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O Incra como agência reguladora

Gado nos campos do Brasil. Crédito: Rhett A. Butler.

  • A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.

  • O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.

  • Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.

O terceiro pilar da missão institucional do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) abrange aspectos administrativos e jurídicos da posse da terra e, como tal, é o órgão mais importante que regula os mercados imobiliários rurais. Administrativamente, a instituição é encarregada de coletar e organizar os registros de todas as propriedades rurais no Brasil, incluindo sua criação e todas suas subsequentes vendas, subdivisões e unificações. Legalmente, os funcionários do INCRA devem revisar e verificar se os documentos são legítimos e validar os atributos espaciais de parcelas individuais de terra. Essa é uma tarefa gigantesca que testaria a capacidade de governança de qualquer país, mas é particularmente desafiadora em uma nação de dimensões continentais que está passando por uma distribuição maciça de terras.

A decisão de organizar as propriedades rurais em um registro nacional de terras, o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), coincidiu com as políticas de transformação da Amazônia por meio de migração e assentamento. Essa tarefa poderia ter sido concluída automaticamente se os programas de pequenos proprietários, que distribuíam cerca de 12 milhões de hectares, tivessem registrado essas transações de forma precisa e exata. Infelizmente, isso não aconteceu. Essa oportunidade perdida foi prejudicada por uma decisão colateral de facilitar uma corrida por terras que estava ocorrendo organicamente no sul e no leste da Amazônia.

Depois de 1978, aproximadamente, o governo militar ficou desencantado com a estrutura de assentamento de pequenos proprietários devido aos altos custos indiretos, ao baixo retorno econômico e às péssimas relações públicas. Em vez disso, decidiu acelerar a transferência de terras públicas para empresas e famílias influentes com capacidade de investir em empreendimentos produtivos com economias de escala. Nas duas décadas seguintes, mais de 100 milhões de hectares de terras públicas foram transferidos para grandes proprietários por meio de uma série de operações legais e extrajudiciais.

Foto da NASA registrando o desmatamento na floresta brasileira. Crédito: Rhett A. Butler.

A maneira mais fácil era obter uma concessão de terras de uma agência governamental. Às vezes, elas eram disfarçadas como uma concessão para organizar um projeto de colonização privada, mas eram convertidas em uma propriedade corporativa. Outra estratégia era fazer um ciclo de uma pequena propriedade de terra por meio de uma série de transações e aumentar suas dimensões em cada estágio. Muitas propriedades rurais foram fabricadas do nada.

As ações questionáveis foram lavadas pelo Fundo para Investimento Privado no Desenvolvimento da Amazônia (FIDAM), uma subsidiária da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) que emprestava dinheiro a fazendeiros corporativos. A FIDAM exigia que os credores obtivessem a documentação que comprovasse seus direitos de propriedade nos escritórios regionais do INCRA ou nos órgãos estaduais, todos eles compostos por pessoas ansiosas para facilitar a entrada de dinheiro em suas jurisdições.

A colaboração aberta de vários órgãos estaduais e federais criou um ambiente permissivo que foi explorado por especuladores, que se apropriaram de terras que eram escassamente povoadas por seringueiros e comunidades indígenas. A aprovação tácita de transações imobiliárias fraudulentas foi formalizada em 1976, quando o governo militar promulgou uma lei de regularização fundiária que incluía uma cláusula para conferir títulos a propriedades criadas por meio de procedimentos extrajudiciais, se os atuais proprietários as tivessem adquirido de “boa fé”. Cada transferência subsequente dessas propriedades, ou transação financeira mediada pelo banco, fornecia uma camada de segurança jurídica.

O INCRA não iniciou um esforço sério para catalogar e revisar as reivindicações de posse de terra até aproximadamente 1993, após o que lançou iniciativas periódicas para consolidar o SNCR com níveis crescentes de sofisticação eletrônica. As propriedades consideradas legítimas foram incorporadas ao banco de dados do SNCR e os proprietários receberam um Certificado de Cadastro de Imóvel Rural.

Após a restauração da democracia em 1985, a sociedade civil clamou por ações legislativas e legais para combater a apropriação de terras. Uma reportagem publicada pela revista VEJA em 1999 motivou a administração de Fernando Henrique Cardoso a rever a legalidade de propriedades amazônicas excepcionalmente grandes. A secretaria do INCRA em Manaus realizou uma auditoria das propriedades de terra com mais de 10.000 hectares, identificando mais de 2.900 propriedades que abrangiam aproximadamente 87 milhões de hectares. Os possíveis proprietários foram solicitados a fornecer documentação que comprovasse suas reivindicações. A auditoria fez com que o INCRA rescindisse títulos relativos a 63 milhões de hectares.

O escândalo também motivou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que investigou a transferência ilegal de terras públicas em sete dos nove estados da Amazônia Legal. Chamada de CPI do Grilagem, a investigação identificou mais 37 milhões de hectares de florestas públicas que haviam sido obtidos de forma fraudulenta por meio de transações envolvendo propriedades de terra entre 1.000 e 1,6 milhão de hectares. O relatório, publicado em 2003, fornece um relato detalhado da mecânica da apropriação de terras, da conivência de funcionários do Estado e da cumplicidade de magistrados que validaram 24 milhões de hectares em audiências judiciais, incluindo 12 milhões de hectares em nome de um único indivíduo.

No início da década de 2000, o Estado brasileiro recuperou aproximadamente 100 milhões de hectares de propriedades florestais ilegítimas após uma revisão das reivindicações de terras na Amazônia Legal pelo Congresso Nacional. Ainda há cerca de 12 milhões de hectares de propriedades florestais privadas maiores que 10.000 hectares registradas no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e mais 16 milhões de hectares de reivindicações registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) que ainda não foram julgadas. Fontes de dados: INCRA (2020) e IMAFLORA (2019).

As ações administrativas do INCRA reverteram algumas, mas não todas, dessas propriedades. As ações judiciais por parte dos proprietários de terras prejudicados atrasaram a resolução, especialmente no Pará, onde as empresas madeireiras continuaram a explorar as terras enquanto o sistema judicial avaliava suas reivindicações. Em 2021, os bancos de dados do INCRA continuaram a listar várias propriedades florestais com mais de 100.000 hectares, incluindo uma propriedade de 913.000 hectares que foi apreendida em 2004 após a investigação do Congresso.

As conclusões da comissão levaram a investimentos na capacidade do INCRA de gerenciar o SNRC, o que incluiu o desenvolvimento de um banco de dados geoespacial preciso: o Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI). Lançado em 2003, o SNCI era um sistema complicado que dependia de funcionários públicos para verificar as informações e depois incorporar a propriedade em seu catálogo digital. Ele foi substituído em 2013 pelo Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), que depende do proprietário da terra (ou consultor) para fazer o upload dos dados por meio de um aplicativo on-line que é posteriormente verificado pela equipe do INCRA.

Por alguma razão, presumivelmente técnica, os dois sistemas nunca foram fundidos. O SNCI incorporou 15.330 propriedades e, em junho de 2021, o SIGEF abrigava cerca de 142.000 (acima dos 73.000 registrados em 2017) . Colocando em perspectiva, o número de propriedades certificadas em 2020 representava apenas quinze por cento das propriedades rurais enumeradas pelo censo agrícola do IBGE de 2017. No entanto, as propriedades registradas no SNRC abrangem sessenta por cento da área espacial total de todas as propriedades agrárias, outro dado que destaca a distribuição desigual de terras públicas na Amazônia Legal.

As deficiências do SNCR levaram ao desenvolvimento de cadastros paralelos. A autoridade tributária nacional conta com o Cadastro Fiscal de Imóveis Rurais (CAFIR). Esse banco de dados não incorpora atributos espaciais, mas inclui proprietários de terras de grande e médio porte que se registram no sistema para pagar impostos e, no processo, legitimar ainda mais suas propriedades. Em 2015, o governo decidiu unir o SNRC e o CAFIR em um único registro: o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR). Presumivelmente, isso faz parte de uma estratégia mais ampla para melhorar a arrecadação de impostos, mas, assim como o CAFIR, o CNIR incluirá tanto proprietários quanto possuidores. O CNIR não emitirá um certificado de regularização de título (CCIR), que permanecerá sob a responsabilidade do INCRA; no entanto, o CNIR gerará um documento a ser exigido para futuras transações de propriedade que, se assim for, funcionará efetivamente como um tipo de escritura. Embora autorizada pela legislação em 2001, a consolidação do CNIR ganhou novo ímpeto desde a eleição de Jair Bolsonaro, e todos os proprietários de terras foram instruídos a se registrar até o final de 2022.

Outro registro de terras paralelo é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado em 2009 como parte do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), uma estratégia intersetorial de grande sucesso para combater o desmatamento ilegal (consulte o Capítulo 7). O registro no CAR é obrigatório, mas, para garantir seu sucesso, as autoridades e as partes interessadas do setor privado criaram vários incentivos para promover a participação.

Os incentivos positivos incluem o acesso a crédito subsidiado e o fornecimento de assistência técnica. Os incentivos negativos incluem barreiras para a comercialização de safras e de gado que são impostas a comerciantes de commodities e frigoríficos. As empresas usam o CAR para monitorar o desmatamento e (supostamente) excluir de suas cadeias de suprimentos os produtores que desmatam ilegalmente. O agronegócio tem promovido agressivamente o CAR como um componente-chave em sua estratégia para proteger os mercados internacionais do Brasil contra boicotes de consumidores (consulte o Capítulo 3). Infelizmente, os grileiros de terras estão tentando usar o CAR para estabelecer um histórico de documentação para apoiar reivindicações fraudulentas, uma estratégia que provavelmente teria sucesso, considerando o apoio do governo Bolsonaro à expansão da fronteira agrícola.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) permitiu que centenas de pequenos proprietários obtivessem o registro oficial de suas propriedades no município de Ariquemes, em Rondônia, que foi colonizado na década de 1970 (a). Infelizmente, o CAR também oferece oportunidades para grileiros documentarem reivindicações de terras duvidosas nas florestas públicas adjacentes à BR-163 no município de Novo Progresso, no Pará (b). Fonte de dados: INCRA (2020) e SFB (2020).

Como um cadastro, o CAR evitou as armadilhas do SNCR ao aceitar o registro de todas as propriedades de terra, independentemente do status legal, e ignorando reivindicações de terra conflitantes. Espera-se que os participantes estejam em conformidade com as regulamentações ambientais; no entanto, a inscrição oferece um caminho flexível (aberto) para entrar em conformidade com o Código Florestal (consulte o Capítulo 7). Consequentemente, a resposta dos proprietários de terras foi esmagadora, e o CAR fornece uma descrição alternativa do número e da localização de todas as reivindicações de terras.

A enorme diferença entre o CAR (755.000 propriedades de terra) e o SNCR (135.000 propriedades de terra) destaca a disfunção e a desigualdade nos programas do INCRA para formalizar a posse da terra. As tarefas técnicas associadas à verificação dos atributos legais e geoespaciais de uma propriedade de terra exigem os serviços de um agrimensor profissional. Os grandes produtores têm autofinanciado esse processo porque podem, mas os pequenos proprietários com recursos limitados precisam esperar até que o INCRA organize uma campanha em seu município. A disfunção é evidente no município de Ariquemes (Rondônia), onde centenas de proprietários de terras não possuem CCIRs, embora a região tenha sido colonizada nas décadas de 1970 e 1980.

“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).

Leia as outras partes extraídas do capítulo 4 aqui:

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