Por quase um século, comunidades tradicionais do Cerrado brasileiro ocuparam terras sem título onde criavam pequenos rebanhos e cultivavam plantações de maneira sustentável. A savana era em grande parte ignorada pelo agronegócio, que não dispunha de tecnologia para cultivar e irrigar o solo semiárido.
Isso mudou há cerca de 30 anos, quando avanços tecnológicos possibilitaram a produção de soja em grande escala na região. Empresários bem-sucedidos correram para o Cerrado e começaram a reivindicar as terras cultivadas pelas comunidades tradicionais. Desprovidas do seu meio de vida e às vezes forçadas a deixar suas casas, várias pessoas se mudaram para cidades recém-construídas para suprir o boom da soja.
Campos Lindos era um desses novos municípios. Enquanto muitos produtores de soja em grande escala afirmam terem levado prosperidade ao Cerrado, Campos Lindos exibe níveis de pobreza muito mais altos do que a média brasileira, carece de vários serviços fundamentais como água limpa e atendimento médico básico e apresenta índices elevados de mortalidade infantil e materna.
Alguns atribuem o agravamento desses problemas sociais aos produtores de soja, cujas safras foram rastreadas por analistas e chegaram a empresas transnacionais de commodities como a Cargill e a Bunge, passando por frangos alimentados com dietas à base de soja no Reino Unido, varejistas como McDonalds, Tesco e Morrisons e, por fim, consumidores de países desenvolvidos.
Esta é a quarta reportagem de uma série escrita pela jornalista Anna Sophie Gross, que viajou para os estados do Tocantins e Maranhão na Amazônia Legal a serviço da Mongabay para avaliar os impactos do agronegócio no meio ambiente e na população daquela região.
CAMPOS LINDOS, Brasil — O Sr. Raimundo de Miranda plantava arroz, feijão e mandioca com sua esposa, Brigida, em um pequeno sítio na zona rural do Tocantins. Ele levava uma vida simples, satisfatória e autossuficiente: tirava seu sustento dos animais que criava e da terra que cultivava e quase não dependia do mundo exterior.
Muitas famílias de áreas vizinhas viviam de maneira semelhante. A maioria ocupava essas terras há quase um século, apesar de não possuírem títulos.
A mudança teve início vinte anos atrás, quando empreendedores do setor agrícola começaram a chegar do sul do país com destino ao Tocantins, apelidado de “filé-mignon” agrícola do Cerrado. Boa parte das terras sem título onde o Sr. Raimundo e outros membros da comunidade tradicional costumavam plantar, criar gado e enterrar seus mortos foi reivindicada para a produção do agronegócio industrial e ocupada por enormes monoculturas de soja.
No caso do Sr. Raimundo, a saúde da sua família sofreu o impacto mais doloroso dessa usurpação, com surtos periódicos e graves de intoxicação por agrotóxicos (o modelo industrial para o cultivo da soja exige doses maciças de herbicidas, frequentemente despejados por aviões). Dois sobrinhos do Sr. Raimundo foram hospitalizados e faleceram em decorrência da intoxicação. Foram instaurados inquéritos, mas até agora não houve veredito. A esposa do Sr. Raimundo também ficou gravemente doente.
Privada do seu sustento e da sua saúde, a família vendeu suas terras em 2014 por um valor menor que o valor real e se mudou para a cidade de Campos Lindos, um centro urbano recém-construído para suprir as necessidades geradas pelo boom da soja. A cidade tem má fama no Brasil devida aos seus níveis elevados de pobreza e às péssimas condições de vida.
“Estamos produzindo muito menos, somos perseguidos e os moradores da cidade nos roubam”, disse o Sr. Raimundo à Mongabay. “Não é nada fácil.”