O ecologista Merlin Tuttle argumenta que há muitas pesquisas e atenção da mídia concentradas nos morcegos com base em vínculos tênues com vírus letais causadores de doenças, como o Ebola.
O vírus Ebola vivo nunca foi encontrado em morcegos, e os virologistas reconhecem que outros animais podem estar envolvidos.
Mas os cientistas captaram cepas vivas de outros vírus perigosos de morcegos, e os pesquisadores argumentam que continuar estudando a associação entre vírus e morcegos (assim como outros animais) acabará ajudando para nos prepararmos melhor para futuros surtos de doenças.
Uma cepa queimada era tudo o que restava na época em que uma equipe de virologistas chegou a Méliandou em 2014. Eles estavam caçando a origem do surto mortal da doença causada pelo vírus Ebola, que havia começado no final do ano anterior. Uma colcha de retalhos de pistas levou os pesquisadores aos restos carbonizados da árvore nesta pequena aldeia guineense contendo não mais do que algumas dezenas de famílias.
A árvore já foi o lar de morcegos que os moradores da região costumavam capturar para uma refeição. Era também um local onde Emile Ouamouno poderia ter estado antes de adoecer. Emile, uma criança de Méliandou, é considerada a primeira pessoa a contrair a doença nesse surto. Com um pouco mais para continuar, os cientistas pressupuseram que a origem do vírus que infectou Emile pode ter sido a árvore e seus morcegos.
Os virologistas disseram a um repórter da Science que não poderiam confirmar se a população de Méliandou havia queimado a árvore para se livrar dos morcegos que eles temiam estar carregando o vírus Ebola. Mas o ecologista Merlin Tuttle tem um pouco de dúvida se era esse o caso. Para ele, esse tipo de perseguição é parte do padrão estabelecido quando há um rumor de que os morcegos podem estar envolvidos em um surto da doença.
“Eu, pessoalmente, tenho documentado casos em que centenas de milhares, às vezes milhões de morcegos, foram enterrados vivos em suas cavernas”, acrescentou, “só porque alguém teve uma dessas ideias malucas antes mesmo de ser testada e não pode ser considerada verdadeira”.
Ainda em 2012, Tuttle e vários colegas viajaram para uma caverna no Parque Nacional Alejandro de Humboldt, em Cuba, onde esperavam ver uma colônia de morcegos emergir. Mas os moradores locais, temerosos dos micróbios causadores de doenças que eles presumiram ser transportados pelos morcegos, fecharam a caverna quando chegaram, comentou.
Tuttle, pesquisador da Universidade do Texas, argumenta que as acusações de confinar os morcegos como fonte de vírus perigosos de doenças como o Ebola são muitas vezes prematuras e grosseiramente exageradas. Ele diz que a especulação prematura pode inflamar o tipo de reação que ele testemunhou em Cuba e suspeita que tenha ocorrido na Guiné.
“Quando alguém aparece com uma manchete assustadora, os morcegos podem ser erradicados antes que alguém descubra que os morcegos não eram culpados”, disse à Mongabay.
O surto de Ebola na África Ocidental foi realmente assustador, matando mais de 11.000 pessoas em 10 países antes de desaparecer em 2016. Uma vez que os morcegos estão ligados a um evento como esse, “Quem em seu juízo perfeito vai tolerar morcegos nessas circunstâncias?”, Tuttle questionou.
Fãs de morcegos
O setuagenário estudou os morcegos em todo o mundo e continua sua defesa pela conservação dos morcegos, não apenas pelos benefícios que eles nos proporcionam. O Serviço Florestal dos EUA informa que cerca de 300 espécies de árvores frutíferas precisam dos serviços de polinização dos morcegos. E um estudo feito na Indonésia constatou que os morcegos e os pássaros aumentaram as produções de cacau em 31%, proporcionando um crescimento anual nos lucros de US$ 730 por hectare para os agricultores.
A biologia e conservação de morcegos têm sido o foco da carreira científica de 55 anos de Tuttle. Agora, ele continua sua missão para defendê-los por meio de suas fotografias, livros e artigos populares, bem como um blog que reúne um grupo vocal de “fãs de morcegos”.
Uma ênfase indevida nos morcegos como portadores de doenças se transformou em pesquisa científica, diz Tuttle. Em um refrão consistente, ele argumenta que um frenesi de evidências científicas especulativas, seguidas por histórias ainda mais especulativas – e às vezes hiperbólicas – por parte de jornalistas, levam à morte indevida de morcegos.
Na visão de Tuttle, os morcegos são tão suspeitos quanto outros animais encontrados nas florestas da África Ocidental e Central, onde todos os surtos de Ebola se originaram. Os cientistas descobriram que chimpanzés, gorilas, um pequeno antílope arisco chamado duiker e vários roedores carregam o RNA do vírus Ebola em sua corrente sanguínea, embora eles só tenham descoberto fragmentos, e não genomas inteiros.
O isolamento de uma cepa viva do vírus Ebola infeccioso dos morcegos indicaria que os morcegos são hospedeiros do Ebola, mas até agora isso é impreciso. Os pesquisadores descobriram anticorpos contra o Ebola no sangue de morcegos, mas também de muitos outros animais. A descoberta desses remanescentes de uma batalha entre o sistema imunológico de um morcego e um vírus é muitas vezes mal interpretada, disse Jens Kuhn, um virologista do National Institutes of Health em Bethesda, Maryland.
“Isso é muito rapidamente interpretado como sinais de infecção [Ebola] por muitas pessoas, mas não significa isso”, disse Kuhn. “Anticorpos significa apenas exposição a algo que é semelhante ao Ebola”.
O desfecho é que ninguém encontrou uma ligação definitiva entre os morcegos e qualquer um dos 25 surtos desde 1976. Como resultado, no momento em que a última epidemia estava diminuindo, começaram a surgir estudos que expressavam dúvidas sobre o papel dos morcegos na doença.
A caça pelas origens
O que os cientistas estão procurando – e o que alguns pensam que pode ser uma espécie de morcego – é o organismo que carrega o vírus Ebola continuamente em sua população, conhecido como reservatório. Seja qual for o reservatório, ele não adoece nem morre sozinho, por isso é uma fonte essencial do vírus para outros organismos.
Mas nem todos os cientistas que procuram um reservatório de Ebola estão obcecados em morcegos.
“Há algo que não se encaixa na minha cabeça com essa história de morcego-Ebola”, disse Siv Aina Leendertz, virologista do Instituto Robert Koch, em Berlim. “Eu não acho que se tenha evidência suficiente no momento para dizer que o Ebola se dissemina continuamente em morcegos”.
Leendertz publicou uma análise em 2016 em que afirmou que a cadeia de infecção pode incluir um inseto aquático como uma efemérida. Ela disse que era apenas um exemplo para demonstrar como um outro animal poderia estar envolvido, o que poderia ser “completamente errado”.
“Se nos concentrarmos apenas nos morcegos frugívoros”, acrescentou Leendertz, “podemos perder outros detalhes que poderiam nos dar mais informações, mais pistas, mais peças para o quebra-cabeça”.
Ainda assim, os anticorpos que os pesquisadores extraíram do sangue do morcego demonstram que esses animais “definitivamente têm algo a ver com isso”, explicou.
Para a maioria de nós, colocar morcegos como portos perigosos de vírus causadores de doenças não é muito difícil, disse Kuhn.
“Isso se encaixa totalmente em nossa narrativa sobre os morcegos, que eles também carregam coisas muito más.”
Satanás, no Inferno, de Dante, assume uma forma de morcego. Sua natureza noturna toca no nosso mais básico medo da escuridão e do desconhecido. E, claro, o vampiro Drácula pode transformar-se em um morcego no famoso romance de Bram Stoker.
Mas, como Leendertz, Kuhn defende a criação de uma rede mais ampla para rastrear os animais que nos conectam aos vírus, como o Ebola. Ele tem um palpite de que um inseto ou outro artrópode pode estar envolvido na transmissão do vírus Ebola de animais para humanos – talvez um carrapato, liberando o agente infeccioso no sangue de outro animal hospedeiro antes que ele chegue até nós.
Nossa associação com os morcegos, tanto no folclore quanto na vida real, remonta a milênios – pense nas cavernas de nossos ancestrais. E essa é uma das razões pelas quais Tuttle vê a reputação de distribuidores de doenças voadoras tão improvável.
“Há milhões e milhões de pessoas todos os anos que comem morcegos”, comentou. “Eu gostaria que houvesse uma boa razão para que as pessoas não pudessem comer morcegos, porque isso causou a extinção de alguns, e certamente está ameaçando muitos outros”.
“A verdade é que não há evidências de que a ingestão de morcegos tenha causado pandemias ou grandes surtos de doenças”, acrescentou Tuttle.
Kuhn concorda que esse relacionamento próximo aponta para o envolvimento de algum outro organismo. Se os morcegos são o disputado reservatório do vírus Ebola, Kuhn disse: “Por que não temos um surto de Ebola após o outro?”.
A resposta? “Há mais sobre [isso] do que apenas morcegos”, disse.
Um problema de imagem
Até cerca de 20 anos atrás, os morcegos eram conhecidos principalmente por serem portadores do vírus da raiva – embora, como agora, as chances de contrair raiva de um morcego são astronomicamente pequenas, com uma média de menos de três casos por ano nos EUA.
A partir do final da década de 1990, no entanto, pesquisas científicas para investigar os papéis dos morcegos na transmissão de outras doenças começaram intensamente. Um grupo de vírus ligados a morcegos invadiu a cena epidemiológica a partir do final dos anos 90.
Depois disso, “Os morcegos tornaram-se ícones”, disse Jens Kuhn.
O vírus Nipah, que causa encefalite potencialmente fatal, atingiu a Malásia em 1998. Isso deixou os porcos doentes e matou mais da metade de suas vítimas, que eram em sua maioria criadores de porcos. Em 2003, os pesquisadores isolaram o vírus vivo Nipah da urina e da saliva de morcegos aparentemente saudáveis, e os estudos agora se referem ao gênero de morcego frugívoro Pteropus como o “reservatório da vida selvagem” da doença.
A Síndrome respiratória aguda grave (SRAG) apareceu na Ásia em 2003, adoecendo 8.100 pessoas. Os cientistas descobriram que os humanos provavelmente pegaram o vírus causador da SRAG de civetas à venda nos mercados locais, e os pesquisadores nunca retiraram o vírus vivo de um morcego. No entanto, em 2005, um artigo intitulado “Morcegos são reservatórios naturais de coronavírus semelhantes à SRAG”, foi publicado na famosa revista Science.
Já que a comunidade científica havia feito a conexão, ainda que tênue, entre a SARS e os morcegos, era isso que a maioria das pessoas lembrava, disse Tuttle, esquecendo que não conseguiram encontrar o vírus vivo.
“Nunca houve qualquer prova de que a SARS era proveniente de morcegos”, acrescentou.
De fato, muitos cientistas que publicam tais pesquisas qualificam suas conclusões e explicam que mais trabalho é necessário. No entanto, tal nuança é muitas vezes perdida na mídia.
Em um relatório de 2014 sobre o início do Ebola na Guiné, publicado no New England Journal of Medicine, por exemplo, os autores referem-se aos morcegos frugívoros como “reservatórios potenciais” do vírus ebola. Mas estimulado pelo que Tuttle vê como uma ênfase exagerada em morcegos no campo da pesquisa em virologia, uma notícia naquele jornal afirmou inequivocamente que os morcegos frugívoros “são reservatórios do vírus”.
Investigações examinando a relação entre morcegos e vírus levaram a novas hipóteses sobre o papel dos morcegos na disseminação de doenças, e revelaram novas constatações sobre como seus sistemas imunológicos lidam com o vírus. Os jornalistas e o público então compreenderam aspectos da biologia única dos morcegos como o começo e o fim da história de como os vírus passam dos animais aos seres humanos.
Kuhn investiga muitas das famílias de vírus associadas aos morcegos, e disse que os elos “fracos” que os cientistas encontraram, como o Ebola, são fáceis de exagerar.
Por exemplo, as agências de notícias populares usam o fato de que os morcegos voam para explicar como esses vírus chegam de um lugar para outro. Essa é uma “simplificação perigosa”, disse Kuhn, que foi “completamente exagerada na mídia”.
Ela também ignora outros animais voadores, disse Tuttle.
“Ok, eles podem viajar longas distâncias, mas os pássaros e insetos também o fazem”, comentou. “Eles não são o único ser capaz de viajar longas distâncias”.
Uma reportagem sob a manchete “Por que os vírus assassinos estão em ascensão”, denominou os morcegos como “provavelmente um dos animais mais perigosos do mundo”.
Parte da história havia sido relatada na Caverna Gomantong, no Bornéu da Malásia, lar dos pequenos salanganas que fazem os ninhos usados para o preparo da sopa de ninho de passarinho, um prato favorito em alguns locais da Ásia. Os trabalhadores escalam até o teto da caverna duas vezes por ano para a lucrativa colheita depois que as aves deixam suas casas. O circuito da trilha que passa pelo cavernoso buraco de 90 metros de altura na floresta também é popular entre os turistas, e não é improvável que eles consigam algum tipo de lembrança pingando do teto da caverna e dos milhões de morcegos e aves que residem lá.
A história avisou: “Pode haver Ebola no cocô que cai em seu ombro”.
Não foi só o vírus Ebola que nunca foi encontrado na Malásia, nem mesmo quaisquer membros de sua família, os filovírus. É impreciso sugerir o risco de Ebola aos visitantes da caverna, mas a implicação mais ampla e insolente é que morcegos estão constantemente lançando vírus mortais. Se esse é o caso, disse Tuttle, por que nenhum dos coletores ou visitantes do ninho adoeceram ou desencadearam um surto depois que saíram da caverna, especialmente porque os humanos têm feito praticamente a mesma coisa por centenas de anos?
“Não há evidências de que qualquer humano em toda a história mundial tenha alguma doença causada pelo pouso de cocô no ombro de um morcego voador”, salientou.
Tuttle usa seu site para criticar tais relatos da mídia, que ele argumenta colocar os morcegos em risco de retaliação, incluindo um publicado pela Mongabay em abril de 2016, que já foi corrigido.
O morcego para por aqui
O quanto é grande a dimensão do efeito da morte intencional de morcegos? Em um estudo de 2016, uma equipe de pesquisadores de morcegos tentou colocar alguns números para essa questão, bem como as outras causas de declínio dos morcegos em todo o mundo, revisando casos de mortes de morcegos que remontam a 1790
Até o início do século 21, eles descobriram que o “assassinato intencional” por humanos era a causa mais significativa de mortes, muitas vezes porque as pessoas os viam como pragas. Então, por volta do ano 2000, quando as turbinas eólicas começaram a surgir, elas se tornaram uma das principais causas de morte. O mesmo aconteceu com a síndrome do nariz branco, uma doença potencialmente fatal nos morcegos causada por um fungo. Mas o estudo não revelou evidências de que as pessoas intensificaram os esforços para destruir os morcegos nos últimos 100 anos, mesmo quando a linha de pesquisas sobre os morcegos portadores de doenças começou há cerca de duas décadas.
Paul Cryan, um biólogo de morcegos do Serviço Geológico dos Estados Unidos e um dos autores da pesquisa, reconhece que a percepção dos morcegos afeta a forma como tratamos esses animais.
“Parece que as pessoas estigmatizam e difamam as coisas que não entendem, e os morcegos estão entre os animais mais incompreendidos”, escreveu Cryan em um e-mail. Mas, com base na pesquisa da equipe, “não esperaria que os esforços de extermínio aumentassem à medida que surgissem novas informações sobre doenças e morcegos”, acrescentou.
Tuttle considerou as conclusões do estudo deficientes. Ele disse que a pesquisa de Cryan e seus coautores não explicava o fato de que os periódicos pararam de relatar “assassinatos humanos deliberados” de morcegos nos anos 80, potencialmente ignorando incidentes mais recentes.
Desde aquela época, “as revistas científicas publicaram quase que exclusivamente artigos de testes de hipóteses, o que significa que não há mais relatos de assassinatos humanos deliberados que anteriormente eram pelo menos algumas vezes relatados”, disse Tuttle.
Mesmo que não sejam denunciados, ele está convencido de que os assassinatos de morcegos continuam. “No México e no restante da América Latina, às vezes é difícil encontrar uma árvore oca que não tenha sido queimada para matar morcegos (erroneamente temidos como morcegos vampiros)”, disse Tuttle. “E, com novas especulações, o assassinato de morcegos pode piorar ainda mais”.
“Na minha experiência, onde quer que eu vá em todo o mundo, as pessoas que temem os morcegos tentam matá-los”, acrescentou.
Tuttle está frustrado com seus colegas cientistas, muitos dos quais seguiram a linha atual de pesquisa de doenças com foco no morcego para concessões lucrativas.
No final de 2014, em meio à crise do Ebola, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou US$ 1,77 bilhão em financiamento para os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) “para preparação e resposta ao Ebola”, que incluiu dinheiro para apoiar pesquisas científicas entre 2015 e 2019.
Esse dinheiro não foi todo para a pesquisa de morcegos, mas Tuttle diz que está fora de sintonia com a ameaça que o Ebola representa para nós. Além disso, ele sugere que o desejo de manter esse fluxo de fundos está distorcendo as conclusões que pesquisadores e periódicos publicam, embora hesite em destacar cientistas pelo nome.
Esses relatórios geralmente transmitem alertas sobre o valor dos morcegos para o ecossistema e que a evidência que liga os morcegos aos vírus não deve ser vista como uma justificativa para matá-los. Muitos artigos de notícias também destacam a importância dos morcegos no controle de insetos e na polinização das lavouras como forma de desestimular a retribuição.
No entanto, disse Tuttle, tais declarações qualificadoras frequentemente aparecem no final do texto, depois que as notícias assustadoras, chamativas e potencialmente perigosas aparecem.
Um desses estudos apareceu na revista Virus Evolution no início de junho de 2017 e estabeleceu um caso para considerar os morcegos como “os principais reservatórios evolutivos” dos coronavírus, o grupo que inclui os vírus que causam SARS e MERS.
O objetivo desse estudo foi encontrar vírus que ainda não são conhecidos pela ciência. É parte de um esforço liderado por pesquisadores do projeto PREDICT, uma iniciativa de US$ 100 milhões financiada pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional para reduzir o risco de pandemias globais.
Tuttle censurou o novo estudo imediatamente, argumentando em uma resposta por escrito que ele compartilhou com a Mongabay que os morcegos são fáceis de capturar em grandes números, tornando-os bons objetos de estudo. Como resultado, encontrar muitos vírus neles não foi surpreendente. (Ironicamente, Tuttle disse que muitos dos cientistas que procuram doenças em morcegos usam uma armadilha que ele inventou.)
“Se eu tivesse muitos milhões de dólares para procurar por vírus, encontraria muitos novos vírus e poderia inventar um monte de contos assustadores sobre como eles estão relacionados a coisas que eram perigosas”, acrescentou.
Tuttle escreveu em uma publicação no dia 14 de junho em seu site que a pesquisa propaga “a apresentação desnecessariamente sensacional dos morcegos como animais excepcionalmente perigosos”.
“Muitos vírus são inócuos ou mesmo benéficos, incluindo alguns que estão intimamente relacionados aos mortais”, escreveu Tuttle em 2 de julho de 2017. “Além disso, o número de vírus encontrados em morcegos não é necessariamente indicativo de risco”.
Ele também disse que a “excepcional diversidade” de coronavírus encontrada em morcegos deve ser esperada, já que os próprios morcegos são “um grupo excepcionalmente antigo, diversificado e disseminado”. Em cerca de 1.300 espécies, um em cada cinco mamíferos conhecidos é um morcego.
O estudo da Virus Evolution foi publicado sob o título benigno de “Global patterns in coronavirus diversity” (Padrões globais na diversidade de coronavírus, em tradução livre). Mas isso gerou a cobertura da mídia sob manchetes como “Os morcegos são reservatórios globais para coronavírus letais”, publicada na seção de notícias da revista Nature.
A busca por vírus que ainda não causaram um surto ou que se mostraram prejudiciais aos seres humanos também atraiu críticas de outros cientistas. Michael Osterholm questiona o valor de gastar tanto para encontrar esses vírus anteriormente desconhecidos. Ele é epidemiologista na Universidade de Minnesota e também lidera uma equipe que está trabalhando para desenvolver rapidamente uma vacina contra o vírus Ebola desde 2014.
Osterholm defende um esforço maior no sentido de desenvolver vacinas e colocá-las nas mãos dos profissionais de saúde, em vez de construir nosso catálogo de vírus com consequências desconhecidas.
“Não me importo se você tem um caminhão de bombeiros que é grande, vermelho e brilhante”, comentou. “Se ele não tiver um motor, qual é a vantagem?”
O morcego que conhecemos
Ainda assim, Osterholm disse que os morcegos estão claramente ligados a “doenças infecciosas muito sérias”, e expressou sua preocupação em desconsiderar todas as evidências que associam morcegos a doenças.
Ainda assim, Osterholm disse que os morcegos estão claramente ligados a “doenças infecciosas muito sérias”, e expressou sua preocupação em desconsiderar todas as evidências que associam morcegos a doenças.
Jens Kuhn concorda que, dado o que aprendemos sobre morcegos e vírus nas últimas duas décadas, especialmente com o vírus Ebola, mais pesquisas são necessárias.
“Você tem que seguir pelos dados que você tem e não pelos dados que você não tem”, disse Kuhn. “Há bastante desse tipo de evidência estranha e anedótica que me levaria a acreditar que os morcegos estão de alguma forma envolvidos nesse quebra-cabeça [do Ebola]”.
Enquanto Kuhn enfatiza o quanto esses vírus são diferentes – “Você não pode juntar todos” – ele oferece uma resposta ao desafio de Tuttle e Osterholm ao valor de identificar vírus novos para a ciência. Entender como esses vírus evoluem e estão relacionados um ao outro pode nos ajudar a estar mais bem preparados para os surtos, comentou.
Agora, é uma busca em que os cientistas ficam na fronteira de seus conhecimentos. Não importa a dica, Kuhn disse: “Nós ainda nem vimos o iceberg”.
A Síndrome Respiratória do Oriente Médio, ou MERS, é um exemplo do que pesquisadores como Kuhn podem obter dessas relações. O coronavírus da MERS – na mesma família do vírus da SARS – pode causar pneumonia e diarreia. Das cerca de 2.000 pessoas infectadas desde 2012, 35% morreram.
Tuttle apontou que quando a MERS eclodiu em 2012, os cientistas e a mídia não procuraram por um culpado.
“Antes que eles soubessem alguma coisa sobre isso, eles praticamente apostaram todas as fichas – eles previram por escrito – que isso é quase certamente vindo de morcegos”, explicou.
Na verdade, os epidemiologistas acabaram descobrindo que o vírus havia sido transportado – ou propagado – para os seres humanos de um animal comum na Arábia Saudita: os camelos (Camelusdromedarius). Os epidemiologistas usam o termo “propagação” para se referir à conjuntura quando um hospedeiro portador do vírus propaga o vírus que está transportando para um organismo de uma espécie diferente.
Mas os humanos domesticaram camelos há milhares de anos. Se nossos companheiros carregadores fossem os últimos reservatórios do vírus MERS, no sentido de que eles carregam o vírus sem mostrar sinais da doença, é lógico que teríamos notado uma propagação para humanos antes de 2012.
Kuhn disse que a história compartilhada deixou os pesquisadores de saúde pública com uma grande questão: “Como esse vírus foi parar em dromedários?”.
Quando os virologistas verificaram a linhagem do vírus MERS, descobriram que “cada vizinho é um coronavírus morcego”, explicou. “A conclusão mais lógica é que esse é, na verdade, um vírus de morcego que foi parar nos dromedários”, tornando os morcegos provavelmente hospedeiros e possivelmente um reservatório do vírus MERS.
A MERS não é a única doença desse tipo. Em 2009, uma equipe liderada pelo CDC coletou um filovírus vivo chamado Marburg de morcegos frugívoros conhecidos como rousetes egípcios (Rousettus aegyptiacus) que vivem nas dezenas de milhares de cavernas africanas.
As infecções por vírus de Marburg levaram a cerca de uma dúzia de surtos em humanos desde 1967, decorrentes principalmente do contato com cavernas. A ofensiva mais mortal registrada em 2005 matou 90% das 252 pessoas que contraíram a doença em Angola.
Os pesquisadores descobriram que os morcegos podem carregar uma forma infecciosa do vírus Marburg por meses em suas colônias sem sintomas visíveis. Além do mais – e esta é uma peça realmente importante do quebra-cabeça – eles podem ejetar pedaços do vírus de sua saliva, fezes e urina.
O fato de poder circular em seus sistemas por um período prolongado levou muitos cientistas a deduzir que os morcegos são “pelo menos um hospedeiro” de Marburg no meio ambiente, disse Kuhn. Isso não significa que os rousettes egípcios sejam os últimos reservatórios. Mas uma conexão tão forte com um filovírus parece sugerir que o Ebola, outro filovírus, também pode residir em morcegos de maneira semelhante.
As probabilidades a nosso favor
O fato de que os morcegos podem sobreviver aos efeitos do vírus Marburg parece dar suporte à ideia de que “os morcegos têm relações fisiológicas únicas com micróbios”, disse Paul Cryan.
Parte disso tem a ver com a forma que os morcegos vivem suas vidas. Como mamíferos voadores, os morcegos gastam muita energia, o que aumenta sua temperatura interna. Esse estado febril constante pode ser particularmente destrutivo para o DNA, a menos que um organismo possa desenvolver uma solução. Cryan disse que se lembra de “ficar resfriado” há alguns anos, ao ler um estudo na Science postulando que o sistema imunológico único dos morcegos, aperfeiçoado por milhões de anos de evolução para reparar o DNA danificado pelo voo, pode ajudar a explicar por que eles podem lidar com uma estreita associação com os vírus.
Os seres humanos não têm adaptações tão inteligentes para lidar com invasores microscópicos, então o raciocínio continua, e isso nos deixa mais vulneráveis do que os morcegos às doenças que os vírus e outros organismos causam.
Mesmo sem tais adaptações, a probabilidade de os humanos contraírem um vírus de morcegos é infinitamente pequena, disse Tuttle. Sua cidade natal, Austin, no Texas, tem um histórico invejável de segurança com morcegos. Espectadores de todo o país se reúnem nas noites de primavera para testemunhar o êxodo de talvez 1,5 milhão de morcegos debaixo de uma ponte no rio Colorado, no Texas. Na década de 1980, as autoridades de saúde pública estavam preocupadas que alguém contraísse a raiva, mas Tuttle fez uma campanha para que os morcegos fossem deixados em paz. Em vez de se livrar deles, os funcionários seguiram seus conselhos e postaram cartazes pedindo aos visitantes que não segurassem os morcegos.
“Trinta e cinco anos depois, ainda estamos esperando que a primeira pessoa seja ferida por um morcego”, comentou.
Globalmente, as pessoas são muito mais propensas a ter raiva de cães, já que são responsáveis por cerca de 99% dos casos.
Tuttle também aponta sua extensa história com morcegos em dezenas de países com pouco mais que uma vacina contra raiva como a única linha de defesa.
“Fiz tudo o que você pode fazer para se expor a alguns desses vírus supostamente…mortais”, explicou. “Ainda estou muito saudável aos 75 anos”.
A boa saúde que a maioria dos cientistas desfruta dos países desenvolvidos pode ser suficiente para manter um vírus sob controle, disse Kuhn. A Guiné e os outros países endêmicos do Ebola estão entre os mais pobres do mundo.
“É muito possível que você precise ser imunossuprimido para acontecer a primeira infecção”, disse Kuhn, “para fazer essa espécie aparecer”.
Tuttle baseia-se em estatísticas para demonstrar a raridade das doenças associadas aos morcegos. Ele ressaltou que, nos últimos 40 anos, o Ebola, o Marburg, a MERS, o Nipah, a SARS e uma doença viral chamada Hendra causaram, juntas, apenas 15.000 mortes humanas. Em comparação, ele disse que, durante esse período, estima-se que cerca de 2,2 milhões de pessoas tenham morrido de raiva transmitida por cães, o que é considerado raro.
“Isso só conquistou grandes manchetes porque era sensacional e diferente”, disse Tuttle sobre o Ebola. “Essa doença é trivial em comparação com muitas outras causas de mortalidade humana”.
Mas para Kuhn, isso é uma justificativa perigosa.
“Isso é, naturalmente, uma verdade para qualquer doença na história, quando começou”, explicou. “No momento em que você tem um surto com 11.000 mortes, provavelmente vale a pena tentar descobrir de onde o vírus está vindo”.
O desmatamento e as estradas continuam abrindo novas áreas de selva, levando-nos a um contato mais próximo com os animais e qualquer vírus causador de doenças que eles transmitem. Com esse tipo de exposição desconhecido, junto com a crescente mobilidade da humanidade e o aumento da população, o próximo surto de Ebola pode afligir cem mil pessoas, disse Kuhn.
“Sim, é um cenário hipotético, mas não é necessariamente um cenário improvável”, acrescentou, “como mostrou esse surto na África Ocidental”.
Uma coisa é clara – que vamos compartilhar nosso futuro com essas doenças zoonóticas, independentemente do reservatório e se elas se propagam do morcego, do porco ou do camelo.
“Para ser claro”, disse Tuttle em um e-mail, “reconheço que os morcegos podem transmitir algumas doenças assustadoras, assim como todos os outros animais, especialmente os humanos”.
Como ecologista populacional, ele reconhece nosso relacionamento sempre mutável com outras espécies e, morcegos à parte, o quanto é difícil prever até que ponto a próxima propagação de doenças de animais para humanos será prejudicial.
“Não conheço ninguém com o meu tipo de treinamento que não pense que estamos seguindo rumo a alguns problemas realmente sérios na jornada”, acrescentou Tuttle.
Shreya Dasgupta e Rebecca Kessler contribuíram com a reportagem.
Imagem da faixa de página de um morcego frugívoro epauletted menor no Kenya © Merlin Tuttle.
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Nota do editor em 31/08/17: A pedido de Merlin Tuttle, três afirmações foram corrigidas para melhor refletir suas opiniões.
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