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Um processo particular de reforma agrária no Peru

  • A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.

  • O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.

  • Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.

O processo de reforma agrária no Peru começou em 1964. Originalmente um esforço cauteloso que visava os exemplos mais flagrantes de exploração camponesa, foi dramaticamente ampliado por um governo militar de esquerda em 1969. Entre 1970 e 1975, mais de 15.800 propriedades de terra, cobrindo um pouco mais de nove milhões de hectares, foram confiscadas e redistribuídas para mais de 370.000 famílias de camponeses. Os proprietários originais deveriam ser compensados pela venda de títulos soberanos, mas a hiperinflação na década de 1980 forçou o governo a entrar em default e a dívida pendente continua a ser objeto de ação judicial. O plano original do governo militar era formar cooperativas de produtores que permitissem às comunidades assumir o controle de suas terras e, ao mesmo tempo, preservar as economias de escala. No entanto, essa ideia não foi aceita pelos camponeses, que dividiram a terra entre si e, ao mesmo tempo, administraram a posse de forma comunitária, de acordo com os costumes tradicionais das terras altas.

O regime militar terminou em 1980 com a eleição de Fernando Belaúnde, um defensor do desenvolvimento da Amazônia e o proponente original da Carretera Marginal de la Selva. Entre suas primeiras ações estava a criação do Instituto Nacional de Desarrollo (INADE), uma agência autônoma afiliada ao Ministério da Agricultura; o INADE organizou Proyectos Especiales, que incluíam assentamentos nas terras baixas tropicais, sistemas de irrigação na costa e agricultura mecanizada nas terras altas. Os seis projetos de terras baixas eram análogos aos projetos de colonização no Brasil que distribuíam terras adjacentes às rodovias em construção, em grande parte, como na Bolívia, para migrantes indígenas das terras altas dos Andes.

O piemonte entre os contrafortes andinos e a cidade portuária de Pucallpa, no rio Ucayali, foi aberto para colonização com a construção da Carretera Federico Basadre na década de 1980. A maioria das propriedades de terra ainda não foi validada (saneamiento) e incorporada ao cadastro nacional, incluindo duas grandes plantações de dendê estabelecidas em 2013 e 2014 (a). As propriedades de terras comunitárias de comunidades indígenas (polígonos verdes) estão sob pressão de migrantes e grileiros. Fonte (ambas imagens): Google Earth.

O governo supostamente desmatou 615.000 hectares em antecipação à chegada dos colonos; no entanto, apenas cerca de 125.000 hectares foram ocupados pela primeira leva de colonizadores. Na década seguinte, um fluxo constante de migrantes chegou à floresta tropical do sopé (Selva Alta) e do piemonte (Selva Baja). A taxa estimada de desmatamento entre 1980 e 1990 excedeu 250.000 por ano, aproximadamente o dobro da taxa anual documentada desde 2000 a 2020. A população rural das jurisdições amazônicas aumentou de três para quatro milhões de habitantes, aproximadamente o dobro da taxa de crescimento das décadas anteriores e posteriores. Esses anos também foram marcados por uma explosão no cultivo de coca na Amazônia peruana, bem como o surgimento do Sendero Luminoso e do Movimiento Revolucionario Túpac Amaru.

Em 1992, o governo de Alberto Fujimori criou o Proyecto Especial de Titulación de Tierras (PETT) para regularizar os títulos de todos os proprietários de terras peruanos. Como na Bolívia, isso coincidiu com as políticas provenientes de agências multilaterais para promover uma economia de mercado e fornecer segurança jurídica aos proprietários de terras. O PETT incluiu garantias para proteger e reconhecer as terras comunitárias dos povos indígenas, que, no contexto do vernáculo peruano, incluíam grupos das terras altas (comunidades campesinas) e tribos das terras baixas (comunidades nativas). O processo foi coordenado com outros programas para criar um sistema de concessões florestais e organizar um sistema de áreas protegidas. O objetivo era distribuir as terras públicas da nação peruana entre as suas diversas partes interessadas.

O processo de regularização da posse da terra (saneamiento) tem sido submetido a reformas administrativas periódicas. Isso incluiu um decreto de descentralização em 2003, que passou a implementação para os governos regionais (Gobiernos Regionales – GORE), e uma iniciativa anticorrupção que transferiu o programa de volta para o governo central em 2007. Em 2008, o PETT foi incorporado à Comisión de Formalización de la Propiedad Informal (COFOPRI), um programa de grande visibilidade criado para formalizar os direitos de propriedade nos instáveis bairros urbanos do país.

O Peru reconheceu os direitos territoriais de grupos étnicos indígenas por meio de propriedades de terra vinculadas a comunidades individuais. Muitas aldeias ainda não tiveram suas reivindicações de terra adjudicadas. O Estado também criou várias Reservas Indígenas para proteger grupos que vivem em isolamento voluntário. IBC (2020).

Essa agência tinha a capacidade técnica para compilar um cadastro digital, mas devolveu as responsabilidades administrativas ao Ministerio de Agricultura y Riego (hoy MIDRAGRI). Em 2014, o MIDAGRI delegou operações de campo aos governos regionais em um esforço renovado para descentralizar as funções administrativas do Estado. Em 2018, o MIDAGRI assumiu a responsabilidade total da COFOPRI quanto à compilação e ao gerenciamento de um cadastro nacional de terras rurais, conhecido como Sistema Catastral para Predios Rurales (SICAR) e gerenciado pela Dirección General de Saneamiento de la Propiedad Agraria y Catastro Rural (DIGESPACR).

Apesar da confusão administrativa, o projeto de titularidade de terras manteve um nível de continuidade institucional porque o governo alavancou seus investimentos com empréstimos do BID por meio do Proyecto de Catastro, Titulación y Registro de Tierras Rurales (PTRT). Executado como três projetos consecutivos ao longo de 25 anos, o componente comunitário se beneficiou de uma forte supervisão da sociedade civil e da participação de organizações indígenas. Apesar dos inúmeros contratempos, o PTRT conseguiu estabelecer um sistema nacional para registrar propriedades rurais, certificar seus títulos e incorporá-los a um cadastro.

Centenas de vilarejos nos rios Amazonas, Ucayali e Marañon são habitados por comunidades sem afinidade étnica específica, mas que se identificam como ribeirinhos; o Estado peruano só recentemente começou a reconhecer seu direito à terra adjacente às suas comunidades ribeirinhas. Fonte de dados: IBC (2020).

Predios comunales (propriedades rurais indígenas)

A demarcação e a regularização de propriedades rurais comunitárias estão bem avançadas; no entanto, obstáculos significativos impedem a conclusão do processo. Em agosto de 2021, o ministério havia registrado as propriedades de terra de mais de 5.680 comunidades campesinas, cobrindo 21 milhões de hectares no litoral e nas terras altas. Infelizmente, 25% ainda não foram totalmente validados pela DIGESPACR, aparentemente devido a litígios decorrentes da reforma agrária da década de 1970.

Nas terras baixas, o SICAR registrou as reivindicações de 1.950 comunidades nativas, cobrindo aproximadamente 13 milhões de hectares; cerca de dois terços receberam um título validado, enquanto o restante aguarda a resolução de obstáculos burocráticos ou legais (Figura 4.6a). As organizações que representam as comunidades indígenas informam que há pelo menos 500 aldeias adicionais buscando “reconhecimento”, um estágio administrativo que é um pré-requisito para solicitar um título para terras comunitárias. O progresso foi prejudicado pelas reivindicações de terras conflitantes de outras partes interessadas. Uma pesquisa realizada em 2017 enumerou 2.703 comunidades, das quais 808 (30%) relataram algum tipo de conflito de terra. Esses conflitos incluíam conflitos com outras comunidades (45%), propriedades privadas (27%) ou indivíduos dentro de sua própria comunidade (24%), bem como com empresas madeireiras (14%), petrolíferas (7,3%) e de mineração (5%) e com mineradores ilegais (1,6%).

O processo de distribuição de terras é ainda mais complicado porque o Estado precisa resolver conflitos entre suas próprias instituições. Por exemplo, aproximadamente 12 milhões de hectares da propriedade florestal não estão disponíveis para as comunidades porque foram arrendados como concessão por um determinado período. Da mesma forma, as áreas protegidas criadas nas décadas de 1980 e 1990, antes de haver clareza quanto à prioridade das reivindicações indígenas, impedem a capacidade do Estado de conceder títulos legais a comunidades estabelecidas há muito tempo. As diretrizes de gestão garantem o acesso dos habitantes aos recursos naturais, mas, diferentemente de seus pares em paisagens próximas, os habitantes indígenas de uma área protegida nacional não têm direitos de propriedade comunal. Os recursos minerais subterrâneos são uma grande fonte de controvérsia, pois, embora pertençam legalmente ao Estado, sua exploração depende do consentimento das comunidades indígenas locais.

Essas limitações são particularmente incômodas para os aproximadamente 750 vilarejos habitados por cerca de 35.000 famílias que se identificam como comunidades ribereñas (Figura 4.6b). Essas pessoas que habitam a floresta têm um patrimônio misto que inclui um legado indígena, mas carece de afinidade étnica devido ao casamento e à desculturalização. Eles residem ao longo de todos os principais rios, mas estão mais densamente assentados perto de Iquitos.

Frequentemente, os ribeirinhos coexistem e compartilham recursos com comunidades étnicas, especialmente ao longo da fronteira sul da Reserva Nacional Pacaya Samiria. Recentemente, o governo regional de Loreto (GOREL) usou o protocolo de comunidad campesina para formalizar o status de 64 propriedades de terra que cobrem aproximadamente 376.000 hectares.

Centenas de aldeias ribeirinhas na Amazônia peruana são habitadas por famílias que se identificam como Ribereñas. A maioria é descendente de imigrantes e sobreviventes de comunidades indígenas que foram desestruturadas durante o boom da borracha no século XIX. Por não terem uma herança étnica específica, não se beneficiaram do programa do Estado de alocação de terras comunitárias para comunidades nativas. Credito: Karol Moraes / Shutterstock.com

Perto de Pucallpa (HML nº 41) e Yurimaguas (HML nº 44), tanto as comunidades nativas quanto as comunidades ribereñas precisam competir por terras e recursos com uma população em expansão que se identifica como colonos. Assim como na Bolívia, eles vêm de uma cultura de terras altas em que a propriedade comunitária é a norma, mas, na fronteira florestal da Amazônia peruana, eles adotaram a propriedade privada como seu caminho para a prosperidade.

Imagem do banner: Os Andes encontram as nuvens ao amanhecer. Foto: Rhett A. Butler.

“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).

Leia as outras partes extraídas do capítulo 4 aqui:

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