2024 foi o ano mais quente já registrado na história, com ondas de calor intensas e duradouras. No ano passado, as mudanças climáticas intensificaram eventos extremos, incluindo a formação de enormes ilhas de calor — áreas de alta pressão que permanecem estacionárias e persistem acima de massas de terra continentais na Ásia, África, América do Sul e do Norte e Europa.
As ilhas de calor agravam a poluição do ar, tornando-a ainda mais insalubre devido às emissões de veículos, indústrias, incêndios florestais e tempestades de poeira. No verão passado, uma onda de calor atingiu Nova Déli, na Índia, elevando as temperaturas e intensificando as concentrações de ozônio ao nível do solo — um poluente especialmente nocivo para quem trabalha ao ar livre.
No ano passado, a combinação do calor extremo, da seca e dos incêndios florestais recordes na Amazônia brasileira gerou uma densa fumaça carregada de partículas tóxicas em níveis perigosos para a saúde respiratória. Povos indígenas em áreas remotas ficaram especialmente vulneráveis, sem meios eficazes de se proteger da poluição.
A Nigéria também enfrentou calor extremo em 2024, agravado por grandes tempestades de poeira e temperaturas elevadas, criando condições propícias para o aumento dos casos de meningite — uma doença potencialmente fatal, especialmente em comunidades vulneráveis. Com o avanço das mudanças climáticas, a poluição tende a se intensificar, trazendo impactos ainda mais severos para a saúde pública.
A humanidade alcançou um marco decisivo no ano passado. O Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus, da União Europeia, declarou oficialmente 2024 o ano mais quente já registrado e o primeiro ano da história com uma temperatura global média subindo 1,5 °C acima do período pré-industrial — elevando consideravelmente os riscos climáticos extremos.
Na verdade, 2023 e 2024 podem estar entre os anos mais quentes dos últimos 100 mil anos, com todos os indicadores apontando para um aumento contínuo das temperaturas e impactos globais cada vez mais severos. “Os eventos extremos relacionados à temperatura observados no último verão [do Hemisfério Norte] ficarão cada vez mais intensos”, alerta Samantha Burgess, vice-diretora do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus.
Em 2024, o calor extremo envolveu regiões inteiras do mundo por semanas, trazendo consequências graves e sem precedentes. Uma onda de calor mortal matou pelo menos 1.300 pessoas durante a peregrinação anual do Hajj na Arábia Saudita, enquanto a pior seca em um século atingiu a África Austral, deixando 21 milhões de crianças desnutridas. A seca recorde também devastou a América do Sul, reduzindo os rios amazônicos aos níveis mais baixos já registrados. A América do Norte tampouco foi poupada. As ilhas de calor — sistemas de alta pressão estacionários que aprisionam e intensificam o calor — cobriram vastas áreas dos EUA e mataram mais de cem pessoas no México.
Contudo, um impacto menos perceptível — e mais difícil de rastrear — é como o calor extremo deteriora a qualidade do ar, afetando a saúde da população. Embora as fontes de poluição do ar sejam geralmente locais ou regionais, a influência invisível das mudanças climáticas está agravando esse problema em escala global.
Ondas de calor persistentes, incêndios florestais recordes e padrões de vento e precipitação que mudam drasticamente “alteram a formação, duração e dispersão da poluição do ar”, observa um boletim da Organização Meteorológica Mundial, destacando os efeitos sinérgicos do aquecimento global na saúde.
O Sul Global, um epicentro de má qualidade do ar, está sendo especialmente atingido. Uma mistura tóxica de poluentes atmosféricos — gases de escape automotivos sobre áreas urbanas na Índia, nuvens de poeira sufocantes soprando por toda a Nigéria e fumaça asfixiante de incêndios florestais cobrindo o Brasil — está se tornando ainda mais mortal devido a um clima cada vez mais instável.

Ozônio sobre Nova Déli
O verão de 2024 em Nova Déli, capital da Índia, foi mais brutal do que qualquer outro de que Kunal Kumar se lembre. A cidade ficou presa sob a maior ilha de calor em 13 anos. As coisas estavam tão ruins que Kumar, entregador de comida, foi forçado a não trabalhar por alguns dias.
“É melhor perder meu salário e ficar em casa do que morrer de insolação”, disse ele à Mongabay.
Nova Déli está situada na Planície Indo-Gangética da índia, onde as temperaturas diurnas do verão têm em média 32 °C. Em 2024, uma série de persistentes eventos anticiclônicos de circulação de vento sobre o norte do Oceano Índico, juntamente com o desaparecimento do El Niño, fez com que as rajadas de vento no sentido horário descessem sobre a cidade, criando uma cúpula de calor persistente de alta pressão que elevou as temperaturas naquele ano a níveis severos.
Durante semanas, as temperaturas diurnas permaneceram acima de 40° C, com pouco descanso à noite. O ambiente construído da cidade, que absorve o calor solar, tornou as condições ainda mais insuportáveis e perigosas.
Para Kumar, que passa de 12 a 15 horas por dia na rua fazendo entregas, o calor era fatal — como era para o resto dos 33,8 milhões de habitantes da cidade, muitos dos quais trabalham ao ar livre ou não têm ar-condicionado. No bairro apertado de South Delhi, onde Kumar mora, o calor irradiava das paredes e da rua dia e noite, em um exemplo clássico do efeito da ilha de calor urbana.
Ele estava desidratado e irritado na maioria dos dias. “Para onde quer que você olhe há congestionamento nesta cidade. Preso em engarrafamentos, sob o sol, com ar quente soprando em seu corpo; era insuportável”, lembra Kumar.
A poluição do ar é normalmente percebida como um problema de inverno em Nova Déli, quando um espesso smog de poluição atmosférica de baixa altitude fica preso em cima da metrópole por conta do ar frio. Esse smog é composto principalmente por partículas tóxicas PM2,5 — partículas muito pequenas que se alojam nos pulmões e podem causar doenças cardiovasculares e respiratórias. Todos os invernos, os níveis de PM2,5 atingem o pico devido à queima sazonal dos cultivos e à explosão de fogos de artifício durante o festival de Diwali, o que torna Nova Deli um dos lugares mais poluídos do mundo.
Agora, à medida que o aquecimento global e o desenvolvimento urbano elevam as temperaturas sobre a cidade no verão, os impactos simultâneos do calor intenso e da poluição do ar se agravam de maneiras menos óbvias, mas seriamente prejudiciais à saúde.

Nos meses quentes de verão, os congestionamentos em que Kumar e milhares de trabalhadores ficam parados todos os dias tornam-se focos de substâncias tóxicas, incluindo partículas PM2,5 e ozônio ao nível do solo. No alto da estratosfera, o ozônio desempenha um papel benéfico vital, absorvendo os raios ultravioletas nocivos do sol. Porém, perto da superfície da Terra, o ozônio é um potente poluente atmosférico cujos impactos na saúde se acumulam no corpo.
O ozônio no nível do solo é formado quando óxidos de nitrogênio e compostos orgânicos voláteis (COVs), emitidos por escapamentos de veículos e outras fontes de combustão, como fábricas, reagem com a luz solar. Uma análise recente do Centro de Ciência e Meio Ambiente (CSE, por sua sigla em inglês), com sede em Nova Déli, descobriu que novos pontos críticos surgiram em toda a cidade durante o verão. Entre abril e julho de 2024, a capital indiana registrou leituras de ozônio no nível do solo acima dos limites seguros em 102 dias, muitas vezes por mais de 13 horas seguidas, segundo a análise. Os níveis anuais de PM2.5 também aumentaram de forma contínua, impulsionados principalmente pelo aumento das emissões por meio de transporte urbano — o tráfego que agora piora a poluição do ar no inverno e gera ozônio ao nível do solo no verão.
A epidemiologista Poornima Prabhakaran, diretora do Centro de Pesquisa e Tendências de Análises de Saúde da Universidade Ashoka, considera a tendência de crescimento de ozônio no nível do solo preocupante. A Índia registra o maior número de mortes por Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) em decorrência dos altos níveis de ozônio ao nível do solo, conforme apontado no relatório “State of Global Air”, publicado anualmente pelo Health Effects Institute (HEI), em parceria com a UNICEF. De acordo com o estudo, o ozônio matou 238 mil pessoas na Índia em 2019.
As pessoas também respiram outros contaminantes tóxicos liberados pelos tubos de escape e chaminés. No entanto, “os impactos desses poluentes secundários não receberam tanta atenção quanto os impactos do smog a PM2,5, provavelmente por causa da falta de conscientização”, disse Prabhakaran.
Prabhakaran tem colaborado com cientistas de diversas partes do mundo para desenvolver bancos de dados que monitorem os impactos da poluição do ar (inclusive PM2,5 e ozônio) em uma série de efeitos, incluindo nas funções respiratória e cognitiva. “Estamos tentando analisar, com dados, todos os resultados de saúde possíveis”, explica Prabhakaran, e acrescenta: “Sabe-se que fatores de risco intermediários, como hipertensão, pressão alta, glicose em jejum e altos níveis de lipídios — todos esses efeitos cardiovasculares — pioram mesmo com a exposição crônica a baixas doses [de poluição do ar]”.

Os programas de limpeza do ar na Índia têm falhado em melhorar significativamente a qualidade do ar, pois foram desenvolvidos com foco no controle da poeira, em vez de atacar as principais fontes de poluição, como o transporte e a fumaça industrial — os maiores responsáveis pelos contaminantes ao longo de todo o ano. “É necessário que nossos programas se tornem multipoluentes, ou seja, que considerem um conjunto de poluentes, como PM2,5, óxidos de nitrogênio e ozônio, para monitorar as melhorias na qualidade do ar, e não apenas o nível de poeira”, afirmou Anumita Roychowdhary, diretora executiva de pesquisa da CSE.
Pessoas que trabalham ao ar livre, como Kumar, continuam muito vulneráveis aos impactos da poluição do ar devido à sua ampla exposição. O governo indiano vê a expansão de trabalho temporário de forma positiva, como geradora de empregos, em um momento em que as taxas de desemprego atingiram níveis recordes. Mas esses empregos geralmente têm um custo considerável para a saúde a longo prazo.
“Eu tento não tirar dias de folga, mesmo quando estou doente, porque isso reduz meus ganhos”, explica Kumar. Porém, respirar a sopa tóxica de Nova Déli dia após dia pode causar doenças e morte prematura.
Há também um custo econômico. Trabalhadores temporários são muitas vezes os principais provedores de sua família, e atuam sem seguro ou licença médica remunerada. Em uma pesquisa com 10.384 trabalhadores de aplicativos por toda a Índia, realizada pela Associação de Ação e Movimentos Populares e pela Universidade da Pensilvânia, quase 100% dos entrevistados disseram sofrer problemas físicos e mentais devido ao trabalho. Cerca de 43% ganhavam menos de 500 rúpias (US$ 5,80) por dia, e uma proporção semelhante disse que não tirava folgas.
“As empresas que nos contratam deveriam ser mais humanas e garantir benefícios, salários e folgas”, comenta Kumar. “Trabalhamos debaixo de chuva, com calor”, acrescenta. Um calor que, segundo os cientistas, só se intensificará nos próximos anos.

Fumaça sobre o Xingu
No ano passado, Ewésh Yawalapiti Waurá diz que assistiu impotente à seca das águas que davam vida ao rio perto de sua aldeia natal, no Parque Indígena do Xingu. O Rio Xingu e seus afluentes são vitais para os 16 grupos indígenas do território.
Ainda assim, a seca não foi o único desafio enfrentado pelos moradores da região em 2024. À medida que o rio recuava, espessas nuvens de fumaça sufocante pairavam sobre suas cabeças, resultado de incêndios florestais descritos como os piores que a região viu nos últimos anos.
O Parque Indígena do Xingu está localizado onde a Floresta Amazônica faz a transição para o Cerrado, no estado do Mato Grosso. O parque, uma área protegida, foi criado em 1961 para preservar a cultura indígena e a biodiversidade natural. Waurá é diretor executivo da Associação das Terras Indígenas do Xingu (Atix), grupo formado em 1994 para defender os direitos dos povos indígenas que vivem na região do Xingu.
Porém, como proteger as pessoas da fumaça mortal de incêndios florestais? No passado, “era fácil controlar o[s] incêndios[s]. Hoje, qualquer queimada fica fora de controle, se espalha; é difícil de controlar”, comenta Waurá à Mongabay. Mais de 200 bombeiros do Ibama foram enviados para apagar incêndios no território do Xingu no ano passado, com mais voluntários se juntando a eles para garantir “força total”. Mas as chamas continuavam “realmente fora de controle”, conta Waurá.
A paisagem local mudou drasticamente nos últimos anos, acrescenta ele. As mudanças climáticas e o desmatamento para a expansão do agronegócio combinaram-se para secar a região, destruindo a capacidade da floresta restante de resistir ao fogo.

Incêndios florestais provocados por grileiros e fazendeiros para abrir novas áreas para pastagem e cultivo agrícola têm chegado cada vez mais perto do Xingu ao longo das últimas duas décadas. Entre 2020 e 2021, cerca de 13 mil quilômetros quadrados da Floresta Amazônica foram arrasados, uma taxa impulsionada pelas políticas do ex-presidente Jair Bolsonaro, que incentivaram a agricultura e a mineração na floresta tropical.
A mudança dos padrões climáticos também tornou a floresta muito mais vulnerável, dizem os especialistas. “Esses incêndios ocorrem durante períodos de seca prolongada, especialmente em anos de El Niño, e seus efeitos se tornaram mais intensos e devastadores à medida que o desmatamento ao redor do território ficou mais frequente”, explica Katia Ono, consultora de gestão de recursos naturais do Instituto Socioambiental (ISA) na região do Xingu.
Imagens de satélite revelaram mais de 53.620 focos de incêndio na Amazônia em 2024. O estado do Mato Grosso registrou uma das maiores incidências desses incêndios, que queimaram por meses (até o final de setembro) devido a uma estação chuvosa atrasada (um impacto amplamente reconhecido das mudanças climáticas). Os incêndios florestais não apenas devastam a biodiversidade da floresta como também causam problemas de saúde entre os povos indígenas e tradicionais.
“Você não consegue mais respirar direito, não consegue dormir direito, não consegue ver direito — foi o que senti quando tivemos os incêndios florestais”, conta Takumã Kuikuro, cineasta e presidente do Instituto da Família do Alto Xingu, outra associação indígena. Kuikuro produziu um documentário sobre os bombeiros do Parque Indígena do Xingu que se juntaram aos esforços do governo para apagar as chamas descontroladas. “A irmã da minha mãe tem um problema respiratório nos pulmões e está cada vez pior [por causa da fumaça]”, conta.
As crianças, em particular, são afetadas por essa fumaça e “acabam pegando gripe e desenvolvendo problemas respiratórios”, acrescenta Waurá, que aponta que a situação é ainda pior para os jovens com problemas respiratórios crônicos.
Uma análise das hospitalizações atribuíveis a incêndios relacionados ao desmatamento na Amazônia confirma que crianças pequenas e pessoas com mais de 60 anos são as mais frequentemente hospitalizadas. Altas exposições a partículas PM2,5, o poluente mais perigoso na fumaça de incêndios florestais, causam inflamação e podem diminuir a capacidade pulmonar, levando a outros problemas de saúde.
Condições mais secas, temperaturas elevadas e a redução das chuvas foram encontradas como fatores que “agravaram os casos de incêndio [entre 2009 e 2019], impactando as admissões hospitalares por doenças respiratórias a uma taxa de até 22 admissões hospitalares por mil eventos de incêndio florestal” na Amazônia brasileira, de acordo com um estudo que utilizou modelagem de dados.

A exposição à fumaça pode ocorrer mesmo a grandes distâncias dos incêndios, explica Ana Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam). Os “rios voadores” da Amazônia, um padrão de circulação natural que regula e distribui vapor de água do Oceano Atlântico pela Bacia Amazônica, também carregam fumaça de incêndio florestal.
“A circulação entra no Brasil pelo norte, depois vai em direção aos Andes no oeste e se instala no sudoeste. Muitas comunidades isoladas vivem nessas regiões e são gravemente afetadas pelas cinzas da fumaça. O Xingu também sofre os efeitos dos incêndios que o cercam”, explica Alencar. O Ipam instalou sensores de qualidade do ar na região do Xingu e descobriu que a poluição do ar em algumas aldeias subiu mais de 50 vezes acima dos limites recomendados pela Organização Mundial da Saúde.
Incêndios florestais recordes ocorreram em 2024, apesar de uma queda considerável no desmatamento ativo, apontando para os claros impactos das mudanças climáticas, observa Alencar. “Isso significa que a Floresta Amazônica, e não apenas o Cerrado, está se tornando mais inflamável” à medida que o aquecimento piora.
Kuikuro compara a saúde da floresta tropical com a saúde de seu povo. “A saúde está no meio ambiente, a saúde está no rio, a saúde está na terra. Temos que manter nossa floresta em pé, não podemos incendiar o mato, porque essa é a nossa saúde”, explica.
Kuikuro conta que o Instituto da Família do Alto Xingu (Ifax) distribuiu, por meio de crowdfunding, acesso a hotspots de internet para os indígenas com o objetivo de rastrear ocorrências de incêndios no território e ajudar a combater incêndios florestais perto de suas comunidades. Essa conexão com a internet também foi usada para fins de saúde e educação, acrescenta.
De acordo com Waurá, embora as Unidades Básicas de Saúde do Parque do Xingu sejam fornecidas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), os moradores da região ainda precisam viajar para áreas urbanas distantes para receber tratamentos mais complexos. “A estrutura nunca é suficiente”, afirma. “Há [também] falta de medicamento, o que acaba afetando tratamentos que poderiam ser realizados dentro da própria comunidade.”

Poeira sobre a Nigéria
Na cidade de Kano, na Nigéria, a poeira faz parte da vida diária. “Kano é muito quente. Mesmo quando há energia e o ventilador está funcionando, achamos muito difícil dormir no quarto [à noite] devido ao calor, especialmente durante a estação seca”, conta Zahara Usaini, comerciante e mãe de três filhos de 32 anos, à Mongabay.
Localizada na parte árida do norte da Nigéria, a paisagem ao redor de Kano é dominada por pastagens de savana. No passado, as temperaturas atingiam até 33 °C. Porém, no ano passado marcaram novos recordes — alcançando 39 °C ou até 41 °C em alguns lugares. Uma onda de calor prolongada, 10 vezes mais provável de ocorrer devido aos efeitos das mudanças climáticas, cozinhou a região em 2024.
“O calor da estação seca está aumentando a cada ano. Acho que é obra de Deus”, diz Usaini.
Ela se sentia apreensiva enquanto esperava no Hospital Pediátrico Khalifa Sheikh Isyaku Rabiu, onde sua filha mais nova, Hauwa, havia sido internada. Hauwa, de apenas 3 anos, desenvolveu uma febre que a família inicialmente confundiu com um sintoma de malária. Quando ela não respondeu ao tratamento de um hospital local e começou a ter convulsões e perder a consciência, Hauwa foi transferida para Khalifa e recebeu o diagnóstico correto: meningite.

A meningite, uma doença infecciosa causada por vários vírus, bactérias e fungos, inflama a medula espinhal e o cérebro e pode ser fatal se não for tratada. A parte norte da Nigéria, onde tanto o estado de Kano quanto a cidade homônima estão localizados, fica em uma região da África subsaariana apelidada de Cinturão da Meningite, que se estende da Etiópia, no leste, até o Senegal, no oeste.
Nessa área, os casos de meningite são mais frequentes entre dezembro e maio, quando o harmattan, um vento alísio, transporta ventos frios, secos e carregados de poeira do Saara Ocidental. A proximidade do norte da Nigéria com a Depressão de Bodele, um deserto no norte do Chade, também expõe Kano a frequentes tempestades de poeira que envolvem a cidade em uma fina névoa de partículas.
Quando as temperaturas começaram a subir no ano passado, o comissário de saúde de Kano, Abubakar Labaran, alertou que condições secas e quentes “poderiam causar arranhões no nariz e levar à meningite”.
Cheikh Dione, pesquisador da Escola Politécnica em Paris e ex-cientista do Centro Africano de Aplicação Meteorológica para o Desenvolvimento (ACMAD), realizou estudos que visavam prever surtos de meningite utilizando indicadores meteorológicos. “Descobrimos que existe uma ligação entre a variabilidade climática e a ocorrência de meningite no Cinturão Africano da Meningite”, conta Dione à Mongabay.

A pesquisa revelou que os surtos de meningite tendem a acontecer quando a umidade relativa é baixa, as cargas de poeira são altas e as temperaturas sobem acima de 30 °C. “Durante uma tempestade de poeira, temos baixas temperaturas. Uma das principais condições que levam a um surto de meningite é quando as temperaturas aumentam após um evento de poeira”, explica Dione.
Há evidências cada vez mais fortes de que o Cinturão da Meningite está se expandindo devido ao aquecimento global. O desmatamento e a mineração, ambas atividades que aceleram a desertificação, também podem contribuir para a ocorrência de meningite em países como Uganda e Angola, acrescenta Dione. De acordo com um estudo que utilizou modelagem de dados, os casos de meningite no norte da Nigéria podem aumentar 47% até 2060 em comparação com os níveis de 1990-2005, mesmo que o aumento das temperaturas médias globais permaneçam abaixo de 2 °C.
As mudanças climáticas são apenas um fator causal nos surtos de meningite. Vetores locais incluem superlotação, falta de ventilação, falta de conscientização sobre os tratamentos e ceticismo em relação às vacinas. Kano é o segundo estado mais populoso da Nigéria, com a maioria das pessoas vivendo em áreas rurais, onde os métodos tradicionais de cura são amplamente praticados e a mortalidade infantil é alta.
Yusuf Abubakar, enfermeiro do hospital Khalifa, notou que a meningite ocorre nos meses quentes, mas diz que a pobreza desempenha um papel importante na exposição. “Pessoas com alto status econômico tendem a ter casas grandes, com áreas bem ventiladas, talvez até eletricidade 24 horas”, diz Abubakar, e acrescenta: “Na maioria dos casos, as crianças que apresentam meningite [no hospital] são de áreas onde pessoas de baixo status socioeconômico vivem.”
A meningite necessita de internação hospitalar devido a complexidades em seu tratamento. Quando a internação demora e a doença progride, as crianças podem ficar com sequelas, explica Zainab Garbayaro, médica do hospital Khalifa. “Pode ser um distúrbio auditivo, cegueira ou outro .distúrbio. Isso significa que elas precisam ser submetidas à reabilitação por um período após o tratamento. Alguns dos pacientes nunca voltam ao que eram.”
Dione diz que um sistema de previsão de meningite, como o desenvolvido pela ACMAD, ajudaria a impedir grandes surtos da doença no futuro. Um sistema assim também ajudaria os profissionais de saúde a planejar vacinas em tempo hábil. “Há muito esforço de instituições nacionais e internacionais para derrotar a meningite. Se os médicos especialistas conseguissem antecipar surtos e agir em conformidade, poderiam reduzir as infecções significativamente”, afirma.

As complexas influências do aquecimento global na poluição do ar na Índia, na fumaça de incêndios florestais na Amazônia brasileira e nos surtos de meningite na Nigéria são apenas três exemplos de como as mudanças climáticas estão piorando a saúde pública em todo o mundo.
À medida que as mudanças climáticas se intensificam, continuarão alterando nosso planeta de maneiras imprevisíveis, abrindo novas oportunidades para a disseminação de doenças e forçando os especialistas em saúde pública a se esforçarem para entender e tratar essas doenças.
Imagem do banner: Bombeiro na Terra Indígena do Xingu. Foto cedida por Instituto da Família do Alto Xingu (Ifax).
Esta história foi pesquisada e escrita por Simrin Sirur, com contribuições de Orji Sunday na Nigéria e Karla Mendes no Brasil. E traduzida por Nina Jacomini.