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Planejamento do uso da terra: o caso do Brasil

Focos de calor de 2020 em uma área próxima aos limites do território indígena Kaxarari em Lábrea (Amazonas, Brasil). Crédito: Christian Braga / Greenpeace.

  • A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.

  • O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.

  • Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.

A regulamentação da posse da terra não é o único poder disponível ao Estado para influenciar a forma como as pessoas utilizam a terra. O planejamento e o zoneamento do uso da terra são dois mecanismos intimamente relacionados que as nações pan-amazônicas utilizam para promover o desenvolvimento sustentável em suas fronteiras florestais e agrícolas. Assim como as políticas que regem a infraestrutura, a agricultura e a posse da terra, esses programas técnicos evoluíram em resposta às mudanças nas forças econômicas e sociais dos países, bem como às prescrições de agências multilaterais e grupos da sociedade civil que buscam proteger a biodiversidade da Floresta Amazônica.

Nas décadas de 1970 e 1980, a maioria dos programas de planejamento do uso da terra usava uma metodologia desenvolvida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) que identifica o uso ideal da terra com base no clima e no solo e que estratifica regiões e paisagens em categorias que vão da proteção total à agricultura intensiva. Conhecida nos Estados Unidos como Land Capability Classification (Classificação da Capacidade da Terra), na América Latina ela foi promovida pela USAID como Capacidad de Uso Mayor de la Tierra (CUMAT).

Três versões do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico (ZSEE) para o estado de Mato Grosso: 2008, a versão preparada pelo órgão ambiental estadual, mas rejeitada pela assembleia legislativa estadual; 2011, a versão revisada aprovada pela assembleia legislativa estadual, mas declarada inválida pelo Supremo Tribunal Federal; 2018, mais uma versão revisada preparada pelas autoridades estaduais, mas contestada pelo setor agrícola do estado. Fontes: SEMAS (2012, 2018), Schönenberg et al. (2015), Fórum Mato-Grossense da Agropecuária (2021).

Um sistema semelhante desenvolvido pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) e patrocinado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) era conhecido como Zonificación Agroecológica (ZAE). Os detalhes técnicos e os resultados desses estudos eram de altíssima qualidade, mas sofriam de um defeito fundamental: não incluíam um processo participativo, o que os levava a ignorar as tendências econômicas já em andamento e os usos tradicionais que poderiam não coincidir com a melhor opção tecnológica para o uso da terra.

Essas limitações logo se tornaram aparentes, e a estrutura da ZAE foi modificada e renomeada como Zonificación Ecológica Económica (ZEE), que usa a análise técnica como linha de base, mas incorpora critérios sociais e econômicos adicionais. Mais importante ainda, incluiu um processo participativo para garantir que as aspirações de diferentes grupos de partes interessadas fossem consideradas, incluindo comunidades indígenas e tradicionais, mas também pequenos agricultores e a agroindústria. Todos os países da Pan-Amazônia adotaram alguma variante da metodologia do ZEE e a incorporaram em seus processos regulatórios para reger o planejamento do uso da terra (recomendações) e as estruturas normativas (zoneamento).

Desmatamento no estado do Pará desde 2000 em relação ao MacroZEE de 2012. A categoria I abrange unidades de conservação e terras indígenas que restringem severamente as atividades econômicas. As áreas da categoria II foram identificadas como apropriadas para uso sustentável, mas foram listadas em 2012 como terras públicas não designadas. A categoria III inclui assentamentos do INCRA do tipo PAAD (florestais e ribeirinhos) e unidades de conservação de uso sustentável, incluindo várias que permitem propriedades privadas. A categoria IV inclui assentamentos do INCRA do tipo PA (agrário), propriedades privadas e terras públicas não designadas. Embora grande parte do desmatamento documentado seja ilegal, ele tem se restringido em grande parte a paisagens zoneadas para desenvolvimento (consolidação de atividades produtivas). Fontes de dados: SEMAS (2012) e RAISG (2021).

A eficácia desses estudos é decididamente mista. Os colonos e os fazendeiros corporativos usaram os componentes técnicos para orientar seus investimentos, mas a maior parte do desmatamento é impulsionada pelo desenvolvimento da infraestrutura, pela demanda por commodities e pela especulação de terras. Apesar disso, o processo do ZEE coincidiu com programas de criação de sistemas de áreas protegidas e apoiou reivindicações territoriais de comunidades indígenas. Governos, ONGs e instituições multilaterais continuam investindo nesses estudos, argumentando que eles são essenciais para descobrir um caminho para o desenvolvimento verdadeiramente sustentável.

O ZEE na Amazônia brasileira

A história do ZEE no Brasil começou em 1981, quando o Congresso aprovou a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, que reconheceu o “zoneamento ambiental” como uma ferramenta reguladora para promover o uso racional do solo e a proteção dos ecossistemas. Em 1990, houve a formação de um grupo de trabalho para analisar as diferentes metodologias e estabelecer uma abordagem padrão para a Amazônia Legal. A responsabilidade foi transferida para os estados em 1994 e incorporada como um componente-chave do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais (PPG7). A metodologia foi formalizada como um procedimento normativo por meio de decreto presidencial em 2002, quando o governo estabeleceu uma comissão federal para coordenar o processo (Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico do Território Nacional – CCZEE) e convocou um grupo de trabalho para acelerar sua implementação (Consórcio ZEE Brasil). Em 2000, o ZEE foi incorporado ao processo de planejamento estratégico quadrienal em nível estadual (Plano Plurianual – PPA).

Em 2010, o Ministério do Meio Ambiente publicou um Macro ZEE (1:1.000.000) da Amazônia Legal derivado de estudos preliminares a nível estadual que forneceram a primeira visão oficial do futuro da Amazônia Legal. O Código Florestal de 2012 reforçou a importância do ZEE ao estipular seu uso para a implementação das principais disposições e obrigou o estado a produzir uma versão mais detalhada (1:250.000).

Em outubro de 2021, Acre, Pará e Rondônia haviam concluído as versões finais que foram aprovadas pelas autoridades federais, enquanto Maranhão, Tocantins e Roraima tinham versões preliminares em análise. Amazonas e Amapá concluíram estudos para sub-regiões selecionadas que estão mais expostas a mudanças no uso da terra e grilagem de terras. Os critérios de classificação geralmente se enquadram em uma das três categorias: (1) consolidação de paisagens de produção existentes; (2) uso sustentável de recursos naturais; e (3) áreas protegidas e terras indígenas.

Três versões do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico (ZSEE) para o estado de Mato Grosso: 2008, a versão preparada pelo órgão ambiental estadual, mas rejeitada pela assembleia legislativa estadual; 2011, a versão revisada aprovada pela assembleia legislativa estadual, mas declarada inválida pelo Supremo Tribunal Federal; 2018, mais uma versão revisada preparada pelas autoridades estaduais, mas contestada pelo setor agrícola do estado. Fontes: SEMAS (2012, 2018), Schönenberg et al. (2015), Fórum Mato-Grossense da Agropecuária (2021).

A primeira categoria sempre inclui paisagens em que predominam a agricultura e a pecuária em larga escala, mas pode incluir fazendas de pequena escala (Maranhão, Rondônia e Pará) ou meios de subsistência baseados em florestas próximas às principais rodovias (Acre e Amazonas). A segunda categoria normalmente contém paisagens que apoiam meios de subsistência baseados na floresta, incluindo aquelas dentro de assentamentos do INCRA do tipo PAAD, mas também propriedades florestais privadas (Amazonas e Roraima) e comunidades de pequenas propriedades (Mato Grosso). A terceira categoria inclui unidades de conservação em todas as jurisdições, inclusive aquelas que apoiam meios de subsistência sustentados na floresta e, em alguns casos, a criação de gado.

Várias versões também reconhecem áreas frágeis que requerem um manejo especial (Mato Grosso, Amazonas) e preveem um processo acelerado para analisar e resolver questões relacionadas à posse da terra (Acre, Roraima). As diferenças refletem as peculiaridades de cada estado e a heterogeneidade social e econômica da Amazônia brasileira.

O processo do ZEE é visto com bons olhos no Brasil, onde tem impacto no planejamento federal e estadual, como o processo de investimento do PPA e a análise ambiental supervisionada pela agência de proteção ambiental. A primeira edição do ZEE coincidiu com um esforço paralelo para proteger grandes áreas da Amazônia e forneceu critérios técnicos e suporte legal para a criação de dezenas de unidades de conservação e territórios indígenas. Por exemplo, quatorze unidades de conservação e territórios indígenas foram criados no Acre após a conclusão de seu ZEE preliminar, enquanto no Pará foram reservadas 44 unidades desse tipo.

As iniciativas de conservação teriam ocorrido de forma independente, mas, ao integrá-las em uma análise multissetorial com considerações explícitas sobre usos alternativos da terra, o Estado brasileiro evitou muitos conflitos futuros.

Os documentos do ZEE apoiam os esforços para interromper ou desacelerar o desmatamento, fornecendo maior clareza geográfica sobre quais paisagens estão fora dos limites para o desenvolvimento agrícola e, ao mesmo tempo, agindo como uma referência legal que reduz as oportunidades de grilagem de terras. As entidades financeiras do setor público, como o Banco do Brasil, são obrigadas a analisar os projetos de investimento e garantir que eles estejam em conformidade com as disposições do ZEE regional. Esses planos têm amplo apoio público porque – exceto no estado do Mato Grosso – a consulta pública incorporou as aspirações das partes interessadas.

A secretaria ambiental de Mato Grosso concluiu um ZEE detalhado em 2008, mas suas disposições foram veementemente contestadas pelo agronegócio. O lançamento do ZEE coincidiu com boicotes internacionais que visavam o estado por seus sistemas de produção ligados ao desmatamento. O plano de zoneamento teria complicado ainda mais a imagem do setor ao rotular as fazendas estabelecidas na década anterior como insustentáveis, especialmente aquelas na bacia hidrográfica superior do rio Xingu. Também teria restringido a futura expansão do modelo de produção de soja e milho para pastagens anteriormente desmatadas na faixa norte dos municípios e no vale do Araguaia, próximo à fronteira com o Pará.

A legislatura estadual encomendou um estudo alternativo e aprovou uma versão radicalmente diferente em 2011. No entanto, o estudo revisado não aderiu às diretrizes federais. Ele foi contestado no tribunal pelo promotor público e rejeitado pelo CCZEE em 2012. O governo estadual, que é obrigado por lei a promulgar um ZEE, iniciou outro estudo que produziu uma terceira versão em 2018, a qual basicamente dividia a diferença entre as duas versões anteriores.

A terceira versão foi rejeitada por instituições que representam agricultores, fazendeiros, madeireiras e industriais. Segundo os críticos, as disposições de zoneamento ameaçariam a subsistência de milhares de famílias rurais porque elas: (1) rotulariam ~20% das terras agrícolas existentes como não sustentáveis; (2) limitariam o potencial de ~69% das pastagens existentes a serem convertidas em agricultura intensiva; e (3) criariam obstáculos ambientais para ~78% dos sistemas de transporte a granel propostos. A legislatura estadual criou uma comissão especial em junho de 2021 para analisar a proposta.

Imagem do banner: Focos de calor de 2020 em uma área próxima aos limites do território indígena Kaxarari em Lábrea (Amazonas, Brasil). Crédito: Christian Braga / Greenpeace.

“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).

Leia as outras partes extraídas do capítulo 4 aqui:

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