Na madrugada de 14 de maio, o cacique Lúcio Tembé foi baleado na cabeça por pistoleiros em uma estrada no Pará, denunciam líderes indígenas.
Esse é o mais recente episódio de violência em uma área onde eclodiram conflitos de terra entre a maior produtora de óleo de palma do país e comunidades locais, a chamada “guerra do dendê”, conforme reportado pela Mongabay desde outubro.
O Ministério Público Federal levantou a possibilidade de o crime estar relacionado a conflitos com empresas de óleo de palma na região e solicitou medidas urgentes da Polícia Federal e da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), tendo em vista o intenso nível de conflituoso da região.
Em 16 de maio, foi anunciado um comitê de crise para conter a escalada da violência na região; o crime está sendo investigado pela Polícia Federal e pela Delegacia de Quatro Bocas, que solicita que qualquer informação relevante seja encaminhada via Disque-Denúncia, pelo número 181, com sigilo garantido.
Esta reportagem recebeu suporte do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center, do qual Karla Mendes é bolsista.
Um comitê de crise vai investigar a tentativa de assassinato contra o cacique Lúcio Tembé em uma área do Pará que ficou conhecida pela “guerra do dendê” devido à eclosão de ocorrências de violência sistemática contra ativistas sem a devida punição.
Na madrugada de domingo, o cacique da aldeia Turé da Terra Indígena (TI) Turé-Mariquita foi alvejado por dois pistoleiros quando ele e outro indígena tentavam desatolar o carro em uma estrada de terra, quando voltavam da cidade de Quatro Bocas para a TI, segundo líderes indígenas, intensificando o clamor por justiça na região.
Queila Tembé, sobrinha de Lúcio Tembé, relatou à Mongabay os detalhes do crime que o indígena que acompanhava seu tio compartilhou com o povo Tembé. “Nesse momento que ele estava parado, chegaram esses dois meliantes encapuzados, [iluminaram] com uma lanterna e dispararam o tiro em direção à cabeça dele”, disse Queila Tembé em uma mensagem de áudio. “Aí o indígena parceiro dele pulou pela frente para tentar salvá-lo. Só que imagina assim: que eles pensaram que como pegou na cabeça dele, que ele tinha morrido. Então pegaram a moto e seguiram em direção à aldeia”.
Ela disse que soube do crime por meio de telefonemas de parentes e que eles foram juntos ao local, onde confirmaram a veracidade do fato. “Me senti muito triste e ao mesmo tempo tempo indignada com o acontecido. A reação da família é de muita revolta”. Lúcio Tembé estava internado em um Centro de Terapia Intensiva (CTI) na região metropolitana de Belém e sua situação de saúde era estável enquanto ele aguardava ser submetido a uma cirurgia, prevista para 20 de maio, segundo a sobrinha.
“Ele está tomando medicamentos para diminuir o inchaço do rosto, [pois] fraturou o maxilar e estourou os tímpanos do lado direito”, disse à Mongabay Miriam Tembé, prima do cacique, que pede que a justiça acabe com a impunidade na região. “Nós estamos angustiados e pedimos socorro, pedimos que à justiça nos dê resposta, por que tanta impunidade, as violências acontecendo, os ataques contra nós e nada está sendo feito por parte da justiça”.
“Nosso sentimento é de revolta e de injustiça. Não vemos por parte do estado e órgãos competentes nenhum apoio em nosso favor”, disse Miriam Tembé, que é presidente da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará, em mensagem de texto. “Tanta violência contra nós povos tradicionais e a justiça não age. Será que mais vidas teremos que perder para que algo seja feito?”.
De acordo com Queila Tembé, a cirurgia de Lúcio Tembé em 20 de maio foi bem sucedida; ele voltou para a aldeia em 22 de maio, conforme divulgado nas redes sociais por sua família.
Em comunicado por e-mail, a Polícia Federal informou que abriu inquérito para investigar o crime e que uma equipe foi enviada ao local para fazer um levantamento inicial, atendendo à solicitação do Ministério Público Federal (MPF). O MPF convocou uma reunião de emergência com diversas autoridades do Pará para 15 de maio; a criação de um comitê de crise para conter a escalada de conflitos na região foi anunciada no dia 16.
Esse é o mais recente episódio de violência em uma área onde eclodiram conflitos fundiários entre a maior produtora de óleo de palma do país e comunidades locais, a chamada “guerra do dendê”, conforme reportado pela Mongabay desde outubro.
Desde 2021, a Mongabay tem publicado investigações com denúncias de grilagem de terra, violência, contaminação da água por agrotóxicos e outros crimes ambientais atribuídos a empresas de óleo de palma no Pará.
Especificamente na região da Turé-Mariquita, a Mongabay publicou uma investigação de 18 meses que revelou evidências de contaminação da água pelo uso de agrotóxicos pela Biopalma — adqurida pela Brasil Biofuels (BBF) em 2020 — o que impactou não apenas o povo Tembé da Turé-Mariquita, mas também em outras terras indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores. A investigação também revelou outras questões desencadeadas pelo cultivo do palma na região: poluição do solo, desmatamento, escassez de peixes e caça, juntamente com questões de saúde e conflitos sociais e fundiários.
Lúcio Tembé foi nosso guia e fonte-chave para a investigação. “O dendê trouxe só muitos problemas pra nós. Primeiro, trouxe destruição da nossa fauna, da nossa flora, dos nossos rios”, disse Lúcio Tembé em uma entrevista em 2019 enquanto olhava para o Rio Turé. “Essa água não serve. De primeira, nós bebíamos. Esse rio aqui era o mercado de toda a população, onde eles pescavam, a mata onde caçavam”.
O cacique nos disse que o povo Tembé não foi devidamente consultado antes da instalação do empreendimento de óleo de palma da Biopalma. “Não fomos ouvidos para a construção desse projeto; quando a gente viu, o projeto já estava instaurado em torno do nosso território”.
Durante a reportagem de campo na região no final de 2019, a equipe da Mongabay escapou por pouco de um assalto ao ser perseguida por homens em duas motocicletas em alta velocidade no mesmo caminho em que Lúcio Tembé foi baleado em 14 de maio, enquanto voltava da Turé-Mariquita para Quatro Bocas à noite.
A investigação da Mongabay foi chave para o MPF obter uma decisão judicial para provar os impactos ambientais dos agrotóxicos usados nas plantações de palma para comunidades indígenas do Pará. A investigação ganhou o segundo lugar no prêmio na Sociedade de Jornalistas Ambientais dos Estados Unidos (SEJ) por excelência em reportagem investigativa e o terceiro lugar no prêmio do Fetisov Awards por excelência em jornalismo ambiental.
Conflitos ligados ao dendê
Os conflitos entre as comunidades locais e as empresas de óleo de palma na região de Tomé-Açu remontam a uma década. Em novembro de 2015, ocorreu a primeira grande mobilização de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e moradores de comunidades vizinhas contra as empresas de óleo de palma. Cerca de 140 pessoas se reuniram e ocuparam a Fazenda Vera Cruz da Biopalma, paralisando a empresa por 11 dias. Lúcio Tembé foi um dos líderes da ocupação. Um líder quilombola foi preso por oito meses; o cacique também foi detido.
Porém, a violência aumentou na região após a venda da Biopalma à BBF, afirmam os líderes indígenas e as autoridades, que dizem que os acordos anteriores entre a Biopalma e as comunidades não estão sendo honrados pela BBF. Há também disputas de terra sobre áreas reivindicadas por ambos os lados.
A situação piorou ainda mais desde setembro de 2022, com a escalada da violência desencadeada por disputas de terras entre a BBF, de um lado, e as comunidades indígenas e quilombolas de outro. Enquanto as comunidades argumentam que a BBF ocupou indevidamente suas terras ancestrais e acusam a empresa de usar seguranças privados para ataques violentos contra as comunidades, a empresa nega as acusações, dizendo que foram as comunidades locais que atacaram seus funcionários. Como resultado, a BBF registrou mais de 750 boletins de ocorrência desde 2021 contra eles por “roubo, furtos, incêndios criminosos, tentativas de estupro, agressões de trabalhadores, tentativas de homicídio, disparos de armas de fogo, entre outros”, a empresa disse à Mongabay no final de abril, quando foi contatada sobre um conflito com quilombolas.
Como previamente reportado pela Mongabay, o MPF está investigando a ação de milícias armadas e empresas de segurança privada na região, além de denúncias de crimes e irregularidades contra as empresas de óleo de palma.
Em comunicado à imprensa em 14 de maio, o MPF disse que “é possível que esse seja mais um episódio de violência que os indígenas Tembé de Tomé-Açu estão sofrendo por causa de conflito com empresas produtoras de dendê na região, o que impõe a atuação dos órgãos federais, tendo em vista que a disputa envolve direitos coletivos dos povos indígenas”.
Em um comunicado enviado por e-mail em 20 de maio, a BBF negou qualquer envolvimento no ataque contra Lúcio Tembé. Para a empresa, as acusações do MPF que relacionam o aumento da violência na área à chegada da Biopalma de “clara estratégia de ilação, com objetivo de tirar o foco das investigações e prejudicar a empresa”, acrescentando que as “acusações levianas” foram feitas “sem provas e/ou fundamentos do envolvimento da empresa contra povos tradicionais do Estado do Pará”.
O MPF informou que solicitou medidas urgentes à Polícia Federal e à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) para esclarecer a tentativa de assassinato contra o cacique. “Requer-se à autoridade policial federal a atribuição de caráter de urgência e prioridade ao cumprimento das atuais e futuras medidas investigativas no inquérito policial em questão, tendo em vista o intenso nível de conflituosidade da região do nordeste paraense, com riscos concretos à vida e à integridade física dos indígenas”, escreveu no requerimento o procurador-chefe do MPF no estado, Felipe de Moura Palha.
Em uma declaração por e-mail, a Segup disse que as equipes da Polícia Civil e da Polícia Militar atuaram na ocorrência contra Lúcio Tembé e que o caso é investigado pela Delegacia de Quatro Bocas: “No momento, diligências são realizadas com objetivo de coletar todos os vestígios e provas que possam contribuir para a elucidação do crime, com a identificação dos responsáveis. Informações que auxiliem nas investigações podem ser repassadas via Disque-Denúncia, número 181. O sigilo é garantido”.
Em uma declaração enviada por e-mail em 22 de maio, a Segup disse que a Polícia Civil prendeu em flagrante Juscelino Ramos Dias, conhecido como “Passarinho”, como o principal suspeito da tentativa de homicídio contra Lúcio Tembé. Segundo a Segup, a prisão do suspeito foi convertida pela Justiça em prisão preventiva e o caso continua sendo investigado pela Delegacia de Homicídios de Quatro Bocas por meio de um inquérito. O delegado-geral da Polícia Civil, Walter Rezende, disse em um comunicado à imprensa que a possível motivação do crime teria sido “a venda de substâncias ilícitas em terras indígenas, o que não era aceito por Lúcio Tembé”.
A BBF acrescentou que os detalhes da diligência do caso divulgados por Rezende corroboram “a situação que a empresa vem alertando e notificando as autoridades públicas há mais de dois anos: Tomé-Açu e Acará estão dominadas pelo crime, invasores indígenas e o crime organizado tomam conta do local”. Segundo a empresa, “as áreas invadidas se tornaram pontos de tráfico de drogas” e que “trabalhadores e moradores são vítimas desta teia do crime, que age no roubo de frutos de dendê para vendê-los a empresas receptadoras que atuam de forma ilegal na região”.
‘Basta’
“Para o MPF, basta”, Palha, o procurador-chefe do Pará, disse na reunião, de acordo com um comunicado à imprensa de 16 de maio. “É mais um triste episódio de grave violação de direitos humanos na Amazônia. Todo processo de implantação de grandes projetos precisa ser revisto e levar em consideração os direitos das comunidades tradicionais que são vilipendiados diariamente”. Com relação à tentativa de assassinato do cacique Lúcio Tembé, Palha disse que “ainda é muito cedo para apontar os culpados”, mas o MPF “acompanhará de perto as investigações”.
Em um vídeo-manifesto, o líder indígena Paratê Tembé, filho de Lúcio Tembé, disse muito emocionado: “A gente só pede justiça para que isso não venha a continuar acontecendo, tanto na nossa região quanto no Brasil todo, o massacre dos povos indígenas. Nós pedimos intervenção do estado pela vida do nosso povo”.
“Nós queremos proteger a floresta e salvar nossas vidas. Salvar a vida dos nossos guerreiros, das nossas lideranças, dos nossos caciques, das nossas crianças, que correm risco”, disse ele no vídeo divulgado em 15 de maio. “Não existe árvore em pé se nós não estivermos vivos”, acrescentou Paratê Tembé. “Nós queremos salvar nossas vidas também”.
Paratê Tembé relembrou décadas de assassinatos de líderes indígenas, quilombolas e ribeirinhos sem que ninguém fosse preso. “Denúncias a gente faz a todos e ninguém faz nada. Só tem sensibilidade quando morre alguém ou quando tem tentativa de homicídio”.
Relembrando os detalhes do crime, ele disse que seu pai sobreviveu “por um milagre”. “Estamos rezando e continuamos rezando para que ele sobreviva à cirurgia. Tupã vai nos ajudar. [A gente] não teve nem tempo de chorar” disse ele em lágrimas. “Precisamos, precisamos de proteção”.
Atualização (24 de maio de 2023): Esta reportagem foi alterada para incluir a resposta da BBF e novas informações sobre o estado de saúde de Lúcio Tembé e sobre as investigações.
Imagem de destaque: Lúcio Tembé, cacique da aldeia Turé-Mariquita no Pará. Imagem cortesia de Paratê Tembé.
Karla Mendes é repórter investigativa da Mongabay no Brasil e bolsista do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center on Crisis Reporting. Leia outras matérias publicadas por ela na Mongabay aqui. Encontre-a no Twitter, Instagram e LinkedIn.
Áudio relacionado: ouça a repórter da Mongabay, Karla Mendes, debatendo as principais revelações da investigação sobre contaminação da água por agrotóxicos, além da pesquisadora Sandra Damiani e do procurador da República Felício Pontes Júnior no podcast da Mongabay (em inglês):
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2021/03/desmatamento-e-agua-contaminada-o-lado-obscuro-do-oleo-de-palma-sustentavel-da-amazonia/