Com produção atual de 270 mil toneladas por ano, a Sigma Lithium vem expandindo a mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha; as pilhas de materiais descartados já alcançam 560 mil metros quadrados de área e se aproximam das casas da comunidade vizinha.
O pó lançado pela operação nas minas vem causando doenças respiratórias na população, que também sofre com transtornos psiquiátricos, rios assoreados e rachaduras nas casas, causadas pelas detonações.
Outras comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha, incluindo quilombolas e indígenas, também se veem afetadas pela mineração de lítio; em alguns municípios já ocorrem conflitos fundiários.
ITINGA (MG) — É madrugada, e o movimento não para nas minas de lítio do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O barulho de centenas de máquinas remexendo o solo ecoa pelas montanhas e acaba com o sossego das comunidades tradicionais da região.
O relógio marca 3h30 quando uma fila de caminhões se forma no alto de uma colina. Com ajuda de tratores, toneladas de pedras são despejadas morro abaixo. O estrondo se mistura ao ruído dos motores e alcança as 70 casas do povoado de Piauí Poço Dantas, em Itinga, estabelecido há 150 anos nas margens do riacho Piauí, um afluente do Rio Jequitinhonha.
A colina, na verdade, é a Pilha 5 de estéril — conjunto de materiais não aproveitáveis — da maior mina de lítio do Brasil. Com 20 metros de altura e 560 mil m2, sua área cresceu quatro vezes nos últimos 11 meses e já está a poucos metros do xriacho e das casas do povoado. Se forem mantidos os planos de expansão da mineradora Sigma Lithium, dona da operação, a situação pode se agravar ainda mais.
Com uma produção atual de 270 mil toneladas anuais de concentrado de lítio, a mineradora acaba de receber um financiamento de R$ 500 milhões do Fundo Clima para dobrar sua capacidade. O financiamento foi aprovado após uma análise do projeto e das licenças obtidas pela Sigma junto aos órgãos ambientais, diz o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), gestor do fundo criado para financiar medidas de combate às mudanças climáticas.
Para alcançar 540 mil toneladas anuais a partir de 2025, a área de empilhamento prevista no projeto inicial da empresa precisou ser quintuplicada. Os 400 mil m2 licenciados em 2019 saltaram para 2 milhões de m2 na última licença de operação, publicada em janeiro pela Semad (Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais) após parecer favorável da Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente).
O apressado crescimento da Sigma é ditado pela alta demanda do metal no mercado internacional, especialmente para a fabricação de veículos elétricos na China, Japão, Europa e Estados Unidos, e já faz outras mineradoras entrarem na disputa pela extração de lítio na região.
Enquanto a Sigma opera a todo vapor para compensar a brusca queda no preço do lítio (quase 90% em relação a 2022), a americana Atlas está em vias de obter a licença de operação em Araçuaí, também no Vale do Jequitinhonha; a australiana Pilbara Minerals anunciou a intenção de comprar direitos minerários em Salinas por R$ 1,95 bilhão; e a CBL (Companhia Brasileiro de Lítio), que explora uma antiga mina subterrânea vizinha à Sigma, planeja triplicar sua produção.
Asma, pneumonia e silicose
O avanço desenfreado das mineradoras é sentido todos os dias pelos lavradores Edvaldo Pereira Santos, 63, e Angela Marques Santos, 60, nascidos e criados na comunidade tradicional de Piauí Poço Dantas. Assim como todos os moradores daquele povoado, o casal não dorme direito, tem problemas respiratórios e se revolta ao ver o paredão de pedregulhos da Sigma se aproximar cada vez mais do quintal de sua casa.
Às 6h, após mais uma noite barulhenta, Edvaldo e Angela já estão de pé. “Antigamente era um sossego. A gente ouvia os passarinhos, bebia água do riacho, as crianças não ficavam doentes. Depois que chegou essa empresa, ficou assim, ninguém consegue dormir, as crianças vivem tossindo, não têm paz”, diz a mulher ao acender a lenha no fogão de barro, que fica nos fundos da casa, frente a frente com a pilha de estéril.
Em Piauí Poço Dantas não tem água encanada, e Angela prepara o café com a água distribuída pela Sigma. A empresa cedeu caixas d’água para todos do povoado e as abastece uma vez por semana, com caminhões-pipa. “Falaram para a gente não beber mais a água do riacho”, comenta Edvaldo enquanto os três netos chegam com Evandro, seu filho, que também é lavrador.
Café adoçado, pão caseiro, manteiga, bolo de fubá e suco de laranja já estão servidos. Evandro desliza os dedos na mesa para mostrar a poeira que se formou desde a noite anterior. “Esse pó fino de malacacheta [mineral] vai matando a gente por dentro, é a silicose”, diz o lavrador de 35 anos ao lembrar da doença ocupacional que compromete os pulmões de operários da mineração — e que não tem cura. “Minha mulher acabou de sair de uma pneumonia e nossos três meninos desenvolveram asma; não saram desde que essa poeira começou.”
Às 8h, Davi Henrique, 8, João Miguel, 9, e Pedro Lucas, 13, partem a pé para a escola. No caminho de terra batida quase não passa carro, e a atenção dos meninos se volta à inusitada companhia de uma arara-canindé, que voa rasante sobre suas cabeças. “Chama Loura. Ela brinca com a gente todo dia”, diz Pedro. A arara começou a interagir com as pessoas após perder seu par, morto há dois anos, eletrocutado pelos fios de alta tensão.
A essa hora, Edvaldo já está colhendo bananas na roça com outros homens do povoado. Evandro ficou em casa cuidando da mulher, Taísa, que ainda se recupera da pneumonia. Sentado na varanda, ele conta que parte da comunidade resiste em aceitar as ofertas de emprego da mineradora. Em tom de revolta, comenta que muitos não estão dispostos a se submeter às empresas que modificam a paisagem e os costumes da comunidade.
Enquanto homens e crianças não voltam, as mulheres do povoado se encontram no riacho para lavar louças e roupas. “De uns anos para cá, a água baixou. Tem a estiagem brava, mas acho que essa poeira toda também prejudica o rio”, diz Ivanete Pinheiro Santos, 63. “Ontem eu estava pescando com uma colega, e eles [operadores da mineradora] deram três explosões de uma vez. Precisamos amarrar a blusa no rosto de tanto fedor de fumaça e poeira que cobriu a gente. As crianças têm pânico e pneumonia.”
Na varanda de sua casa, Angela recebe a visita da agente comunitária de saúde Cleony Pereira, 37, responsável pelo atendimento das 66 famílias de Piauí Poço Dantas desde 2013. “Igual à dona Angela, todos daqui se queixam de problemas de sono, em alguns casos precisam tomar remédio para dormir e antidepressivos. Mas o que mais piorou com essa mineradora foram os problemas respiratórios. Muitas crianças e idosos com pneumonia recorrente”, diz a agente, que chama atenção para a dificuldade de atendimento no único hospital da região, em Araçuaí. “Vive lotado”, afirma. “Uma vizinha nossa, a Jessica, foi para lá hoje cedo com a filhinha de 2 anos que também está com pneumonia.”
A fila de atendimento chega a alcançar uma espera de 12 horas no hospital São Vicente de Paulo, em Araçuaí. Do lado de fora, em cadeiras colocadas sob um toldo improvisado, parentes agoniados amparam crianças e idosos que reclamam de crises respiratórias. Jessica Pereira Santos Almeida, 24, a vizinha de Cleony e Angela, passou por lá. Sua filha Eloisa, de 2 anos, tem uma gripe que não sara há 9 meses e que acabou evoluindo para pneumonia. “A doutora disse que a poeira da mina provocou a doença. Lá em casa está todo mundo tossindo.” Jessica é casada e tem mais dois meninos, um de 4 e outro de 7.
A 3 km de Piauí Poço Dantas, fica a comunidade Fazenda Velha, um povoado de 30 famílias, fundado há 60 anos. Assim como a comunidade vizinha, Fazenda Velha também é banhada pelo riacho Piauí. Ali, o envolvimento com o rio é diferente. A água usada para lavar louças e roupas, tomar banho e beber é encanada. O serviço de distribuição é prestado pela concessionária Copanor.
Da Fazenda Velha dá para ver de longe as operações da Sigma, e as pilhas de rejeito da CBL ficam a menos de 150 metros. A entrada da mina, subterrânea, fica a 500 metros. Apesar de a mineradora traçar um caminho que evita a proximidade dos caminhões com a comunidade, e de fazer análises frequentes dos efeitos de sua operação, há muita reclamação.
“Aqui tem muita poeira o dia todo. Tem também as rachaduras nas casas, provocadas pelas detonações”, diz o cabeleireiro José Reinaldo Silva Santos, 40, presidente da associação de moradores. “O problema já vem de muito anos, mas com a chegada da nova mineradora [Sigma], piorou. A gente teme pelo futuro das crianças, porque esse pó de malacacheta acumula no pulmão”, diz Reinaldo, que é casado e pai de uma menina de 4 anos.
Enquanto olha para rachadura na parede de casa, causada por detonações da Sigma, a cozinheira Mariete Luis Gomes reclama que já rebocou a parede três vezes, sem a ajuda da mineradora. Foto: Caio Guatelli.
Conflitos fundiários com quilombolas
A situação que afeta os moradores de Piauí Poço Dantas também aflige outras comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha, como quilombolas e indígenas, e já começa a gerar os primeiros conflitos fundiários em razão da exploração do lítio.
Na APA (Área de Preservação Ambiental) Chapada do Lagoão, localizada a 30 km de Araçuaí, quilombolas das comunidades Jirau, Malhada Preta e Córrego Narciso do Meio começaram a se mobilizar contra as frequentes investidas de geólogos prospectando lítio em seu território.
O caso chamou a atenção do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e da deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), que acionaram a justiça mineira em abril de 2023. Um mês depois, após visita à região, o Ministério Público de Minas Gerais recomendou a anulação da permissão para prospecção mineral na Chapada do Lagoão, que, pelo grande número de nascentes, é considerada a “caixa d’água” da região.
“Muita violação de direitos. Não tem regra e não tem limite para mineração no Jequitinhonha”, diz Cerqueira ao comentar o avanço das mineradoras. “Primeiro tem a destruição do modo de vida das comunidades, e com essa destruição vem o adoecimento da população”, acrescenta.
A deputada, que fez duas visitas à região e promoveu uma audiência pública com os atingidos, lembrou dos relatos que ouviu no entorno das minas. “Há um colapso do atendimento no sistema de saúde em razão do aumento das doenças, principalmente respiratórias e psíquicas”, diz, culpando as mineradoras e a falta de ação do poder público.
Cerqueira atribui a eles a responsabilidade pelas nuvens de poeira, excesso de ruído, rachaduras nas casas, assoreamento do riacho Piauí, interdição de caminhos comunitários e aumento do custo de vida e da violência. “O modo de vida não pode ser precificado. Não tem compensação financeira que dê conta”, conclui.
Nas pacatas comunidades de São José das Neves e Calhauzinho, vizinhas às jazidas da Atlas, o início das operações da mineradora divide opiniões. “Parte das pessoas acredita que a economia vai melhorar, mas a maioria se sente invadida. Além das terras que as mineradoras já compraram, querem o lítio que está debaixo da nossa”, diz o quilombola Lucas Martins, 28.
Na zona rural de Itinga, o produtor de queijo Ernani Pereira dos Santos, 35, caminha cabisbaixo pelo velho curral de sua pequena propriedade. Ele conta que está perdendo as condições de sustentar a família. “Antes eu tinha 80 vacas, produzia queijo suficiente para vender nos mercados de Belo Horizonte. O rebanho ficava solto à vontade, tinha muito pasto. Agora tenho só 20 vacas e estão todas morrendo de fome.” Segundo Ernani, não é mais possível arrendar as terras do entorno; a maioria já é das mineradoras e as que sobraram estão com o preço exageradamente inflacionado.
Na área urbanizada, o empresário Craig Lamond de Assis, 41, reclama da alta no aluguel e da violência que “tomou conta de Itinga”. “Achei que estava vindo morar num lugar pacífico, mas vieram essas firmas e bagunçaram tudo”, diz.
Há quatro anos, Craig se mudou de Belo Horizonte para Itinga em busca de uma vida menos agitada. Vive com a mulher em uma casa de dois quartos e mantém uma lanchonete com seis funcionários. O aluguel da casa, que estava em R$ 300 até 2022, saltou para R$ 800 ano passado. O da lanchonete vai ser reajustado em outubro, de R$ 1.500 para R$ 2.800.
Em Taquaral, distrito de Itinga que fica na BR-367, bem próximo aos acessos da Sigma e da CBL, antigos moradores dizem que as mineradoras atraíram um grande número de forasteiros em busca de emprego.
“O pessoal chega de fora e toma nossas oportunidades. Minha filha é topógrafa formada e não consegue trabalho”, reclama Vangia Pereira Souza, 50, dona de uma mercearia que serve café aos operários, na beira da estrada, em frente ao ponto de embarque dos ônibus das mineradoras.
Pilha de estéril avançou 550 metros em 11 meses
Em uma sobreposição de imagens, com fotos tiradas por satélite em 7 de setembro do ano passado e uma fotografia aérea captada pela nossa reportagem em 22 de agosto, é possível constatar que a Pilha 5 de estéril avançou 550 metros em direção ao povoado Piauí Poço Dantas e ao riacho Piauí. Em um dos pontos, o depósito de estéril já chega a 60 metros do riacho e a 90 metros de algumas casas. A expansão coloca o curso d’água, as casas e a Escola Municipal Nuno Murta dentro de um perímetro de impacto classificado como de alta magnitude, segundo o relatório de impacto ambiental do empreendimento.
Para o geólogo Edson Farias Mello, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), “se a comunidade está sendo afetada pela poeira e pelo barulho, é preciso saber que medidas a empresa deve adotar para que isto não aconteça. Pode ser que se chegue a conclusão da necessidade de mudar o projeto de lavra”. Sobre os impactos ao riacho, o geólogo diz que o corpo hídrico tem que ser protegido. “Se ele está sob uma ameaça real, já há uma inconformidade.”
Mello questiona também a resistência da empresa em atender a reportagem e diz que a atitude vai contra o princípio de transparência, conforme orientam o ICMM (Conselho Internacional de Mineração de Metais) e o Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) para a participação das partes interessadas no Plano de Fechamento de Mina, em especial, as comunidades diretamente afetadas.
O plano de fechamento de mina consiste no planejamento da desativação total das estruturas de uma mina, de maneira a seguir um roteiro que envolve aspectos ambientais e socioculturais, a fim de assegurar um futuro sustentável quando a empresa mineradora tiver partido. O processo faz parte das obrigações legais impostas às mineradoras.
O que dizem as mineradoras
Procurada pela reportagem, a Sigma disse que a posição das pilhas de estéril faz parte de um plano de “práticas sustentáveis de fechamento de mina”. “Estas pilhas precisam ser colocadas ao lado da cava, para que, no momento do encerramento da atividade de mineração, esse material seja depositado de onde foi extraído. Dessa forma, o terreno retorna para sua aparência original após o fechamento da mina”, afirmou a empresa em 11 de setembro.
“A Sigma Lithium é a única empresa integrada de lítio do mundo que desenvolveu tecnologias verdes para industrializar seu produto empilhando os rejeitos a seco. Esses rejeitos são reciclados para recapeamento de estradas rurais, reprocessados na fábrica industrial de lítio da Sigma e vendidos”, acrescentou.
A companhia também enviou à reportagem um folheto sobre práticas de inovação e sustentabilidade social, no qual lista iniciativas tomadas para beneficiar a população. Entre elas, a prioridade pela contratação de mão de obra local e programas de educação, de crédito para mulheres, de distribuição de água potável e de combate à seca e à fome.
Durante apresentação da empresa no evento Pacto Global, há pouco mais de um mês, na sede da ONU em Nova York (EUA), o diretor de investimentos Daniel Abdo comentou que “o plano original era fazer o desvio do ribeirão Piauí para criar uma cava gigante”, mas a ideia foi descartada para preservar a relação que a comunidade vizinha tem com o riacho. “Preservamos o ribeirão e fizemos duas cavas.”
Um dia antes, também no evento da ONU, Luciana Costa, diretora de transição energética do BNDES, atendeu à Mongabay. “A Sigma tem práticas muito sustentáveis, mas a gente pode, sim, analisar o impacto social”, diz, sobre o financiamento de R$ 500 milhões concedido à empresa. “Não tem como fazer a transição energética sem mineração. O que tem que cuidar é para que as práticas de mineração sejam sustentáveis. Mas a gente vai ter que fiscalizar.”
Por telefone, outra pessoa ligada ao BNDES disse à Mongabay, sob reserva, que o financiamento pode ser cancelado caso o banco, em conjunto com os órgãos ambientais, encontre provas de que a mineradora está causando danos graves ao meio ambiente ou à sociedade.
Vinicius Alvarenga, CEO da CBL, conta que a sua lavra tem “a vantagem” de ser subterrânea. “No nosso caso [de Plano de Fechamento de Mina], as pilhas já estão ambientalmente corretas, e vamos tampar a entrada da mina”, diz. Sobre a percepção das detonações na comunidade Fazenda Velha, Alvarenga explica que as análises dos sismógrafos não detectaram até agora abalos significativos e que a sua mina é a mais segura do mundo.
A empresa, que opera desde 1985 em Araçuaí, é a única no Brasil a transformar o minério em compostos químicos. Atualmente produz 2 mil toneladas de carbonato de lítio e hidróxido de lítio por ano e 45 mil toneladas de concentrado de lítio — e estuda triplicar sua produção.
Apesar de não empilhar estéril, a CBL empilha rejeitos. A diferença entre os dois é que o estéril corresponde ao material descartado antes do beneficiamento, e o rejeito é a porção descartada após o beneficiamento. Segundo Vinicius Alvarenga, 80% do material minerado pela CBL vira rejeito e é amontoado no entorno das jazidas.
Visualmente, os impactos causados pela lavra da CBL são inferiores aos da Sigma. Além de a técnica usada não provocar cavas na superfície, sua produção é menor. Mesmo assim, moradores da comunidade Fazenda Velha dizem sentir os prejuízos à saúde.
“É uma questão de escolha. Essas pessoas vão ter que trabalhar na mineração, vão ter que fazer outra atividade. [Podem ser] até apoiadas pela indústria de mineração. Vão poder estudar, poder se formar, e evoluir para outras atividades”, comenta Alvarenga, da CBL.
O CEO argumenta que sua empresa emprega pessoas de comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas. “Estão totalmente integrados”, afirma.
“Um legado do lítio”
Procurado, o governo de Minas Gerais, responsável pelas licenças de operação, indicou o secretário de Desenvolvimento Econômico, Fernando Passalio, para atender à reportagem. “As empresas que estão indo para lá, eu conheço todas, porque esse processo de prospecção e atração de investimentos é feito aqui pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Posso garantir que são empresas das melhores práticas e de alto padrão ESG [governança ambiental, social e corporativa]”, argumenta Passalio.
O secretário diz não haver nenhuma ação civil pública que trate dos problemas citados e afirma, baseado em estudos feitos pela Sigma, que a poeira que atinge a comunidade não é diferente da que chega no centro da cidade, o qual está fora da área diretamente atingida.
Passalio observa ainda que a mineradora deve respeitar o estudo de impacto ambiental e seguir as previsões legais para intervenção em áreas de preservação permanente, como cursos d’água. “Não existe uma distância mínima. A atividade de mineração é considerada de utilidade pública pela legislação federal, inclusive”, diz. “O importante é não impactar o abastecimento.”
Procurado para comentar as reclamações da população, o prefeito de Itinga, João Bosco (PSD), que naqueles dias fazia campanha para a reeleição, não atendeu a reportagem. Estava ocupado cuidando da doação de combustível para os participantes de sua carreata. Dias depois, João Bosco foi reeleito com 61% dos votos. O mesmo aconteceu com o candidato do Republicanos, Adhemar Marcos Filho.
Também reeleito e naquela época ainda em ritmo de campanha, o prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa de Oliveira (PSD), atendeu à reportagem e reconheceu o problema da inflação. Diz que a própria prefeitura passou a gastar mais que o dobro com o aluguel de alguns imóveis do ano passado para o atual. Mas, para ele, é um processo natural. “É uma relação de mercado. O que temos que buscar é disponibilizar moradias populares aos cidadãos que não têm condições de arcar com essa subida tão rápida e tão grande de aluguel”, observa. “Por outro lado, entra mais recurso para a economia do município, que traz geração de emprego e renda.”
“Temos que deixar um legado do lítio. Mas os recursos que entraram em CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) da expansão das mineradoras de lítio, na ordem dos R$ 4 milhões ou R$ 5 milhões, são muito pequenos ainda para um município que tem um orçamento de R$ 130 milhões”, analisa o prefeito.
Araçuaí, segundo o IBGE, tem uma população de 34.297 pessoas e ocupa a 3.942ª posição em PIB per capita (R$ 14.163) entre 5.570 municípios brasileiros. Itinga, que tem uma população de 13.745 pessoas, está na 4.945ª posição (R$ 9.849).
Oliveira conta que está empenhado em melhorar a vida das pessoas e a capacitação da mão de obra, mas critica a falta de preparação dos governos, inclusive o próprio, para receber empreendimentos do tamanho dos que estão chegando ao Jequitinhonha. “Eu já estou com dificuldades com a saúde, com a educação, o trânsito está uma baderna; e o recurso ainda não chegou”, reclama o prefeito.
Rodrigo Menck, conselheiro da Atlas, explica que sua operação fica distante de 5 a 10 km das comunidades e lista uma série de iniciativas patrocinadas pela empresa, como programas de desenvolvimento profissional, construção de alojamento para professores na comunidade de Calhauzinho e reforma de escolas e igrejas em São José das Neves. Enfatiza ainda a importância social da estrada que a mineradora construiu, com 35 km de extensão e 12 metros de largura, que liga o centro de Araçuaí à área do empreendimento de 468 km2.
Em relação à mina de Salinas, distante 100 km de Araçuaí, a Pilbara Minerals informou por nota que o acordo para comprar a Latin Resources, empresa que detém os direitos minerários, continua sujeito ao cumprimento de uma série de condições, “o que não deve acontecer antes do final de 2024”. “Caso a compra seja efetivada, a Pilbara Minerals se comprometeu a concluir os estudos sobre o potencial desenvolvimento futuro do Projeto de Lítio Salinas da América Latina. O momento e a aprovação de qualquer desenvolvimento permanecem sujeitos aos resultados dos estudos e às condições de mercado.”
Territórios indígenas encurralados
Em Coronel Murta, município vizinho a Araçuaí, o indígena Marcley Pataxó, 28, se reuniu com 30 representantes dos povos Pankararu e Aranã. Especialista em comunicação, Marcley foi convidado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) para orientar outros indígenas a usar ferramentas de comunicação para denunciar pressões e ameaças.
“Foram relatados alguns casos de violência aos territórios Aranã e Pankararu, mais precisamente com relação à mineração”, relata o Pataxó. “A preocupação é com a perda dos rios pelo avanço das mineradoras e a pressão delas em comprar áreas indígenas.”
Cleonice Pankararu, 55, indígena da aldeia Cinta Vermelha-Jundiba, conta que, além dos prejuízos causados pela poeira e o ruído das explosões, que já afeta o comportamento dos animais silvestres, seu povo está se sentindo encurralado.
“Estamos agora muito preocupados com a chegada de multinacionais para explorar no entorno de nossa comunidade”, diz. “A gente estava na luta para ampliar o território e já tínhamos conseguido negociar a compra de uma fazenda vizinha, mas chegaram as empresas e ofereceram um valor muito maior”, reclama.
A pedagoga e missionária indigenista Geralda Chaves Soares, 82, militante do Cimi, conta que os Pankararu se instalaram no Jequitinhonha há 30 anos, em terras compradas pelo Cimi, após deixarem a Colônia Agrícola Indígena Guarani, em Carmésia (MG), onde viviam desterrados pela ditadura militar (1964-1985).
“Quando chegaram, em 1985, [os Pankararu] deram fôlego para que os Aranã, que são daqui, fossem reconhecidos. Agora estão unidos. É uma história de muita luta pela sobrevivência, e agora tem mais essa, das mineradoras”, conta. “Debaixo do território que os Aranã estão indicando, tem lítio. Vamos esperar as empresas se instalarem ali?”, questiona a missionária, ao esclarecer que os dois povos aguardam o reconhecimento oficial, como Terra Indígena, das áreas onde vivem.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, a exploração do solo em Terras Indígenas é exclusiva dos povos originários. Contudo, há um debate polarizado no Congresso Nacional sobre o direito de explorar o subsolo, motivo pelo qual os conflitos entre indígenas e os interessados nas riquezas minerais crescem no país.
Parte dos parlamentares defende que o modelo de desenvolvimento proposto é incompatível com a cultura indígena e traria uma série de impactos ambientais negativos, como o desmatamento e a poluição dos rios. Outra parte argumenta que o uso de técnicas sustentáveis de mineração geraria riqueza ao Estado e levaria melhorias aos próprios indígenas, que, segundo eles, vivem em situação de miséria.
Em comunicado, a Funai diz estar “ciente da situação” e “levantando informações sobre impactos de empreendimentos minerários à saúde indígena, sobretudo sobre eventuais problemas respiratórios.”
“Não existe essa coisa de mineração sustentável”, diz a militante do Cimi. “O interesse econômico pelos minerais da transição [energética] prevalece sobre qualquer interesse social ou ambiental.”
Mineração ameaça produção de mel do maior quilombo da Caatinga
Imagem do banner: Maria Nilza, moradora da comunidade Piauí Poço Dantas, aponta para a rachadura que se formou na parede de sua casam causada pelas detonações na mina de lítio da mineradora Sigma. Foto: Caio Guatelli.