Mais de 60% do transporte de cargas no Brasil é realizado via malha rodoviária, com a maioria dos caminhões usando combustíveis fósseis; cifra é obstáculo para o compromisso do país de zerar a emissão de gases de efeito estufa até 2050.
Para uma mudança em médio prazo, o país precisa diversificar sua composição de transporte, ampliando a malha de ferrovias e hidrovias – ambas emitem menos CO2 por quilômetro percorrido, mas dependem de mais investimento.
Governo e indústria veem na eletrificação da frota rodoviária uma solução viável; o maior desafio é a infraestrutura energética, sobretudo para longas distâncias.
É grande a aposta também no hidrogênio verde e em outros biocombustíveis; país já tem grande experiência com o etanol da cana-de-açúcar, que é 90% menos poluente que a gasolina.
O Brasil se comprometeu a zerar a emissão de gases de efeito estufa até 2050, porém um dos grandes empecilhos para cumprir a meta é o setor de transporte de cargas e logística.
De acordo com dados da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), mais de 60% do transporte de cargas no país é realizado via malha rodoviária. Os caminhões utilizam, em sua maioria, combustíveis fósseis. Sem ação direcionada, a conta não fecha.
“O transporte de carga, olhando para as grandes fontes de emissão, é o primeiro do setor energético”, explica David Tsai, coordenador de projetos no Instituto de Energia e Meio Ambiente. “Depois vem o transporte de passageiros, depois a indústria, em seguida a produção de combustíveis, e por fim uso o residencial/comercial e o setor elétrico”, afirma.
Segundo as projeções do Plano Decenal de Expansão de Energia 2029, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o transporte de cargas deve aumentar 3,4% ao ano até 2029. O relatório pondera que “a demanda do transporte de carga continua muito concentrada no uso do óleo diesel B, já que não se projeta, no horizonte do presente estudo, um amplo desenvolvimento de projetos em fontes substitutas para veículos pesados”.
A dependência no país do transporte de mercadorias via malha rodoviária já ficou evidente em algumas situações, como na greve dos caminhoneiros, realizada em 2018. A paralisação começou por causa do aumento do preço do óleo diesel, e teve dez dias de duração. Em praticamente todas as cidades brasileiras foi relatada falta de produtos básicos nos supermercados, de gasolina nos postos, dentre outros suprimentos. As perdas somadas, de diferentes setores, ultrapassaram os 70 bilhões de reais.
Quais são, então, os planos do país para reduzir a dependência de caminhões movidos a óleo diesel na logística nacional?
Em nota, o Ministério dos Transportes afirmou que “assegurar um forte crescimento no transporte de cargas por meio do sistema ferroviário irá garantir que a infraestrutura planejada leve em conta oportunidades de gerenciar riscos climáticos”, e que a “profunda descarbonização do setor de transporte terrestre de cargas pode ser alcançada também pela combinação da transferência modal com estratégias que tragam a eficiência energética”.
A nota diz ainda que “a alocação de instrumentos financeiros está promovendo soluções menos intensivas em carbono”, e “impulsionando iniciativas inovadoras para incorporar cláusula de obrigação de infraestrutura resiliente e sustentável em novos contratos de concessões rodoviária e ferroviária”.
Defasagem de investimentos
Para uma mudança em médio prazo, o país precisa diversificar sua composição de transporte, e para isso são necessários investimentos.
De acordo com estudo do Fórum Econômico Mundial, com dados de 2019, o Brasil ocupa 71º lugar no ranking de qualidade de infraestrutura de transportes, dentre 141 países.
Isso não significa apenas estradas esburacadas, mas também a falta de investimento, o que compromete as possibilidades de uma frota moderna e de soluções para ampliação de infraestrutura para outros modais.
No relatório “Avaliação da Infraestrutura no Brasil”, desenvolvido pelo Banco Mundial, aponta-se que a defasagem de investimentos no setor de transportes no país é de aproximadamente R$ 4 trilhões.
De acordo com Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, para que haja diminuição da frota rodoviária e ampliação da infraestrutura, o governo federal precisa aumentar a fatia do orçamento. “Temos que investir 4% do PIB e não chegamos a 0,7% por ano, estamos muito longe do investimento físico em infraestrutura”, afirma.
O principal banco de fomento para o investimento em logística no Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), reconhece o baixo orçamento destinado para melhorias.
“De fato, o investimento em mobilidade e logística caiu nos últimos anos, mas hoje isso é prioridade do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e nos grandes setores. O objetivo mais rápido é eletrificar as frotas de ônibus. Embora o investimento seja maior num ônibus elétrico, o custo de manutenção é menor. Essa é uma das nossas prioridades,” ressalta Luciana Costa, diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do BNDES.
Malha ferroviária longe do ideal
Fica clara a necessidade do Brasil utilizar mais trens para o escoamento de sua produção. Vagões de locomotivas têm mais eficiência energética, pois emitem menos poluentes pelo peso que conseguem transportar. O plano de melhoria, porém, é lento.
“A malha ferroviária brasileira hoje é fortemente sustentada pelo minério. Temos uma malha de 30 mil quilômetros, dos quais apenas 10 mil são operacionais; um terço está transportando carga, sendo 75% de minério. A primeira coisa que precisamos fazer é mudar o perfil das malhas, para que nossas ferrovias possam transportar o agronegócio e cargas em geral”, diz Quintella.
O recurso para o setor é baixo e a expansão é longa e demorada, como pontua a Luciana Costa: “Do ponto de vista da malha ferroviária, o Brasil tem um gap de infraestrutura grande. Ferrovia é mais complexo e muito difícil de sair do papel”.
O Ministério dos Transportes afirmou em nota que “a publicação do novo Marco Legal das Ferrovias permite o aumento dos investimentos privados no setor ferroviário, pois a medida reduz a burocracia para a construção de novas ferrovias e inova no aproveitamento de trechos ociosos e na prestação do serviço de transporte ferroviário”. O ministério, porém, não detalha o plano de ampliação das ferrovias.
“Hidrovias e ferrovias emitem menos CO2 por quilômetro percorrido, mas é claro que devemos tomar cuidado com os impactos locais e outras implicações ambientais. Ao expandir a malha, é preciso controlar o uso da terra em torno daquela área, para não gerar desmatamento”, pontua Tsai.
Eletrificação da frota depende de infraestrutura
Uma solução especulada para a mitigação dos danos causados pelo transporte é o aumento da eletrificação da frota rodoviária.
O Ministério do Meio Ambiente afirmou, por meio de nota, que a eletrificação da frota é parte da solução. “O MMA coordena a elaboração do novo Plano Nacional sobre Mudança do Clima, o Plano Clima […]. Entre os oito planos setoriais de mitigação haverá iniciativas para cidades, transportes e energia, por exemplo. Os planos estão em construção, e a eletrificação da frota é parte da solução para a transformação ecológica brasileira”, pontuou.
Sobre os investimentos, a nota esclarece que o Fundo Clima foi retomado em 2023 com o aporte de R$ 630 milhões para financiar projetos de mitigação e adaptação à crise climática. Este ano, estão garantidos pelo menos R$ 10,4 bilhões com a emissão de títulos verdes pelo governo federal”.
A eletrificação da frota enfrenta também desafios, principalmente em curto prazo. “A primeira questão que se coloca é a infraestrutura energética no Brasil. A menos que consideremos o deslocamento apenas dentro da cidade, não teremos problema, mas para longas distâncias dependemos da infraestrutura ao longo da rodovia, e não é simplesmente ter uma tomada elétrica. Quando você começa a carregar e demandar energia em determinados pontos, você mexe com toda a estrutura de transmissão de energia. Quem fará esse investimento?”, provoca Eberaldo Almeida, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás.
“Acho difícil imaginar um futuro elétrico, primeiro porque são baterias muito grandes, precisam de autonomia e o tempo de carregamento é grande. E para fazer isso, precisamos de uma infraestrutura bastante custosa. É difícil imaginar, pelos elementos que temos hoje, que seja tranquilo introduzir isso”, conclui Tsai.
Hidrogênio Verde e biocombustíveis
Especialistas enxergam uma possível saída nos combustíveis menos poluentes. O hidrogênio verde pode ser o substituto do diesel. “Uma possibilidade é o hidrogênio verde, porque ele iria demandar uma bateria menor. E a recarga dele é um combustível gasoso, de modo que poderia usar a infraestrutura atual. É uma alternativa para grandes distâncias e tempo de carregamento restrito também”, pontua Tsai.
Mas apesar dos grandes investimentos anunciados para o país, a indústria do hidrogênio verde ainda não está estabelecida, e são muitos os desafios, especialmente no armazenamento e transporte do combustível.
O transporte e distribuição de cargas por aviões no Brasil ainda é incipiente e representa pouco na fatia dos modais. O querosene para avião também é um combustível poluente, mas novas maneiras de abastecimento estão sendo desenvolvidas. O Combustível para Aviação Sustentável (SAF, sigla em inglês para Sustainable Aviation Fuel), tem grande potencial de desenvolvimento em território nacional.
“Com um setor com um horizonte bem definido pela frente com a meta de descarbonização até 2050, a Associação do Transporte Aéreo Internacional (IATA, sigla em inglês para International Air Transport Association) avalia que serão necessárias 24 mil toneladas de SAF em 2030 para que as emissões zero no setor sejam alcançadas em 2050 – e, para 2024, a estimativa é de uma produção de 1,5 tonelada”, diz André Defaver, consultor da Honeywell, empresa especialista em soluções para combustíveis.
No Congresso brasileiro, pautas sobre a diminuição do impacto da frota terrestre estão em discussão. Um deles é o projeto de lei do “Combustível do Futuro”, apresentado em fevereiro de 2023, que, se aprovado, autoriza o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) a aumentar a mistura obrigatória do biodiesel (derivado de óleos vegetais) no diesel para 25%, a partir de 2031.
O Ministério de Minas e Energia disse em nota que “a Política Nacional de Biocombustíveis cria incentivos para que os consumidores substituam combustíveis fósseis por biocombustíveis sustentáveis” e reforçou que o Brasil “se comprometeu a aumentar a participação de bioenergia sustentável na sua matriz energética para aproximadamente 18% até 2030”.
Na nota, o ministério admite, porém, que “o país deverá chegar em 2030 consumindo 58% mais gasolina e óleo diesel do que consumiu em 2005”.
O Brasil tem expertise na produção do etanol, já que ainda nos anos 1970 estabeleceu o Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool). Isso foi fundamental para que o país descarbonizasse sua matriz energética, tendo hoje quase metade (47,7%) da sua energia limpa – alto índice, se comparado a apenas 15% da média mundial. O ciclo completo do etanol da cana-de-açúcar é até 90% menos poluente quando comparado à gasolina.
No final de 2023, o governo federal instituiu uma medida provisória lançando o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que amplia as exigências de sustentabilidade da frota automotiva. O programa promete injetar R$ 19 bilhões no setor até 2028, para promover uma logística sustentável. Pontos como tributação diferenciada, incentivos para pesquisa e desenvolvimento de tecnologia verde serão alvos de incentivos fiscais.
“A transição energética no Brasil é uma situação ainda incipiente, que depende de uma série de conjunturas logísticas. Não adianta falar disso enquanto eu dependo das rodovias, em mais de 60%, para o transporte de carga”, finaliza Quintella.
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2023/03/como-a-energia-solar-esta-transformando-comunidades-isoladas-da-amazonia/
Imagem do banner: Caminhões de carga em rodovia do Mato Grosso. Foto: Coleção PAC no flickr.com