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Mineração ameaça produção de mel do maior quilombo da Caatinga

O apicultor Julio de Castro manejando seu apiário na região da comunidade de São Vitor, Quilombo Lagoas, Piauí. Foto: Rafael Martins

  • Com mais de 62 mil hectares de extensão e 119 comunidades, Lagoas, no Piauí, é o maior território quilombola da Caatinga — e um dos maiores produtores de mel orgânico do Nordeste.

  • Em 2019, a SRN Mineração conseguiu uma licença prévia para explorar minério de ferro na região, o que poderia contaminar os apiários.

  • Lideraças quilombolas dizem não terem sido consultados pela mineradora, e desaprovam a falta de respeito com a prospecção feita a menos de 100 metros do mais importante santuário local.

Quando Júlio de Castro começou com a apicultura, em 1986, ele não imaginava um dia chegar, junto com a sua família, às 500 caixas de abelhas que mantém atualmente, capazes de produzir até dez toneladas de mel por ano. Júlio é morador do Quilombo Lagoas e um dos associados da Cooperativa Mel do Sertão, localizada na Serra da Capivara, no Piauí, a região que mais produz mel no Nordeste.

“Eu comecei com a abelha porque ela deu um retorno extraordinário. Eu mesmo nem trabalho mais com a roça”, diz Júlio. “Em 2021, retirei mais de dez toneladas e fiz 100 mil reais vendendo a R$ 16,50 o quilo de mel. Este lugar é excelente, eu não troco aqui por nada. No inverno é verde, a gente trabalha bem, cuida das abelhas, é água jorrando por todo buraco, e é só alegria respirando o ar puro desta região.”

O Quilombo Lagoas possui mais de 140 famílias apicultoras associadas, tornando-se a comunidade que mais produz mel na macrorregião da Serra da Capivara, com uma média anual de até 500 toneladas por ano. Este é o maior território quilombola do bioma Caatinga, com uma extensão de 62.375 hectares e 119 comunidades, atravessando seis municípios: São Raimundo Nonato, Dirceu Arcoverde, Bonfim do Piauí, São Lourenço do Piauí, Fartura do Piauí e Várzea Branca.

“As abelhas são o 13º salário do sertão”, afirma Cláudio Tenório, liderança quilombola. “Elas produzem muito mel e o mundo todo precisa de mel para a medicina e a produção de cosméticos. Se a mineradora chegar e poluir aqui, nós vamos perder nosso certificado de mel orgânico e não vamos conseguir vender para o exterior.”

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Em 2019, a SRN Mineração conseguiu uma licença prévia expedida pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar) para pesquisar minério de ferro na região. Neste mesmo ano, em audiência pública, foi apresentado o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) produzido pela empresa.

Para a surpresa da comunidade, o estudo não reconhecia o território quilombola, excluindo o certificado de reconhecimento de Quilombo expedido pela Fundação Zumbi dos Palmares em 2009, e também escondendo o processo de demarcação da terra pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2010, e a finalização da titulação está em curso por meio do trabalho do Instituto Terras do Piauí.

A SRN Mineração pretende extrair até 300 toneladas de minério de ferro por ano do solo quilombola. “Não resta dúvida que esse lugar aqui vai ser destruído. Dizem que é um buraco de mais de 1 km de extensão. Pode trazer melhoria para alguém, mas para nós só vai trazer problema”, relata Júlio de Castro.

E complementa: “Eles vieram até aqui dizer que, se explorarem, não vai poluir, é uma máquina que abafa. Mas eu não acredito. Dizem que quem tiver perto vai pagar para tirar os apiários e mudar de local. Mas isso é difícil para mim, mudar do lugar onde eu nasci e vivi minha vida. Dinheiro nenhum paga.”

Acima, vista aérea do Quilombo Lagoas; abaixo, o produtor de mel Júlio de Castro. Fotos: Rafael Martins.

Segundo Henrique Neri, presidente da Cooperativa Mel do Sertão, estima-se que haja mais de 3 mil pessoas trabalhando com a apicultura no Quilombo Lagoas. Na região da Serra da Capivara, a economia em torno da produção de mel movimenta até 35 milhões de reais.

Flávia Fernandes, engenheira de processo da SRN, relatou em entrevista concedida ao portal Notícias da Mineração Brasil que existe a previsão para a criação de até 25 empregos diretos com a implantação da planta de extração de minério de ferro.

Mas, como diz Júlio, “aqui 100% é contra. Porque eles andaram dizendo que ia vir emprego e nós estamos vendo que é mentira esse negócio de emprego. Eles fizeram várias escavações, passaram o avião por cima, vieram por terra de carro, furaram buracos de até 200 metros de profundidade. Eles fazem tudo no sigilo, ninguém aqui sabe das coisas. Se eles poluírem nossa floresta, o mel aqui já era”.

Henrique Neri explica que, para conseguir o certificado de mel orgânico, é necessário fazer o georreferenciamento de todos os apiários e garantir um raio de 6,4 quilômetros de qualquer risco de contaminação. “Recentemente, eu tomei conhecimento dos alvos que a SRN pretende explorar no território da Serra Capivara, e tem mais do que 500 apiários no entorno destes raios da mineração. Uma coisa surreal que não tem como existir junto com a apicultura”, diz.

Júlio de Castro, apicultor do Quilombo Lagoas, em seu apiário. Foto: Rafael Martins

A Cova da Tia e a resistência quilombola

No meio da savana verde e forte da Caatinga, avista-se uma pequena casa isolada, protegida por uma cerca de madeira improvisada. No interior, a parede azul serve de fundo para o altar simples, mas muito bem cuidado, composto por diversas imagens de Nossa Senhora Aparecida, alguns outros santos católicos como São João e São José, ex-votos encostados nas paredes, flores artificiais e a dona da casa: a Tia.

A Cova da Tia é um local de peregrinação dentro do território do Quilombo Lagoas, localizada no município de Bonfim do Piauí. Diz a tradição oral que ali está enterrada uma mulher negra que foi escravizada e fugiu. Caminhando pela mata durante dias, ela acabou falecendo e foi encontrada por um grupo de vaqueiros já em decomposição. Os vaqueiros tiveram o cuidado de enterrar o corpo e fizeram uma promessa que, se encontrassem o rebanho de bois perdidos há alguns anos, voltariam ali para fazer um cercamento no entorno do local onde haviam enterrado a Tia e colocar uma cruz. No mesmo dia, o grupo encontrou os bois e então começou a devoção pela Tia e a peregrinação pelo local.

“A Cova da Tia é um santuário de mais de 200 anos e que remete muito ao nosso modo de pensar e ser quilombola. Aqui não tem religião, recebe todo mundo de braços abertos. A gente vê imagens católicas, do candomblé, espiritismo, balas e doces que remetem às religiões de matrizes africanas”, define Salvador Viana, mobilizador cultural do Quilombo Lagoas e responsável por promover encontros culturais com violeiros e saraus de poesia no local.

Salvador Viana, liderança do Quilombo Lagoas, no interior da Cova da Tia. Foto: Rafael Martins

Cláudio Tenório, liderança histórica do Quilombo Lagoas e morador da comunidade do Calango, relembra que sua mãe era devota da Tia: “Hoje eu estou com 71 anos de idade e, quando eu me entendi como pessoa, já via minha mãe visitar a cova e fazer promessas”.

Mas, segundo Cláudio, também a Cova da Tia está ameaçada pela mineradora: “Os pontos de pesquisa de mineração estão distantes apenas cem metros do local onde a Tia está enterrada. É um local sagrado que a gente conheceu, nasceu e cresceu vendo as pessoas fazendo suas promessas ali. A gente se sente desrespeitado pela mineradora chegar e querer invadir o local. A mineradora nunca nos chamou para nenhuma conversa. Só depois de insistirmos foi que eles marcaram uma audiência pública. Mas o convite só chegou no dia anterior. E só estavam convidadas três pessoas, entre elas eu. Como podemos falar por dez mil pessoas?”

Assim como uma mulher preta e escravizada precisou fugir para tentar uma vida melhor e acabou originando a Tia, os desafios para ficar na terra e poder utilizá-la na construção de uma vida qualificada continuam. Segundo Cláudio, “até hoje existe uma área de terra de 5 mil hectares que a gente não pode mexer porque dizem que são dos tais fulanos, pessoas que moram em São Paulo ou Belo Horizonte. A gente respeita porque conhece, sabe que é herança dos herdeiros do fazendeiro que escravizava. Mas a gente continua até hoje praticamente escravizado. Morando em cima da terra, mas sem poder trabalhar a terra.”

Acima, Cláudio Tenório, um dos líderes do Quilombo Lagoas; abaixo, interior da Cova da Tia. Fotos: Rafael Martins

A cultura do Quilombo Lagoas é uma das principais fontes de resistência. As danças e músicas como o reisado e a roda de São Gonçalo reúnem as comunidades em datas especiais e fortalecem o senso de coletividade, além dos rituais de umbanda. Mas ainda existem também desafios para o respeito à diversidade religiosa, como explica Cláudio: “Algumas pessoas dizem que é macumba, mas não é macumba, são os trabalhos de terreiro que a gente faz. Até agora, as pessoas que fazem esse trabalho se escondem por medo. Mas têm, e é a nossa cultura que é respeitada.”

Manuela Viana faz parte do grupo de umbanda Mãe Jaciara de Yemanjá, que se apresentou na feira agroecológica promovida na comunidade Umburana, em Várzea Branca. Ela relata que ainda hoje é difícil se apresentar para um grande público: “É muito difícil a gente estar no meio das pessoas se apresentando sem saber o que elas estão pensando, ainda existe muito preconceito. A apresentação mostra que isso aqui não é do mal e que a gente transmite amor, compaixão e união”.

A comunidade do Quilombo Lagoas respondeu às ameaças da mineradora movendo uma ação civil pública em parceria com a Defensoria Pública da União e do Estado do Piauí e o Ministério Público Federal, e continua aguardando o julgamento pelo Tribunal Regional Federal- TRF 1. Em 2022, a licença prévia expedida pela Semar venceu e não foi renovada automaticamente. Os quilombolas relataram que ainda avistam esporadicamente os veículos da empresa no local e aguardam ansiosamente pelo julgamento do mérito da ação.

Ritual do grupo de umbanda Mãe Jaciara de Yemanjá no Quilombo Lagoas. Foto: Rafael Martins.
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