Os ingredientes da Amazónia têm sido usados há muito por povos indígenas, muitos dos quais ainda dependem da floresta amazónica para subsistência.
À medida que os ingredientes da floresta chegam a mais restaurantes, os observadores estão preocupados com o impacto dessa nova indústria na Amazónia brasileira e nas comunidades dependentes da floresta.
O mundialmente famoso chef Michelin, de duas estrelas, Alex Atala está na vanguarda no que se refere ao uso sustentável de ingredientes indígenas.
SÃO PAULO, Brasil – Por mais de uma década, a cozinheira Vângela Veloso viajou duas vezes por ano de São Paulo para sua cidade natal, Pará, no norte do Brasil, com sacos vazios. Regressa com pimentos, jambu, camarão, tapioca e outros bens colhidos na Amazónia. A recompensa trazida do norte do Brasil é então preparada por ela, e pela sua família, e servida na sua tenda de comida popular, Império Paraense.
Numa recente e fria tarde de setembro, os clientes habituais Ana Rodrigues e seu marido Alberto comeram almôndegas mistas de caranguejo (Unha de Caranguejo) e esperaram pelo seu prato favorito, o tacacá, uma mistura de vegetais da floresta amazónica (jambu e tucupi) e pimentos amarelos pequenos.
Ana Rodrigues disse que há cerca de cinco anos, a tenda de Veloso era a única fonte de pratos oriundos do norte da floresta Amazónica que podiam encontrar. As coisas mudaram, mas eles ainda fazem 30 minutos de carro todos os domingos para ir ao restaurante.
“Agora vê-se os ingredientes e a cozinha do norte a aparecer em toda a cidade”, disse ela.
A tenda de comida de Veloso faz parte de uma tendência chamada “floresta amazónica à mesa” que vem crescendo nos últimos 20 anos. A tendência destaca pratos e produtos à base de ingredientes da Amazónia para uso em restaurantes que vão desde tendas de alimentos como a de Veloso até mercearias especializadas para restaurantes com estrelas Michelin. Quer se trate de uma bênção para o perfil público de uma região poucos brasileiros visitam ou uma potencial sobre-exploração dos recursos florestais depende de que ângulo se vê o fenómeno.
A Amazônia setentrional, onde Veloso encontra os produtos, é formada por sete estados do norte do Brasil que compreendem 80% da floresta amazónica. A alimentação nestes estados é composta principalmente por peixes, frutas, legumes e tubérculos endémicos da região. A maioria dos pratos que utilizam ingredientes da região foram primeiro explorados – e adaptados – pelos povos indígenas, e só mais tarde misturados com ingredientes africanos e portugueses.
Até recentemente, alimentos do norte da Amazónia eram desconhecidos para a maioria dos brasileiros.
“A comida do norte era quase tão desconhecida para os brasileiros como para os estrangeiros”, disse Fred Tibau, um cozinheiro e professor de comida brasileira. Cerca de 20 anos atrás, as coisas começaram a mudar quando coisas como o açaí, o cupuaçu – frutos típicos da floresta amazónica – e a tapioca, um pó que é a base da comida indígena, começaram a aparecer em quase todas as lojas. Embora não haja dados oficiais para medir o crescente interesse em alimentos da região, especialistas como Tibau dizem que há uma tendência.
“Uma simples caminhada pelas duas maiores cidades do país, Rio e São Paulo, mostra que pratos como tacacá não são mais desconhecidos pelo público”, disse ele.
Para a historiadora e professora da Universidade Federal do Pará, Leila Mourão, a integração da cultura amazónica com o resto do país foi intensificada nas últimas décadas por políticas públicas oficiais e pelo aumento da renda da classe média brasileira.
“As pessoas começaram a ir a diferentes partes do país, como o norte, que normalmente não era visitado, para conhecer e conectar-se com a culinária nacional”, disse Mourão. Infraestruturas melhoradas também ajudaram vários alimentos a encontrar o seu caminho até às grandes cidades do sul.
De comida indígena a Michelin
Apesar da crescente popularidade entre as massas, é D.O.M., o restaurante do famoso chef Michelin de duas estrelas Alex Atala, que é considerado o embaixador da redescoberta da comida brasileira. Atala é reconhecido como pioneiro na “nova cozinha brasileira”, trazendo os ingredientes indígenas, previamente ignorados, para o centro das atenções. A sua comida é descrita pelos inspetores-guia Michelin como “um ponto de referência para a cozinha brasileira”, e foi objeto de um popular documentário do Netflix, “Chef’s Table”.
Atala entrelaça uma variedade de ingredientes, muitas vezes com originem no norte, nos seus pratos, incluindo arroz preto, palmitos, ervas indígenas, nozes, milho branco, peixe e até formigas.
“Tenho a sorte de vir de uma família que sempre amou viajar pelo Brasil”, disse Atala em entrevista à Mongabay. “O meu pai costumava acampar, especialmente em lugares remotos, como a floresta amazónica, e com quatro crianças num carro, você não podia levar muita comida, então costumávamos comer o que poderíamos encontrar ou pescar”.
Como chef, Atala inspira-se nas suas experiências de vida e na floresta amazónica do Brasil.
“Quando decidi cozinhar, compreendi logo que nunca faria comida francesa como um chef francês, porque não tenho a compreensão dessa cultura alimentar”, disse ele. “Então, eu voltei-me para a minha própria cultura e país, e decidi explorar os seus ingredientes. E nisso, eu tinha uma vantagem em relação aos outros chefs internacionais que trabalhavam no Brasil: eu conhecia os bons, eu sabia onde encontrá-lo, porque eu estava já estivera em toda a parte do país.”
Mesmo assim, entrar em contato com tribos indígenas foi um novo conceito. É dessas tribos que Atala tem alguns dos alimentos que podem ser encontrados no menu de D.O.M. Entre eles está um dos seus ingredientes mais famosos, as formigas amazónicas. Ele serviu formigas de maneiras que vão desde estarem simplesmente sob um cubo de abacaxi, ou açucaradas em ouro num merengue. Ele aprendeu a usar formigas na sua culinária junto a uma tribo indígena durante uma das suas muitas expedições na floresta amazónica.
Atala acredita que um ingrediente só precisa de ter o seu momento.
“Às vezes, o chef está pronto para usar o ingrediente, mas não está pronto para enfrentar a cadeia envolvida no uso desse ingrediente e comida”, disse ele.
“É por isso que, hoje, também trabalho com antropólogos, porque por muito tempo eu não estava pronto para lidar com essa cadeia complexa. Uma vez tendo isso, fui procurar profissionais que me pudessem ajudar a entender a cultura de outras pessoas, aprender com ela sem impôr a minha”.
À procura de sustentabilidade
Essa mentalidade guiou Atala enquanto ele procurava uma maneira sustentável de encontrar e usar as matérias-primas brasileiras. Ele tem como objetivo promover e usar produtos florestais sem afetar negativamente o equilíbrio natural ou culturas locais que dependem deles para sobreviver.
Ele tem razão para se preocupar.
Em 2002, quando Oprah Winfrey nomeou o açaí da Amazónia brasileira como uma das frutas mais saudáveis, o preço por unidade no norte subiu 650%. O Açaí é um elemento nutritivo de base para as comunidades locais, e rapidamente se tornou inacessível a uma população que dependia dele.
“O consumo precisa ser planeado”, disse Atala. “Só porque você gera dinheiro para um lugar não significa que está a beneficiar a área. Na verdade, por vezes é o oposto.”
Ainda assim, para Atala, a popularização de alimentos do norte continua a ser a melhor maneira de preservar a cultura local e os seus alimentos.
“Você só é capaz de lutar pela preservação de algo quando tiver empatia, quando for conhecido”, disse ele. “A chegada da gastronomia nortenha precisa de ser cautelosa, porque estamos a mexer com um ambiente ecologicamente e culturalmente rico, mas frágil em políticas de conservação”.
Atala acredita que são necessárias mudanças fundamentais em muitos níveis.
“Precisamos de mudar a maneira como nos relacionamos com os alimentos. Temos que ter uma relação simbiótica, não de exploração”, disse ele. “A popularização destes ingredientes e o aumento do consumo gerará maior procura e muitos só vão querer lucros, sem se preocuparem com a sustentabilidade. É preciso ter cuidado.
Uma das iniciativas de Atala na promoção da cultura alimentícia sustentável brasileira nas grandes cidades é através de uma parceria com o Mercado Municipal de Pinheiros, na cidade de São Paulo. No mesmo lugar onde as pessoas compram os seus legumes e frutas diariamente, podem também comprar ingredientes sustentáveis e alimentos de todas as regiões do país. Todos são certificados pela sua própria iniciativa, ATÁ – um instituto que ele começou em 2013 com nove parceiros.
A missão da ATÁ é fomentar a produção sustentável de ingredientes brasileiros como forma de fortalecer a diversidade social e agrícola, fortalecer os territórios indígenas e garantir a boa alimentação das pessoas, e preservação do meio ambiente..
Projetos atuais em que a ATÁ está envolvido com as comunidades indígenas incluem a produção de cogumelos Yanomani e a pimenta Baniwa, única da tribo Baniwa. A ATÁ também trabalha com a comunidade de Kizedje, ao longo do rio Xingú, na produção de óleo de Pequi. Assim como com outras tribos que consomem a formiga saúva, que é servida nos restaurantes de Atala. O óleo e a pimenta podem ser encontrados no Mercado Municipal de Pinheiros.
“Com iniciativas como esta, você pode preservar e disseminar a cultura, trazendo rendimento para estas populações e melhorar a qualidade de vida dos produtores, respeitando o seu modo de vida e o seu trabalho”, disse Atala. – “É o ideal”.
Para Alexandre Dhein, cozinheiro gastronómico da Pontifícia Universidade Católica, uma das mais respeitadas instituições gastronómicas do país, Atala faz parte de uma tendência crescente e global.
“Há um movimento actual, em todo o globo, de voltar às origens, de manter as coisas simples”, disse Dhein. “A comida da floresta, das tribos indígenas é exatamente isso na cozinha brasileira. Então, isso faz parte de um comércio internacional, mas é muito nacional, no sentido de uma redescoberta dos cidadãos com o seu próprio país e identidade “.
Chef’s Table and Chef Table Season 2. Fotografia de Zhana Leeson
Carolina Torres é jornalista freelance no Brasil.