos não foram suficientes para reduzir o desmatamento”, diz Paulo. “O aumento do desmatamento depois da assinatura dos acordos prova que é preciso reforçar o cumprimento dos termos.”
Em 2017, o Greenpeace suspendeu as negociações com a JBS em grande parte por causa da descoberta do envolvimento dos acionistas controladores da JBS no esquema de corrupção.
“O escândalo [da operação Lava Jato] deu mais destaque à JBS, mas a corrupção estava infiltrada em todo o setor [de processamento de carne]”, diz Adriana Charoux, ativista da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil que trabalhou no acordo da pecuária. “Aprendemos que, se não houver apoio do governo brasileiro e dos setores que estão cientes das políticas de desmatamento zero e as impõem ao produtor, não haverá resultados. Agora, mais do que nunca, a comunidade internacional precisa exigir o cumprimento de critérios para uma prática responsável de pecuária bovina.”
A regulamentação do processo de importação e exportação como uma saída
A pesquisa da Earthsight é a publicação mais recente de uma série de artigos que evidenciam a enorme contribuição da UE para a prática do desmatamento, principalmente em países tropicais.
Ainda assim, quando a Mongabay entrou em contato com a Lidl, Asda, Sainsbury’s e outros varejistas mencionados no artigo, eles não ofereceram muitas soluções. Um porta-voz do Consórcio Varejista Britânico (BRC) respondeu: “Embora seja de conhecimento geral que o Brasil enfrenta desafios significativos, o país emprega esforços para combater o trabalho escravo contemporâneo por meio da elaboração e da aplicação de leis que abordam o problema. No entanto, evoluções legislativas recentes podem estar colocando em risco esse progresso, e esse exemplo comprova a importância da aplicação de leis eficazes que realmente protejam as pessoas e o meio ambiente contra a exploração. Fazemos um apelo para que o governo brasileiro tome medidas urgentes para tratar dessa questão ao longo da cadeia de suprimentos.”
Com a eleição do presidente de direita Jair Bolsonaro e a aplicação de suas políticas extremistas que favorecem o agronegócio às custas de populações indígenas e da “Amazônia improdutiva”, muitos cientistas, ativistas e ONGs nacionais e internacionais estão aumentando a pressão sobre a UE para fiscalizar as commodities brasileiras que promovem o desmatamento e estão vinculadas a abusos aos direitos humanos.
“A situação está piorando [agora que] o lobby do agronegócio pressionou o governo para enfraquecer a legislação ambiental”, diz Paulo da Imazon. “Eles conseguiram o que queriam, como a anistia para desmatamento ilícito, redução de áreas protegidas e extensão do prazo para legalizar a apropriação de terras públicas.”
Espera-se que o comunicado da UE sobre intensificação de ações para deter o desmatamento proponha leis para garantir que as empresas e os fornecedores da UE não contribuam para o desmatamento e os abusos aos direitos humanos. No entanto, críticos como Sam Lawson temem que qualquer lei resultante dessa pressão dependa demasiadamente de compromissos voluntários contra o desmatamento por parte das empresas.
“Quando essa onda de desmatamento zero começou em 2011, houve muita comemoração no mundo da política florestal”, diz Sam. “O que mais me preocupou [na época] foi que as pessoas de nível mais elevado tiveram a impressão de que o problema do desmatamento estava sendo resolvido [pelas empresas]. Todas essas políticas [voluntárias] de desmatamento zero estão desviando o foco do que realmente tem que ser feito. É preciso haver ação legislativa.”
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Artigo original: https://news-mongabay-com.mongabay.com/2019/05/uk-supermarkets-implicated-in-amazon-deforestation-supply-chain-report/