Na região do Alto Jequitinhonha, famílias têm desafiado os grandes cultivos comerciais e preservado dezenas de sementes tradicionais ao longo das gerações.
A iniciativa resultou na publicação do Catálogo de Sementes Crioulas do Alto Jequitinhonha, que reúne 132 variedades mantidas e cultivadas por 28 famílias da região.
Para garantir a segurança alimentar, os agricultores têm que enfrentar algumas adversidades, como a escassez de água provocada pela monocultura do eucalipto e pelos longos períodos de estiagem, decorrentes das mudanças climáticas.
No nordeste de Minas Gerais, a cerca de 500 quilômetros da capital Belo Horizonte, fica localizado o Alto Jequitinhonha. Neste trecho do país, ponto de convergência entre Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga, se encontram centenas de famílias de agricultores familiares que têm mantido, ao longo dos anos, práticas agroecológicas de resistência que promovem a segurança alimentar.
Esta tradição tem obtido reconhecimento e um dos resultados é a criação do Catálogo de Sementes Crioulas do Alto Jequitinhonha, que reúne 132 variedades mantidas e cultivadas por 28 famílias distribuídas principalmente nos municípios de Turmalina, Veredinha e Minas Novas.
A iniciativa da publicação, em 2019, é do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), que integra a Rede Cerrado, em parceria com o Centro de Voluntariado Internacional (CeVI Itália), a Comune di Mereto di Tomba (Itália) e a Cáritas Brasileira – Regional Minas Gerais.
O catálogo é um registro de sementes que vêm passando de geração em geração, à margem dos grandes cultivos comerciais, do uso de agrotóxicos e da engenharia genética. Resistiram ao tempo e, no Alto Jequitinhonha, estão preservadas nas pequenas propriedades de agricultores que são conhecidos como “guardiões das sementes crioulas”.
Na lista de sementes do catálogo há diversas variedades de abóbora, amendoim, arroz, café, cana, fava, milho e quiabo, entre outras. Só de feijão, são 28 tipos. Há também produtos menos usuais, como purunga, caxi, marimba e cará-moela. “É uma forma de manterem o patrimônio genético, com a proteção da agrobiodiversidade”, diz Ademilson Gonçalves da Silva, técnico em Agropecuária do CAV.
Os pequenos produtores rurais mantêm suas propriedades principalmente em grotas, com cultivos que garantem primeiramente a própria subsistência. Muitas famílias do Alto Jequitinhonha também têm conseguido escoar parte de suas produções com sementes crioulas em feiras municipais e de trocas, como também no fornecimento ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ambos do Governo Federal.
Eucalipto e estiagem são desafios para os agricultores
Os desafios não são poucos e demonstram a resiliência destas comunidades. A região do Alto Jequitinhonha é ocupada por mais de 20 municípios, nos quais o enfrentamento de períodos de estiagem e seca, além de chuvas irregulares, expõem uma faceta que impõe aos agricultores encontrar meios de manutenção das reservas de água. Como alternativa, eles recorrem a cisternas e pequenas barragens.
O mais interessante, como se tem observado ao longo dos anos, é que as variedades crioulas cultivadas na região mantêm uma adaptabilidade aos diferentes tipos de solos e às alterações climáticas.
“Mais um desafio nesta região é a significativa ocupação, desde os anos 1970, da monocultura do eucalipto, uma espécie exótica, nas regiões de chapadas, que interfere na absorção da água e ocupação do solo e consequentemente nas relações dos agricultores com o território”, avalia Anna Crystina Alvarenga, coordenadora colegiada da Cáritas Brasileira – Regional Minas Gerais.
“Por outro lado, há pressões nas esferas legislativa, do agronegócio e das indústrias de sementes”, observa Alvarenga, da Cáritas. “Estamos em um processo muito complexo, com pressões sobre os marcos políticos que os agricultores conquistaram, como manter a autogestão sobre as sementes crioulas e fazer trocas, por exemplo”, diz ela.
Silva, do CAV, analisa que as associações de agricultores familiares são um instrumento de fortalecimento para o enfrentamento desses desafios.
O principal marco legal de direitos conquistados, neste processo, é a Lei Federal nº 10.711/2003, que reconheceu as variedades crioulas e tradicionais como sementes passíveis de serem produzidas, distribuídas, trocadas e comercializadas entre agricultores familiares.
Alvarenga, da Cáritas, destaca a importância do Alto Jequitinhonha do ponto de vista sociocultural e de agrobiodiversidade. “O catálogo traz esta diversidade de produção de espécies de sementes crioulas, um patrimônio genético, que contribui para a soberania alimentar, pois cada variedade tem uma característica nutricional específica. É uma forma de luta dos agricultores familiares por seus direitos”, afirma Anna.
Segundo ela, nestas unidades produtivas agroecológicas há geralmente resiliência a pragas e ervas daninhas. “É um aspecto que demonstra a sustentabilidade ecológica e para a saúde, com o não-uso de agrotóxicos”, justifica.
Silva, do CAV, esclarece também que a maioria dos agricultores do Alto Jequitinhonha mantêm uma característica importante, que é o cultivo durante o ano inteiro, para a manutenção de sua segurança alimentar. “Temos terras férteis e a agricultura familiar tem se fortalecido cada vez mais. O período das chuvas é predominante entre outubro e fevereiro e nos outros meses as famílias enfrentam os períodos mais secos, com armazenamento de água”, explica.
Os ciclos de seca na região, porém, têm sido mais longos nos últimos anos, em decorrência das mudanças climáticas. Segundo a agricultora Maria Aparecida Lima Pinheiro, da comunidade de Inácio Félix, no município de Minas Novas, a cisterna e a pequena barragem que tem em sua propriedade já não são capazes de armazenar toda a água que precisa. “Agora estamos tentando fazer uma contenção para segurar a água do córrego”, diz.
João Domingos Oliveira de Macedo, agricultor na comunidade de Ribeirão Soares, em Turmalina, destaca a importância da manutenção contínua para a provisão da água o ano todo: “Se a cada ano seca um córrego, a cada ano diminui a vida; se a cada ano se mantém uma nascente, há a garantia dessa vida. Hoje eu tenho uma no meu terreno, depois de um esforço de conservação.”
Histórias de vida ligadas à terra
As histórias de vida destes agricultores familiares destacam uma característica em particular, que é a identificação da manutenção das sementes crioulas como uma relação de harmonia da vida rural com a conservação ambiental.
João Domingos Oliveira de Macedo ressalta a tradição da agricultura familiar em sua trajetória: “Da minha geração para trás em minha família, todo mundo foi agricultor. Eu aprendi a trabalhar na roça, brincando com meu pai, desde os 5 anos de idade.” O mais velho de 10 irmãos, ele cultiva arroz, amendoim, feijão, mandioca, milho e frutíferas.
Segundo Macedo, por muito tempo houve a visão equivocada de que os agricultores que mantinham sementes crioulas eram ignorantes, por não aderir à industrialização. “Hoje a gente entende que estas sementes valem ouro. A tecnologia com a adubação orgânica ajuda na manutenção da qualidade.”.
Com estes cultivos orgânicos, o agricultor criou sete filhos e hoje se dedica sozinho ao cultivo em 2 hectares de terra. “Vendemos por muitos anos na feira livre. Hoje forneço ao PNAE e ao PAA e até para supermercado”, diz ele.
“A minha expectativa de futuro é poder atrair outras pessoas que queiram manter este tipo de ambiente. A nossa riqueza é esta vida de harmonia com a natureza”, considera Macedo.
História parecida é a de Maria Aparecida Lima Pinheiro, que também é presidente da Associação de Agricultores Familiares e Feirantes de Minas Novas, atualmente com 110 associados. “Desde os nove anos, mexo na lavoura. Eu ajudava meus pais, que eram também agricultores. Andava longas distâncias para vender nossas pequenas produções e consegui estudar um pouco na escola rural”, diz.
Com a bagagem trazida da infância, ela começou a cultivar sementes crioulas e mudas em sua propriedade a partir de 2013, após se dedicar à produção de farinha e doce. “Depois de um empréstimo, conseguimos construir uma pequena estufa para cultivar hortaliças e legumes e começamos a fornecer ao PNAE. Hoje, além do consumo próprio, eu e meu marido José Maria produzimos e vendemos na feira, de porta em porta e até pelo Whatsapp. Nossa rotina diária começa às 5.”
Nenhum tipo de agrotóxico entra na plantação, segundo Maria Aparecida. “A gente faz composto orgânico, biofertilizante e com essa prática já conseguimos colher pé de alface até de um quilo”, afirma, orgulhosa.
O agricultor familiar Valdir Gonçalves lembra que seu primeiro contato com a terra foi com seu pai, que era tropeiro e também plantava. “Desde os meus seis anos, eu gostava de acompanhar meu pai na roça. Mas foi na minha fase adulta, a partir de 2006, depois de ter diferentes profissões, que comecei a me dedicar à agricultura familiar, participando do movimento do CAV. Consegui as primeiras sementes crioulas com os vizinhos e anualmente em feira de troca de sementes”, conta.
Em sua propriedade rural, Gonçalves, sua esposa e uma filha trabalham com o cultivo da terra. “Plantamos milho, feijão, mandioca, mudas nativas do Cerrado e principalmente guandu. Acerola, laranja e hortaliças, fornecemos ao PNAE e ao PAA. Para mim, a principal importância de manter as sementes crioulas é a preservação do meio ambiente. Essas sementes já estão climatizadas e não precisamos usar químicos. Consumimos o que plantamos e também adquirimos de outros agricultores”, diz.
O agricultor familiar conta que, quando adquiriu a propriedade, estava totalmente degradada. Hoje tem duas nascentes e mata ciliar conservadas. “Isso é resultado de a gente trabalhar com agroecologia e orgânicos. A importância de a gente viver assim é por causa da qualidade de vida. Na roça, parece que a gente ganha pouco, mas quando vemos que comemos sem química nenhuma, além de respirar ar mais puro e ter sossego, percebemos o contrário.”
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Imagem do banner: Sementes crioulas de feijão. Foto: Assembléia Legislativa do Ceará/divulgação.