Pecaris num milheiral. Foto de Brendan Borrell.
Uma tarde de Fevereiro, Margie Peixoto guiava a sua carrinha através da sua fazenda no estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, quando vislumbrou alguns pés de milho partidos e um trio de pecaris de lábio branco (Tayassu pecari) atravessando o trilho de barro vermelho como se fossem seus donos. No momento em que estes porcos selvagens viram a carrinha, grunhiram, roncaram e desapareceram para dentro do milheiral, onde se encontravam escondidas algumas dezenas de animais.
“O grupo cresce cada vez mais à medida que os anos passam, e o estrago nas colheitas é também cada vez maior,” afirmou Peixoto, uma mulher Zimbabueana de meia idade que imigrou para esta fazenda há mais de 30 anos, depois de conhecer o seu marido brasileiro quando este viajava por África.
Peixoto estima que os pecaris selvagens tenham destruído sensivelmente 10 por cento da colheira no ano passado, com perdas que ascenderam a um total de 250,000 reais brasileiros ($100,000). Um dos animais atacou e matou o cão da família.
Mas ela não é a única com estas preocupações. Marcos da Silva Cunha, director do Parque Nacional Emas, localizado perto da fazenda, afirmou que o tamanho dos grupos de pecaris nas áreas agrícolas da região pode atingir entre 80 a 100 indivíduos, comparado com os grupos de 40 indivíduos que podem ser observados no seu habitat natural.
Os reguladores do governo brasileiro concordam que a explosão populacional é um problema sério que ainda não foram capazes de resolver. A caça não é a solução, uma vez que os pecaris estão protegidos quer dentro, quer fora do parque nacional. Alguns conservacionistas e agricultores sugeriram, pelo contrário, uma parceria contra-intuitiva e medidas de controlo do pecari: uma que encoraja maiores populações de jaguares e pumas.
Os jaguares (Panthera onca) ocuparam no passado uma grande extensão, vagueando practicamente pelo norte da América do Sul até ao sudoeste dos Estados Unidos. No entanto as pressões humanas provocaram a fragmentação da sua distribuição em muitos locais, e a espécie está listada pela IUCN como “Quase Em Perigo”. Foto captada na Colômbia por Rhett A. Butler.
Leandro Silveira, presidente do Fundo de Conservação do Jaguar, afirmou que os grandes felinos eram alvo de perseguição pelos fazendeiros de gado, mas a sua pesquisa em animais portadores de uma coleira-rádio demonstrou que os felinos são capazes de vaguear através de caniçais e de se esconderem na vegetação bordejante dos cursos de água. “Os jaguares procriam todos os anos nesta paisagem agrícola,” afirmou. “Eles vivem todo o seu ciclo de vida no exterior do parque.”
Silveira, tem mantido discussões com os fazendeiros e com a Odebrecht– um conglomerado petrolífero, de engenharia e agricultura que é possuidor de muita da terra– para que estes aceitem um esquema de certificação “amigo dos jaguares”. Sob o programa de baixo-custo, os fazendeiros seriam obrigados a manter nas suas propriedades agrícolas um certo nível de habitats devidamente interligados e deveriam evitar perseguir os grandes felinos ou a sua presa, os pecaris. Em contrapartida os felinos controlariam de forma natural os números de pecaris, o que reduziria os estragos nas colheitas.
Peixoto gosta da ideia. Os seus 9,390 acres (3,800 hectares) de soja, milho e pastagens para gado ficam na fronteira com o Parque Nacional Emas– uma mistura de savana e floresta, que tem sido comparada às planícies africanas devido à sua vida selvagem abundante e carismática. Com poucas árvores para obstruir a vista, é um dos melhores locais do país para observar o tapir (Tapirus terrestres), o papa formigas gigante (Myrmecophaga tridactyla), o lobo guará (Chrysocyon brachyurus), e, claro, a grande ema (Rhea americana), a grande ave não voadora, relacionada com a avestruz, que é conhecida localmente, em português, como “Ema”. O parque nacional abrange a maior área remanescente de savana da área, estando isolada por plantações de soja, milho e cana de açúcar que se estendem até ao horizonte.
O Cerrado é constituído por cerca de dois milhões de hectares de zonas planas com arbustos e árvores no Brasil. É o maior ecossistema de cerrado na América do Sul e um dos habitats com maior biodiversidade do mundo. É também um dos ecossistemas brasileiros mais ameaçados, com cerca de metade da sua área desmatada para plantações ou pastagens de gado. Foto de Rhett A. Butler. |
Embora a conversão de pastagens para cana de açúcar e outras monoculturas na fazenda de Peixoto tenha contribuído para a degradação do ecossistema do Cerrado, ela e o seu marido consideram-se amantes da natureza, e estão dispostos a acolher o retorno dos grandes felinos.
“Temos bons métodos agrícolas. Não aramos a terra. Somos muito cuidadosos com as pulverizações e os produtos que usamos,” afirmou. Mais de um terço da sua fazenda permanece sub-desenvolvida, acima do limite legal de 20 por cento. “Poderíamos obter permissão para desmatar e plantar soja. Não queremos. Gostamos de ter o habitat natural.”
Do que ela não gosta é dos pecaris.
“Nós fazemos a nossa parte, porque é que eles não fazem a deles?” pergunta, referindo-se aos reguladores ambientais do Brasil, incluindo a agência do poarque nacional, conhecida como Instituto Chico Mendes para a Conservação e Biodiversidade (ICMBIO) e o braço administrativo do Ministério do Ambiente, conhecido como o Instituto do Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
Recentemente, o IBAMA, rejeitou uma proposta- popular entre os fazendeiros- para capturar pecaris jovens, criá-los em captiveiro e abatê-los para vender a sua carne. É por isso que o plano de certificação do jaguar, que pretende encorajar o habitat do grande felino em terrenos agrícolas, está a encontrar o apoio dos fazendeiros, e pode ser crítico para assegurar o futuro do bioma ameaçado do Cerrado brasileiro e a sua rica biodiversidade.
Cunha, o director do Parque Nacional Emas, também quer reduzir os números de pecaris de forma natural. “O excesso daquela espécie não é positivo para o parque,” concordou. Os pecaris escavam em redor da vegetação, criam poças de lama e perturbam as sensíveis nascentes de água naturais pelas quais o Parque Emas é tão conhecido.” O Emas serve de nascente para vários rios brasileiros, incluindo o Araguaia, que flui ao longo de 1,632 milhas antes de desaguar no Amazonas.
Em resposta à crescente população de pecaris, Cunha tem assistido a um aumento da caça ilegal dos animais, e investigou dois casos de fazendeiros que evenenaram grupos de pecaris. Embora os pecaris sejam abundantes em redor do Emas, ele nota que os animais estão classificados como ameaçados no Cerrado e estão extintos em diversos parques nacionais, incluindo a Foz do Iguaçu e a Serra Canastra. “Somente no Emas se verifica uma abundância destes animais,” afirmou.
Os pecaris constituem uma família de porcos do Novo Mundo que abrange a maior parte a América do Sul até ao sudoeste dos Estados Unidos. Não são estreitamente relacionados com os porcos domésticos. Foto de um pecari de coleira (Pecari tajacu) por Rhett A. Butler. |
Cunha discorda que o controlo dos pecaris seja da sua responsabilidade. “Não é somente um problema do parque”, afirma. “É um problema do homem e da natureza”. Ele ligou a sobre-população de pecaris com o crescimento explosivo de explorações de cana de açucar que teve lugar nos últimos oito anos. No começo dos anos 70, as terras em redor do Emas foram convertidas em pastagens para gado e, mais tarde, em plantações de milho e soja. Em 2007, o conglomerado Odebrecht, que tem um retorno anual de $30 milhões, começou a comprar os terrenos em redor do Emas. Hoje em dia, esta empresa tem três fábricas de produção de etanol a partir de cana de açucar em cidades a norte, sul e este do parque, aos quais se juntam mais de 333,592 acres (135,000 hectares) de pastagens.
Embora previamente os pecaris saíssem do parque atraídos pelas culturas de milho, Cunha afirma que a cana de açucar permite que sobrevivam todo o ano fora das suas fronteiras. Depois de um fogo ter queimado 90 por cento da área do parque em 2010, a vida selvagem tornou-se ainda mais dependente das fazendas em redor.
A Odebrecht nega que a agricultura tenha provocado o desequílibrio ecológico. Numa declaração à mongabay.com, afirmam que “não existem evidências científicas que apontem para o crescimento da população de pecaris nos campos de cana de açucar,” e ainda que “as actividades agrícolas não conduziram ao desaparecimento de nenhuma espécie.”
Silveira concorda que antes da chegada da cana do açucar já existia uma grande população de pecaris. “O problema está ligado com o milho e não a cana de açucar,” afirmou. “Tornou-se pior de ano para ano porque o número de indivíduos está a aumentar. É um problema matemático básico.”
Quaisquer que sejam as causas do problema, Silveira continua em negociações com a Odebrecht e com os fazendeiros para que aceitem a ideia da certificação “amigo dos jaguares”. No entanto, a sua campanha pelas monoculturas como a cana de açucar como forma de suporte para os grandes felinos é uma posição pouco popular entre os conservacionistas.
Por outro lado, Cunha acredita que esta visão é limitada. “A monocultura causa desequilíbrio,” afirmou. É certo que espécies como o pecari e o jaguar beneficiam da cana de açucar, mas há outras espécies que sofrem. Por exemplo, os densos campos de cana actuam como uma barreira para as emas. Cunha propôs que o problema fosse gerido através de uma combinação de melhores vedações, providenciar alimentação suplementar para os pecaris dentro do parque e esterilização, mas ele não tem nem os fundos nem o poder para avançar com tal proposta.
O Parque Nacional do Emas– a gema do bioma do cerrado– vive perpetuamente de fundos reduzidos. Embora as suas 509 milhas quadradas (1,320 quilómetros quadrados) tenham sido designados Património Mundial pela UNESCO, os seus trilhos acimentados estão em estado de degradação. O centro para visitantes e a casa do guarda estão vazios porque o parque não tem modo de pagar a funcionários, e a torre de vigia de madeira encerrou indefinidamente pois não há dinheiro para a reparar. Em contraste, os parques nacionais e estatais no Amazonas beneficiam do programa de Áreas Protegidas da Região Amazónica, que recebem $200 milhões do Banco Mundial, do World Wildlife Fund e da Fundação Ford.
O Parque Nacional Emas tem fundos reduzidos que não permitem contratar funcionários para a casa do guarda e o centro de visitantes, ou para pagar um programa de protecção do pecari. Foto de Brendan Borrell.
Neste momento os agricultores sentem-se optimistas com o programa de Silveira porque este não depende do governo ou das vontades dos financiadores internacionais. Peixoto preferia ter predadores felinos a vaguear pela paisagem aos pecaris destruidores de culturas. “Houve um puma que matou uma das nossas vacas, “disse, “mas não foi uma perda tão grande, quando pensamos que eles matam os porcos selvagens.”
Se as coisas resultarem como Silveira espera, a cana de açucar e os pecaris– que está provado serem uma péssima combinação para os agricultores locais– podem tornar-se numa benção para os grandes gatos e restante vida selvagem. “Estou bastante optimista”, afirmou. “Se o habitat estiver bem inter-ligado, poderá sustentar um Cerrado com a sua fauna intacta.”