Há três séculos, as comunidades de apanhadores de flores vivem de forma autossuficiente na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Muitas são descendentes de africanos escravizados, mas se misturaram a indígenas e descendentes de colonos portugueses.
As centenas de comunidades estabeleceram uma relação cooperativa de longa data com a natureza, usando o fogo de forma controlada e um código de regras sustentáveis para manter suas pastagens comuns e a paisagem natural em equilíbrio.
Em 2020, a FAO reconheceu o modo de vida dos apanhadores de flores como Patrimônio Agrícola Mundial. É a primeira comunidade no Brasil a receber o título.
Além da criação de um parque nacional que proíbe a coleta, a mineração e plantações de eucalipto constituem ameaças a esse modo de vida ancestral.
“A serra é nossa terra, nossa vida”, diz Maria de Fátima Alves, ou Tatinha. A serra a que ela se refere é a do Espinhaço, cadeia montanhosa com cerca de mil quilômetros de extensão em Minas Gerais, que marca a transição do Cerrado para o semiárido nordestino. Chefe da Comissão pela Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), Tatinha é uma das moradoras das centenas de comunidades da Serra do Espinhaço que ganham a vida colhendo e vendendo flores nativas — as chamadas sempre-vivas.
O nome é apropriado: as sempre-vivas florescem sobre afloramentos rochosos, apesar de enraizadas em solos arenosos pouco profundos e pobres em nutrientes. Incapazes de produzir raízes longas para acessar a água e os minerais do subsolo, as várias espécies de sempre-viva desenvolveram estratégias alternativas para sobreviver à seca: uma delas é produzir menos folhas, de forma que as plantas não murchem após longas horas ao sol; outra são as flores que sobrevivem por semanas ou até meses sem perder a cor, atraindo polinizadores – e admiradores.
Em 2020, a experiência dos apanhadores de sempre-vivas foi reconhecida pela FAO como o primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil. Ela agora faz parte dos Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam), uma rede criada pela organização para identificar “paisagens de excepcional beleza que combinam biodiversidade agrícola, ecossistemas resilientes e um valioso patrimônio cultural.” Já são 62 sistemas reconhecidos pela FAO em 22 países.
Da escravidão à vida em comunidade
Em um passado não tão distante, a Serra do Espinhaço foi um grande centro de exploração de ouro e diamante, empregando um grande volume de mão de obra escrava.
Para alguns, esse trabalho em condições análogas à escravidão continuou por gerações, mesmo após a abolição. Fernanda Monteiro, que estudou o modo de vida dos apanhadores de flores por mais de uma década, diz que sua pesquisa revelou pessoas que ainda eram escravizadas até os anos 1960, trabalhando nas minas e também nas fazendas de gado da região.
A apanhadora Andreia Ferreira dos Santos contou algo similar à Mongabay: “As pessoas mais velhas da minha comunidade começaram a trabalhar [em grandes fazendas] quando eram crianças e não eram pagas de forma adequada, com frequência recebendo apenas alimento em troca do trabalho”, lembra. “Meu tio Zé Carreira me contou algo muito impressionante: que eles trabalhavam na fazenda e na mina para um homem que os fazia dormir no estábulo; quando ele saía com o cavalo, eles tinham que esperar que ele chegasse, já que à noite usavam o cobertor da sela para se proteger do frio.”
Muitos trabalhadores, porém, conseguiram fugir e se esconder entre os picos e vales que compõem a serra. A invisibilidade, somada às alianças familiares que foram construindo com o tempo, se tornaram sua estratégia de sobrevivência.
Marcello Broggio, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil, conta como os escravizados fugidos se encontraram e se miscigenaram com outros grupos: “Os escravizados, fugindo da exploração fatal nas fazendas ou na mineração do ouro, misturaram-se com povos indígenas nativos da região e com descendentes de colonos europeus, realizando a pecuária itinerante”, explica.
Manejo sustentável
Juntas, as centenas de comunidades constituídas por esses povos de diferentes origens construíram ao longo do tempo um modo de vida alternativo ao trabalho escravo – uma forma de vida independente baseada no uso comum das terras altas. Isso inclui o cultivo de alimentos em roças próximas aos vilarejos e a criação de pequenos rebanhos de gado curraleiro, raça antiga descendente dos primeiros bois trazidos pelos colonizadores portugueses. E, é claro, a coleta de espécies da flora local para uso ornamental: “Coletamos mais de 200 espécies de flores, frutos e folhas secas”, diz Tatinha.
Monteiro diz que colher flores se tornou muito mais do que uma maneira de ganhar dinheiro: “A luta dos apanhadores de flores é uma luta profunda. É uma luta por um meio de vida, uma forma de pensar o mundo, de se relacionar com a serra e de construir o futuro que querem para seus filhos.”
Como os apanhadores de flores estão sempre trabalhando com as gerações futuras em mente, sua visão já é em si sustentável. Broggio explica: “A engenhosidade dessas comunidades híbridas foi desenvolver em um curto período de tempo um estilo de vida e uma estratégia de sobrevivência totalmente integrados com o meio ambiente; e sustentáveis o suficiente para serem eficientes, duradouros e resilientes.”
Tatinha conta como funciona esta relação sinérgica com a natureza. Ao longo de muitos anos, as comunidades estabeleceram um procedimento meticuloso de cultivo, passado de geração em geração, garantindo o florescimento das sempre-vivas. “É preciso colher as flores quando elas estão totalmente abertas, depois que as sementes caíram, e deixar sempre o restolho no solo, a partir do qual novas flores podem surgir”, diz ela.
Assim como em outros ecossistemas singulares – como os fynbos na África do Sul, ou as pastagens altas de Sinjajevina, em Montenegro, nos Bálcãs –, as famílias do Espinhaço também usam o fogo para preservar o habitat, estabelecendo uma relação benéfica entre as comunidades naturais e humanas. No momento certo do ano, depois das primeiras chuvas, elas colocam fogo nas pastagens e encostas onde as flores crescem. “As flores não conseguem sobreviver sem o fogo”, diz Tatinha.
Os apanhadores de flores dizem que o uso do fogo imita os incêndios naturais que ocorrem na serra, mas controlando-os para torná-los mais eficientes e menos destrutivos. Broggio concorda: “Nenhuma espécie [de sempre-viva] desapareceu nas áreas tradicionais de coleta devido à superexploração, enquanto que em algumas áreas protegidas recém-estabelecidas, onde o uso do fogo é proibido, algumas dessas espécies se tornaram raras.”
Proibidos de entrar no parque
Uma grande mudança na vida dos apanhadores foi a criação, em 2002, do Parque Nacional das Sempre-Vivas, que cobre 124 mil hectares no sul da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Segundo as comunidades locais, porém, elas não foram consultadas previamente sobre a decisão do governo federal de criar a reserva.
Os parques nacionais representam uma forma radical de conservação, um modelo no qual a ocupação humana ou atividades de subsistência não são permitidos. Contudo, o parque da Serra do Espinhaço foi imposto em terras tradicionalmente usadas e manejadas de forma sustentável pelos apanhadores de flores por séculos. Após o estabelecimento do parque, houve tentativas de criminalizar as famílias por viverem como sempre viveram, de acordo com moradores locais.
O ICMBio (Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade), que administra os parques nacionais, diz que suas políticas mudaram desde a fundação do parque em 2002. “O ICMBio não tenta limitar as atividades tradicionais dos apanhadores de flores no Parque Nacional das Sempre-Vivas. Ao contrário, desde 2012, o instituto vem desenvolvendo uma série de iniciativas, em diálogo constante com as comunidades tradicionais, para a construção participativa dos Termos de Compromisso. Esses acordos são de importância fundamental para garantir a sobrevivência digna das comunidades sem prejudicar a conservação dos recursos naturais protegidos na unidade de conservação.”
Mas algumas tensões ainda existem. “Até o ano passado, os coletores de flores eram multados se fossem encontrados trabalhando no parque”, relata Tatinha, algo que, segundo ela, é muito injusto. “Se ainda existem flores e água no parque hoje, é porque nós tomamos conta da terra. As autoridades a encontraram preservada, e mesmo assim querem excluir os coletores. Essa é uma grave violação dos nossos direitos.”
Monteiro concorda. “Acho totalmente incoerente criar uma unidade de conservação, que só foi preservada por causa da forma como as comunidades tradicionais manejaram a terra ao longo dos últimos 300 anos, e impedir que essas mesmas comunidades entrem nela.” Ela acrescenta: “Fiquei chocada com o grau e o tipo de violência, tanto física quanto simbólica, que essas comunidades sofreram.”
Eucaliptos e mineração: novas ameaças
Se por um lado existe a limitação de entrada no parque nacional para apanhar sempre-vivas, fora da reserva as comunidades vivem sob permanente pressão de atividades tidas como “progresso econômico” para a região. Ao norte do parque, plantações extensivas de eucalipto, usado para produzir carvão, cobrem 300 mil hectares. “O eucalipto tem um impacto muito negativo”, explica Tatinha. “Ele destrói o Cerrado e destrói os cursos d’água, porque seca a água do subsolo. Onde quer que o eucalipto seja plantado, não há água ou flores.”
A ciência dá respaldo à visão de Tatinha, com fortes evidências de que eucaliptos invasores acabam com a água, e que também diminuem significativamente a biodiversidade de gramíneas. No entanto, ainda não há controle sobre as plantações de eucalipto, já que elas ficam fora do parque nacional.
Outro risco: Tatinha diz que companhias de mineração estão invadindo as terras comuns. “A mineração está entrando com força total, especialmente agora durante a pandemia, quando tudo está parado. [As mineradoras] não realizam consultas públicas com as comunidades nem estudos de impacto ambiental. Mesmo assim, elas estão tomando nossos territórios.”
De acordo com Fernanda Monteiro, diversas mineradoras de diferentes portes chegaram à serra, com planos de explorar vários minérios, entre eles o manganês, o ferro e o quartzito.
Em meio à luta das comunidades para manter o livre acesso às suas terras comuns e continuar com seus meios de vida ancestrais, a designação da FAO lhes deu esperança, além de uma nova arma – a publicidade.
Membros da comunidade disseram que a designação da FAO permite que eles façam campanha de forma mais eficaz para obter os títulos da terra. “Não faz sentido o governo aceitar a designação do modo de vida dos apanhadores de flores como um Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial e depois desmembrar o território, permitindo a entrada de mineradoras e da monocultura de eucalipto, além da privatização do parque”, diz Tatinha.
“Nós vivemos na invisibilidade por muitos séculos, até as ameaças externas acabarem com a nossa paz”, ela conclui. “Agora, essa visibilidade deve trazer as políticas públicas necessárias para manter nosso modo de vida vivo.”
Imagem do banner: As comunidades da Serra do Espinhaço coletam mais de 200 espécies de flores, frutas e folhas secas; a maior parte da renda vem das sempre vivas. Foto: João Roberto Ripper/www.imagenshumanas.com.br.