Com o aumento de uma combinação perigosa de temperaturas abrasadoras e fortes ventos, o Pantanal foi atingido por incêndios que devastaram ao menos 2,4 milhões de hectares em outubro e novembro de 2019.
Em janeiro, apenas dois meses após a primeira crise e durante o que deveria ser a temporada de chuvas, o fogo irrompeu novamente. Em ambos os períodos, as chamas invadiram o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense.
Segundo fontes locais, os incêndios foram resultado de queimadas feitas por fazendeiros e que fugiram de controle na paisagem seca. Bombeiros foram pegos de surpresa com os incêndios fora de estação, uma vez que o estado normalmente envia equipes de resposta em dezembro e entra em fase de planejamento para a próxima temporada de incêndios. Após o fogo queimar por mais de um mês, as chamas foram extintas quando a chuva finalmente caiu, em meados de fevereiro.
PORTO JOFRE, Mato Grosso – Tudo o que brota do terreno carbonizado deste trecho do Pantanal são tufos de grama recém-germinada. Em meio às cinzas e à vegetação queimada, Eledilson Nunes de Souza levanta sua mão, marcando uma linha na altura de seu peito.
“Nessa época do janeiro, está tudo alagado aqui – a água vem até aqui”, diz este imponente homem de 43 anos. “Mas, nesse ano, as chuvas não vieram”.
Apenas algumas semanas antes, Souza estava na mesma área ajudando os bombeiros a combater as chamas que se aproximavam rapidamente da área de conservação Panthera Brasil, onde trabalha há 11 anos.
“O fogo estava fora de controle”, diz, apertando os olhos contra o sol do final de tarde. “Fizemos o possível para combatê-lo, mas ele ainda avançou”.
A fazenda – uma organização sem fins lucrativos que comanda projetos de conservação de onças-pintadas – fica na localidade de Porto Jofre, município de Poconé, na divisa de Mato Grosso com Mato Grosso do Sul. Nela, a rodovia Transpantaneira chega a um fim abrupto, interrompida pelo Rio São Lourenço. Depois disso, não há grandes estradas e a única maneira de explorar mais a fundo a região é usando barcos.
A área, a cerca de 250 quilômetros da capital Cuiabá, é parte da maior planície alagada contínua do mundo, o Pantanal. Todos os anos, entre dezembro e março, fortes chuvas atingem a região, alagando cerca de 80% das terras. O bioma soma quase 210 mil quilômetros quadrados, distribuídos entre Brasil, Bolívia e Paraguai.
A região é lar de um grande número de espécies de plantas e animais, alguns deles – como a arara-azul-grande – ameaçados de extinção. Em uma visita recente a Porto Jofre, tucanos disparavam de árvore em árvore e caleidoscópios de borboletas alaranjadas brilhavam no ar. No interior do bioma, dezenas de jacarés-do-pantanal se esparramavam nas margens das áreas alagadas. Uma onça-pintada e seu filhote descansavam à beira da estrada empoeirada que serve de único acesso à área.
No entanto, a rica biodiversidade da região tem sido ameaçada por uma onda de incêndios fora de estação desde o começo do ano, que alarmou ambientalistas, autoridades e comunidades locais.
Grande parte das chamas se concentraram no município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, e em Poconé, onde fica a fazenda da Panthera Brasil. As chamas consumiram amplas faixas de diversas áreas de conservação, incluindo partes do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense.
Entre 1 de janeiro e 25 de fevereiro, houve 3.139 alertas de incêndio em Mato Grosso, segundo dados de satélites da Universidade de Maryland, e cerca de um quarto aconteceu dentro de áreas com vegetações intactas. Destes alertas nesse período, 1.313 – ou 42% – foram registrados em Poconé.
“Esses incêndios foram completamente atípicos”, diz o tenente Daniel Alves de Moura, do 1o Batalhão de Bombeiros Militar em Cuiabá, convocado para combater as chamas em Porto Jofre no final de janeiro. “Eram totalmente fora do que é normal nessa época”.
Os incêndios recentes no Pantanal intensificaram os danos ocorridos no ano anterior, quando uma combinação perigosa de temperaturas altas e de fortes ventos alimentou chamas sem precedentes em outubro e novembro, que atingiram ao menos 2,4 milhões de hectares na região.
“Os incêndios no Pantanal são uma catástrofe”, diz Júlio César Sampaio, coordenador do Programa do World Wildlife Fund (WWF) para o Pantanal. “O fogo afetou áreas protegidas, comunidades, populações ribeirinhas. E, claro, muitos animais foram impactados”.
Mudança climática, queima imprudente
Incêndios não são incomuns no Pantanal durante a estação seca, quando a aridez aumenta, assim como a temperatura. No entanto, a onda de chamas durante o que é normalmente o período mais chuvoso da região surpreendeu muitos – fontes locais dizem ser o resultado de uma complexa interação entre padrões de mudança climática e comportamento humano imprudente.
Cada vez mais, a precipitação tem se tornado mais errática e menos uniforme na região. Em alguns momentos, a chuva cai em pequenas partes do Pantanal, enquanto pedaços vizinhos de terra sofrem por meses com secas, segundo Alex Trindade, analista ambiental da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso.
Neste ano, padrões de mudança climática entraram em foco: quando amplas faixas do Pantanal deveriam estar alagadas, a região estava, ao invés disso, passando por um prolongado período de seca. Isso torna o bioma mais suscetível a incêndios provocados por causas naturais, como raios, que são comuns na área.
Trindade destaca que a mudança na frequência e na severidade dos padrões climáticos El Niño e La Niña também podem estar desempenhando um papel na mudança climática do Pantanal. Durante uma fase do El Niño, algumas partes do Brasil passam por fortes chuvas, enquanto outras sofrem com prolongados períodos de clima seco.
“Normalmente, neste período, quando o fogo pega, é apagado logo em seguida pelas chuvas”, diz o analista. “Mas estamos vendo mudança no padrão das chuvas. Não é apenas a quantidade da chuva, mas também a distribuição da chuva que está tendo um grande impacto”.
Embora os eventos do El Niño sejam naturais, pesquisas indicam que eles estão acontecendo com mais frequência devido à mudança climática. Mas a atividade humana também desempenhou um papel mais direto nos incêndios no Pantanal.
Mato Grosso é uma potência agrícola, representando uma grande fatia da produção de soja, milho e carne do Brasil. Embora seja o terceiro maior estado do Brasil em tamanho, tem uma população de apenas 3 milhões de pessoas, divididas em uma área cerca de 10 vezes o tamanho de Portugal. A região também é lar e quase 30 milhões de cabeças de gado.
Para agricultores, queimadas são uma maneira comum de limpar e reutilizar pastos. Há restrições em vigor com objetivo de controlar quando queimadas acontecem e para garantir que as chamas pequenas não saiam de controle. Mas, na realidade, esse tipo de incêndio é feito de uma maneira muito mais casual.
Sob o sistema atualmente em vigor, a Secretaria do Meio Ambiente entrega autorizações e supervisiona o processo de queimadas com o propósito de limpar áreas para a agricultura. A secretaria também é encarregada de punir pessoas que fazem queimadas ilegalmente sem permissões.
“Se eles detectarem que você está usando fogo sem autorização, eles te dão uma multa”, diz Sampaio. “Mas é muito raro. Não é uma situação frequente porque não há pessoas suficientes para monitorar isso”.
Até mesmo quando agricultores têm autorização para limpar suas terras com fogo, não há supervisão suficiente para garantir que as práticas sejam as melhores, acrescentou Sampaio. Eles são em maioria deixados com seus próprios equipamentos, sem diretrizes detalhadas sobre como e quando fazer as queimadas, com intenção de evitar incêndios florestais não intencionais.
“Queimar é a maneira mais barata e eficiente para o agricultor limpar a terra”, diz Alves de Moura. “E os incêndios que estamos vendo frequentemente são aqueles que começam assim e saem de controle”.
Solo do Pantanal depois de um incêndio. Foto: Ana Ionova/Mongabay.
No entanto, também há casos de queimadas ilegais feitas por grileiros que buscam lucros ao desmatar e vender terras. Outros, no entanto, busca expandir suas posses agrícolas ao transformar terras em pastos e plantações de soja.
As queimadas também são praticadas por algumas comunidades indígenas que usam fogo para limpar terras para cultivo ou para atrair animais para áreas abertas com o intuito caçá-los, segundo fontes locais. Mas, embora no passado um clima mais úmido impedisse que o fogo se espalhasse, as chamas agora saem de controle com cada vez mais facilidade e frequência.
No fim, a maioria dos incêndios no Pantanal pode ser rastreada até uma fonte humana, diz o coronel Paulo André da Silva Barroso, secretário-executivo do Comitê Estadual de Gestão do Fogo, de Mato Grosso, e presidente do Comitê Nacional de Proteção Contra Incêndios Florestais.
“Às vezes é intencional e às vezes é inconsequência”, diz. “Eles acham que conseguem controlá-lo, não acreditam que irá acontecer, fazem no momento errado. E então sai de controle”.
Labirinto de água
Embora as autoridades tenham se mobilizado para enfrentar as chamas que atingiram o Pantanal no final de janeiro e começo de março, combater os incêndios na região foi repleto de desafios. Os bombeiros, por exemplo, foram pegos despreparados para o fogo fora de estação, já que o estado normalmente envia forças de resposta em dezembro e entra em uma fase de planejamento para a próxima temporada de queimadas.
“Esses incêndios… nos pegaram com um certo elemento de surpresa”, diz Barroso. “Porque eles aconteceram em um período quando normalmente temos muita chuva e pouco fogo”.
Há poucos postos permanentes nas áreas mais remotas e unidades de combate a incêndios estão presentes em apenas 22 dos 140 municípios de Mato Grosso. Durante o período seco mais crítico, de julho a outubro, unidades temporárias são enviadas para áreas mais propensas às chamas. Mas, fora dessa janela de tempo, as forças só são enviadas em resposta a crises, de acordo com o tenente Alves de Moura.
“Infelizmente, ainda somos muito reativos”, diz o bombeiro. “Respondemos a incêndios onde há uma necessidade. Não fazemos muito a respeito de prevenção”.
Recursos limitados também significam que autoridades precisam escolher quais incêndios combater, frequentemente focando em unidades federais ou estaduais de conservação que estão sob proteção devido à ecologia especialmente diversa.
Barroso destacou que a crise do ano passado na região levou mais recursos para o estado, que agora planeja expandir o número de brigadas fixas para mais 20 municípios durante a temporada crítica. “Espero que tenhamos um resultado melhor neste ano”, diz.
A maneira singular com que as chamas se espalham no Pantanal torna ainda mais difícil o combate, destaca Alves de Moura. Enquanto em outras regiões do Brasil – incluindo a Amazônia – as chamas engolem vegetação e árvores, incêndios no Pantanal tendem a queimar pouco abaixo da superfície da terra, impulsionados por camadas bem compactas de vegetação combustível decomposta, chamadas turfas. E chamas em turfas são particularmente difíceis de serem extintas.
“Algumas vezes você está apagando o mesmo incêndio duas ou três vezes”, diz Alves de Moura. “Você acha que acabou e volta só para ver fumaça novamente”.
O combate a incêndios no Pantanal também é desafiador por conta da maneira como a região é disposta. As áreas pantanosas formam um labirinto de água e terra, com muitas áreas alagadas e inacessíveis por terra. No Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, onde chamas estavam em meados de fevereiro, forças federais só conseguiram acessar áreas afetadas via ar, de acordo com uma fonte de uma agência governamental.
“Durante a temporada de chuvas… temos muitas áreas alagadas e não temos estradas para acessar essas áreas”, diz Barroso. “Só conseguimos usar aviões ou barcos para combater as chamas”.
Em Porto Jofre, o acesso ruim de estradas para áreas mais internas fez com que todas as forças de resposta só conseguissem tentar cessar estrategicamente o avanço das chamas além da única estrada da região. A ideia era preservar a vasta área adjacente à estrada, ainda intocada pelas chamas e para onde a maior parte dos animais havia fugido, diz Alves de Moura.
“Estávamos tentando assegurar a área desse lado, para que não passasse e destruísse a área maior do outro lado”, diz o tenente, em meio à vegetação queimada próxima à Transpantaneira.
Ele e outros três bombeiros combateram as chamas por uma semana, lutando para impedir que elas avançassem. Apesar disso, os esforços foram reduzidos pelo tamanho e pela intensidade dos incêndios. “Tivemos sucesso em assegurar este outro lado, que ainda está verde”, diz. “Mas, no fim, quem apagou o fogo? A chuva. Se as chuvas não tivessem chegado, estaria queimando até hoje”.
Políticas em jogo
Anos de políticas governamentais mais amplas também podem ter desempenhado um papel. Tradicionalmente, o governo brasileiro desencoraja qualquer tipo de queimada em áreas ricas ecologicamente. Nos anos mais recentes, no entanto, agências ambientais começaram a pensar em como empregar efetivamente a queima intencional e controlada como uma estratégia para reduzir incêndios florestais.
A prática tipicamente consiste em áreas estratégicas intencionalmente incendiadas para reduzir materiais inflamáveis ou para restaurar a saúde de um ecossistema. Estes incêndios de baixa intensidade normalmente são feitos durante meses mais úmidos ou frescos, quando há menos risco de se espalharem e saírem de controle.
“É uma ideia que tem potencial – como nós podemos usar fogo de uma boa maneira para reduzir o risco de incêndios florestais em terras naturais”, diz Sampaio, da WWF. “Mas precisamos ser cautelosos ao aplicá-la – precisamos de muita inteligência, precisamos de dados, precisamos de ciência. Não é algo simples”.
Por meio do fogo cuidadosamente controlado durante a temporada chuvosa no Pantanal, agricultores podem ajudar a eliminar alguns dos materiais combustíveis e reduzir o volume de vegetação suscetível às chamas, de acordo com o coronel Barroso. Sampaio, por sua vez, destaca que treinamentos educacionais para agricultores podem levar a práticas melhores, uma vez que aprendem como e quando limpar suas terras sem causar degradação ambiental.
Essa estratégia já está sendo usada em algumas áreas federais de proteção e territórios indígenas, destaca Barroso. No entanto, o processo para formalizar as regras em torno de queimadas controladas e para ampliar seu uso em unidades estaduais de conservação tem sido lento, com um projeto de lei pendente no Congresso desde 2018.
Enquanto isso, sem um quadro formal em vigor, agricultores fazem queimadas com pouca supervisão e responsabilização, argumentam críticos. Alves de Moura destacou que mais foco em multas e na fiscalização de queimadas ilegais pode gerar uma forte mensagem e ajudar a reduzir incêndios criminosos.
“Precisamos de mais trabalho na aplicação da lei – precisamos ser mais eficazes nisso”, diz Alves de Moura. “Se tivermos sucesso em multar os responsáveis, o número de incêndios cairá automaticamente. Eles saberão que serão responsáveis se fizerem isso”.
Mais integração entre várias agências governamentais também pode ajudar autoridades a combater incêndios de forma mais eficaz no Pantanal. Esforços já estão em andamento: em 2018, mais de dez instituições se juntaram para formar o Comitê de Gestão do Fogo, liderado por Barroso. O grupo consiste em vários braços estaduais e federais, incluindo a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O resultado tem sido uma maior coordenação e Barroso disse que está atualmente elaborando um quadro concreto para aumentar prevenção e políticas no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado. Mas, por ora, a tarefa do grupo continua em grande parte sendo respostas a incêndios, com foco especial na região amazônica matogrossense.
Este pensamento reativo precisa mudar para que autoridades tenham uma chance de controlar as chamas no Pantanal, destaca Sampaio, especialmente se as condições climáticas continuarem mudando. Ao longo dos próximos 50 anos, é esperado que a região tenha menos chuvas e aumento de temperaturas – uma combinação perigosa que pode gerar incêndios mais frequentes e imprevisíveis.
“Estes eventos serão provavelmente mais frequentes no futuro”, diz o coordenador da WWF. “Governos precisam trabalhar o ano inteiro para lutar contra os incêndios – não só gerir as crises”.
Imagem do banner: Onça-pintada vista em meio à vegetação. Foto: Rhett A. Butler/Mongabay.