O grupo de pesquisa Restaura Cerrado está unindo cientistas, coletores de sementes e voluntários para empreender um grande esforço de recuperação da savana mais biodiversa do mundo.
Segundo seus idealizadores, se a ideia é restaurar uma savana, é preciso começar pelo capim. Com isso, eles contestam a lógica dos modelos habituais de reflorestamento, baseado no plantio de árvores.
O Cerrado é de importância vital para as bacias hidrográficas do país e armazena um grande estoque de carbono no subsolo. No entanto, a perda de vegetação nativa anual é cerca de duas vezes mais alta do que na Amazônia.
Quando um cliente pediu à paisagista Mariana Siqueira um “jardim do Cerrado”, composto de plantas nativas, ela ficou chocada ao descobrir que não havia em Brasília, onde mora, nenhum viveiro com as espécies da savana mais biodiversa do planeta. Ironicamente, os viveiros se concentravam quase que exclusivamente em plantas exóticas.
Isso é um problema não apenas para os paisagistas, mas também para os ambientalistas que tentam restaurar o segundo maior bioma brasileiro, cuja extensão originalmente abarcava cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo depois de perder 50% de sua vegetação primária para o agronegócio, ele ainda abriga um terço da biodiversidade brasileira.
“Alguns autores argumentam que o Cerrado é o bioma mais antigo do mundo”, observa Siqueira. “E está sendo ameaçado não só pela agricultura, a mineração e a pecuária, mas pelas pessoas que querem plantar árvores em qualquer lugar, como se apenas as árvores e as florestas fossem a verdadeira expressão da natureza.”
Mas o grupo de pesquisa Restaura Cerrado está virando essa narrativa de cabeça para baixo, demonstrando que a restauração ecológica do Cerrado não precisa necessariamente do plantio de árvores.
O Restaura Cerrado é uma colaboração entre o Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Universidade de Brasília, a Rede de Sementes do Cerrado e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Formado por cientistas, coletores de sementes tradicionais, estudantes e ambientalistas, o grupo é liderado por Alexandre Sampaio e Isabel Schmidt, do ICMBio.
A rede está empenhada em combater as noções de restauração de ecossistemas que enfatizam o reflorestamento e, em vez disso, mostrar que o restabelecimento das plantas nativas da savana utilizando gramíneas é desejável e possível.
A iniciativa pioneira também faz parte de um passo decisivo em direção ao desenvolvimento de um setor sustentável e lucrativo que pode ser essencial para a sobrevivência do bioma, a manutenção das bacias hidrográficas do Cerrado e a mitigação das mudanças climáticas regionais e globais.
Tesouro subterrâneo
O Cerrado conecta quatro dos cinco biomas do país. Abriga cerca de 5% da biodiversidade do planeta e alimenta dois terços das maiores bacias hidrográficas do país.
Mas isso não é imediatamente visível para os visitantes: o Cerrado não é tão impressionante como os dois biomas florestais adjacentes: a Amazônia, a oeste, e a Mata Atlântica, ao leste. Para apreciar a Amazônia, basta ir para a floresta, olhar para cima e se admirar com as árvores, diz Alexandre Sampaio, especialista em restauração de savanas. “Mas, para apreciar o Cerrado, você precisa se ajoelhar na terra e olhar para um pedacinho de chão que pode conter dezenas de espécies únicas que de outra forma você não perceberia.”
O Cerrado esconde seu valor de outra forma. O dossel verdejante da Amazônia se mostra um depósito de carbono fundamental e evidente, mas as gramíneas, as árvores secas e os arbustos lenhosos do Cerrado ocultam seu recurso mais valioso no subsolo, na forma de um sistema de raízes profundas que é habitualmente chamado de “floresta subterrânea”. Alguns cientistas sugerem que até 70% do carbono da região seja armazenado embaixo do solo.
Mas, enquanto Sampaio e outros correm para salvar o Cerrado, a vegetação nativa está desaparecendo. Em toda parte, a flora local está sendo cortada, derrubada e incendiada – e os sistemas de raízes subterrâneas são arrancados e queimados para abrir caminho para o gado, a soja e o algodão.
Durante suas pesquisas de graduação e mestrado, Sampaio lembra do conflito que sentia por estudar a conservação do ecótono do Cerrado, a área onde o Cerrado se encontra com a Amazônia: ali, tudo o que havia para ser protegido estava rapidamente sendo transformado em pasto e plantação. “Eu trabalhava ao lado de escavadeiras”, lembra ele, estudando espécies que desapareciam diante de seus olhos.
De 1985 a 2017, 24,7 milhões de hectares da vegetação nativa do Cerrado foram desmatados – uma área pouco menor do que o estado de São Paulo. Hoje, a perda de vegetação nativa anual do Cerrado é cerca de duas vezes mais alta do que na Amazônia.
A conversão generalizada das terras para a agricultura degradou e enfraqueceu ecossistemas que antes eram resistentes, facilitou o alastramento de capins africanos invasores introduzidos para alimentar o gado, reduziu o potencial de sequestro de carbono do bioma e diminuiu a disponibilidade e a qualidade da água não só na savana, mas também nas grandes cidades brasileiras que dependem dos aquíferos do Cerrado.
Contudo, essas ameaças não estão igualmente distribuídas. “No norte e no centro do Cerrado, [o agronegócio] ainda desmata ativamente as terras”, diz Daniel Vieira, engenheiro florestal da Embrapa envolvido com a rede Restaura Cerrado há vários anos. “Mas no sul, a maior parte do desmatamento já aconteceu. Temos muitas terras degradadas.” E é lá que a Restaura Cerrado está trabalhando – não tentando conservar a vegetação nativa existente, mas procurando restaurar as terras agrícolas exauridas na esperança de fazer florescer o ecossistema de savana.
Crescendo a partir do zero
Quando Sampaio e Schmidt começaram a trabalhar na restauração do Cerrado no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, em 2010, eles se depararam com uma lacuna na ciência. Embora muitos trabalhos tenham sido feitos no mundo todo para criar modelos factíveis de restauração florestal, pouco se sabia sobre a restauração de savanas.
“A crença era de que, ao trazer de volta as árvores, outras plantas nativas voltariam”, diz Sampaio. Numa paisagem dominada pela floresta, como a Amazônia, onde as árvores impedem que plantas como capins invasores cresçam perto do solo, esse modelo se aplica. “Mas não é assim que a savana funciona”, observa Sampaio. Não há árvores suficientes nela, e elas não são densas ou altas o bastante para afastar espécies invasoras, como os capins africanos.
Historicamente, no Brasil, a restauração ecológica e os projetos de paisagismo só costumavam plantar as espécies arbóreas de um bioma, deixando de fora as gramíneas e os arbustos que representam mais de 60% da diversidade de sua flora (cerca de 7 mil espécies), além de exercer funções ecológicas fundamentais.
Este padrão se repete em todo o mundo, e as paisagens não florestais não só recebem menos atenção científica e apoio de governos como estão cada vez mais ameaçadas por campanhas massivas de plantio de árvores que podem suplantar os ecossistemas nativos. No Brasil e no Cerrado, isso às vezes se traduziu no plantio de eucaliptos exóticos para fornecer papel higiênico ao mundo, mas que têm pouco valor ecológico.
Sampaio e Schmidt pensam diferente. Eles decidiram que, se a ideia é restaurar uma savana, é preciso começar pelo capim. E foi exatamente isso que fizeram.
A partir de 2010, eles passaram a cultivar gramíneas nativas do Cerrado em terrenos de 1 hectare. Naqueles primeiros anos, eles observaram como a camada de vegetação herbácea – capins e outras plantas rasteiras – se estabelecia, e como era difícil controlar e evitar capins invasores.
Eles descobriram que, para combater essas plantas exóticas indesejadas, precisavam limpar os campos mecanicamente e semear muitas gramíneas nativas de crescimento rápido – uma técnica que tinha uma boa germinação e taxa de crescimento. Sua rede de pesquisa logo se expandiu, integrando estudantes da Universidade de Brasília, a Embrapa e a Rede de Sementes do Cerrado.
“Foi definitivamente uma experiência de aprender fazendo”, diz Vieira, da Embrapa. “Trabalhar no terreno de 300 hectares da Chapada dos Veadeiros permitiu que aprendêssemos muito sobre a ecologia da restauração, e sobre a ecologia básica do Cerrado em geral.”
Replicando os experimentos de campo
Em 2015, o Restaura Cerrado teve a oportunidade de colocar sua pesquisa na prática. Uma companhia de transmissão de energia elétrica, a Norte Brasil Transmissora de Energia, estava construindo redes elétricas na região Centro-Oeste. Para compensar o desmatamento, a empresa fez uma parceria com o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros – sítio reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade pela ONU – para restaurar uma área degradada de 100 hectares do parque.
Os administradores do parque concordaram, com uma ressalva: a restauração teria de ser feita com vegetação nativa do Cerrado, usando as novas técnicas criadas pelo Restaura Cerrado. Essa condição criou um obstáculo inicial: o contrato da companhia de energia exigia que o grupo plantasse árvores. “Os técnicos não entendiam por que precisávamos plantar gramíneas em vez de árvores”, diz Sampaio.
Uma vez que negociada essa condição, outra questão surgiu: onde encontrar sementes nativas suficientes para restaurar uma área de 100 hectares? A resposta surgiu a partir das 40 famílias da região que o Restaura Cerrado vinha treinando para coletar e preparar sementes. Essas famílias foram recrutadas para fornecer as sementes para o projeto de compensação ambiental da companhia elétrica.
Um desses coletores era Claudomiro de Almeida Cortes. Nascido e criado na Chapada dos Veadeiros, ele trabalhou no parque primeiro como bombeiro e depois como técnico de campo, desenvolvendo um profundo respeito pela natureza. “Tenho uma grande responsabilidade, que é tomar conta do patrimônio que é o Cerrado”, diz ele. “Sem o Cerrado não há água, ar limpo, nada… Não há vida.”
Durante o projeto de restauração, a demanda por sementes nativas foi tão grande que Almeida Cortes acabou criando uma associação de coletores, que batizou de Cerrado de Pé. A associação agora inclui 80 famílias, 30 das quais pertencem à comunidade Kalunga, a maior comunidade quilombola do Brasil.
“Estamos na linha de frente do desenvolvimento de técnicas inovadoras apropriadas para restaurar o bioma do Cerrado”, diz Almeida Cortes, que continua colaborando com o Restaura Cerrado. Hoje, sua associação fornece insumos para um número crescente de projetos de restauração, oferecendo 70 variedades de espécies nativas diferentes. Mas isso é apenas o começo: Almeida Cortes diz que sua associação terá mais de 200 espécies nativas do Cerrado prontas para comercializar nos próximos dois anos.
Restauração como desenvolvimento sustentável
Os conservacionistas não são os únicos que apreciam o potencial da restauração. Um estudo de 2020 revelou que uma economia de restauração baseada nas sementes nativas no Brasil poderia gerar até US$ 146 milhões por ano e empregar até 57 mil pessoas.
Novas empresas de sementes já estão surgindo. Uma das sócias da Cerrado de Pé é Bárbara Pacheco, diretora da VerdeNovo, uma pequena empresa de sementes. Bióloga de formação, Pacheco trabalhou por anos na Embrapa fazendo restauração ecológica antes de fundar sua própria empresa socioambiental, que emprega 17 coletores de sementes nos três estados do Cerrado.
Para ela, a restauração se tornou um argumento fundamental para tentar mudar a visão das pessoas que vivem na região. “Temos um coletor que costumava extrair madeira do Cerrado”, diz ela. “Hoje, ele trabalha com sementes nativas, que suplementam sua renda. Ele diz que mudou de visão. Não pensa mais em derrubar árvores; em vez disso, vê potencial no chão ao seu redor.”
Apesar disso, Pacheco continua preocupada com a degradação e a destruição em curso: ela e outros temem que, se não houver vegetação nativa suficiente, os reservatórios de sementes vão diminuir, e algumas plantas raras podem ficar ainda mais escassas, dificultando a coleta de variedades nativas geneticamente diversas.
Semeando o futuro
De acordo com cientistas, a restauração está entre os meios mais efetivos e baratos para mitigar as mudanças climáticas, especialmente ao plantar em terras degradadas ou abandonadas. Além disso, estudos mostram que a restauração pode promover o desenvolvimento sustentável, a segurança alimentar, e potencialmente empregar milhares de pessoas – gerando cerca de 200 novos empregos para cada mil hectares restaurados.
Como parte do Desafio de Bonn – com sua meta global de restaurar 350 milhões de hectares até 2030 –, o Brasil se comprometeu a recuperar 12 milhões de hectares de vegetação nativa. O Cerrado, que tem um quarto das terras transformadas em pastagens, com 40% delas degradadas, oferece uma enorme oportunidade para essa restauração em grande escala e para o setor sustentável de sementes nativas.
Apesar disso, companhias, governos e organizações internacionais, inclusive a ONU, dão maior atenção ao reflorestamento, e a restauração do Cerrado ainda fica muito atrás em financiamento, pesquisa e consciência da população.
“É difícil mudar a mentalidade das pessoas em relação à restauração”, explica Sampaio. “É difícil fazer com que elas se interessem por plantinhas que mal podem ver, quando o símbolo de plantar uma muda de árvore é tão forte.”
Ainda assim, ele acredita que organizações como a Restaura Cerrado mostrarão o caminho para a recuperação da savana. Pouco a pouco, o mundo está aprendendo a valorizar este tipo de bioma. Uma parceria entre a Restaura Cerrado e a Unicamp, em São Paulo, por exemplo, planeja estudar o papel que as espécies do Cerrado desempenham na restauração do ecossistema, algo sobre o que os pesquisadores sabem pouco, diz Sampaio.
Também aconteceram pequenas vitórias legislativas, diz Vieira, da Embrapa. O Distrito Federal, por exemplo, implementou regulações-piloto exigindo que áreas antes cobertas por gramíneas sejam replantadas com capins nativos, em vez de árvores ou plantas exóticas.
Talvez o maior sinal de mudança esteja nos consumidores da cidade. Nos últimos seis anos, depois de constatar a falta de viveiros de espécies nativas em Brasília, Mariana Siqueira lançou um modelo de negócio de paisagismo urbano com base nos jardins do Cerrado. Trabalhando em colaboração com a Associação Cerrado de Pé e o Restaura Cerrado, ela seleciona e fornece uma variedade de espécies de plantas do Cerrado para seus clientes. No processo, ela, que não sabia quase nada do bioma, tornou-se uma das maiores defensoras de sua restauração.
“Uma vez que você entende como o Cerrado é único, é difícil não admirar e se inspirar”, diz ela. “Também percebi que o Cerrado não é só um lugar que precisa de mim, mas que eu também preciso dele.”
* Mauricio Angelo contribuiu com a reportagem.
Imagem do banner: Voluntários do Restaura Cerrado espalham sementes pela savana. Foto: Fernando Tatagiba/ICMBio.