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Mamíferos do Cerrado mudam suas rotinas para fugir dos humanos, mostra estudo

Imagem do banner: jaguatirica (Leopardus pardalis), uma das espécies em cujo comportamento o estudo identificou alteração. Foto: Instituto Últimos Refúgios, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

  • Estudo que analisou cinco espécies de mamíferos no nordeste paulista revela que a maioria dos animais muda de rotina para fugir do contato com humanos, na maioria das vezes adotando hábitos noturnos.

  • No caso do tamanduá-bandeira, o maior fator de perturbação é a presença de cachorros que andam livres pelas áreas rurais e acabam caçando e afugentando a fauna silvestre.

  • Apesar das tentativas de adaptação, os animais não conseguem evoluir no mesmo ritmo da destruição dos habitats, o que pode levar à sua extinção.

Como animais silvestres fazem para continuar caçando e se reproduzindo em áreas tomadas por casas, estradas, animais domésticos e plantações? Cada vez mais, os cientistas apontam que a única saída para boa parte das espécies é mudar drasticamente de rotina, em uma adaptação forçada cujas consequências para o entorno ainda são incertas.

Artigo publicado no início de fevereiro pela revista científica Global Ecology and Conservation mostra que muitos animais acabam se tornando mais noturnos como forma de evitar a presença humana.

O estudo, que reuniu pesquisadores da Universidade de Manchester, do Reino Unido, e do Laboratório de Ecologia e Conservação (Laec), da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, faz parte de um amplo projeto iniciado em 2013 e 2014, quando armadilhas fotográficas foram instaladas em diferentes pontos do nordeste do estado de São Paulo.

A região, originalmente coberta pelo bioma Cerrado, vem sendo transformada há mais de duzentos anos por diferentes tipos de cultivo – começando pelo café, nos séculos 18 e 19, passando pela pecuária, até, mais recentemente, ser tomada pela cana-de-açúcar e pelas florestas plantadas de pínus e eucalipto. “Essa fauna está há muito tempo em contato com as pessoas”, afirma Adriano Chiarello, do Laec, coordenador do estudo.

Os pesquisadores usaram armadilhas fotográficas para acompanhar os horários e áreas de circulação de cinco espécies de mamíferos no nordeste de São Paulo. Foto cedida pelo Laboratório de Ecologia e Conservação da USP

As armadilhas fotográficas, pequenas caixinhas que captam imagens todas as vezes que alguém cruza na frente do equipamento, foram instaladas em áreas com diferentes graus de preservação, incluindo propriedades privadas e áreas protegidas, como a Estação Ecológica de Jataí.

“A gente tem um desenho bem interessante. Uma paisagem com um grande bloco de área protegida, outra com um mar de silvicultura e onde só tem um fiapinho de floresta, e uma terceira paisagem com uma mistura das outras duas, onde você tem silvicultura, cana-de-açúcar e áreas protegidas”, descreve Chiarello.

As fotos tiradas anos atrás renderam uma série de artigos científicos identificando as áreas ocupadas pelos animais e as características que as tornavam mais ou menos atrativas para a fauna silvestre. No estudo mais recente, no entanto, o objetivo era entender de que forma a presença humana afeta a rotina dos bichos.

“Porque às vezes o animal pode continuar ocorrendo no espaço onde tem uma perturbação antrópica [humana], como uma estrada de terra ou uma plantação de cana, mas ele não faz isso na hora em que ficaria mais exposto a um eventual contato humano”, explica o pesquisador.

O objetivo era comparar os horários de atividade de animais da mesma espécie, mas que habitam locais com diferentes níveis de preservação e mais ou menos distantes da presença de humanos, cachorros e moradias.

Das seis espécies de mamíferos analisadas — onça-parda (Puma concolor), jaguatirica (Leopardus pardalis), tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), veado-catingueiro (Subulo gouazoubira), cutia (Dasyprocta azarae) e cachorro-do-mato (Cerdocyon thous) — cinco apresentaram mudanças de comportamento em áreas não-protegidas e/ou próximas de ocupação humana. Para quatro destas espécies, a resposta nas áreas mais sujeitas à pressão humana foi se tornarem significativamente mais noturnas.

A onça-parda, que costuma ser ativa 24 horas por dia, tornou-se um animal noturno para evitar o contato com as pessoas. Foto cedida pelo  Laboratório de Ecologia e Conservação da USP

A onça-parda, que em seu habitat natural é um animal ativo 24 horas por dia, nas áreas de ocupação humana passou a restringir sua circulação ao período da noite e da madrugada, entre seis da tarde e seis da manhã. Já a cutia, um roedor que em condições normais tem atividades ao longo de todo o período do dia, passou a circular apenas durante as primeiras horas da manhã.

“Ela tem que ser ativa no começo do dia porque depois vai ter pessoas e carros ali, e ela não se sente bem com isso. Então é uma restrição temporal com implicações no seu papel ecológico”, explica Chiarello, referindo-se à cutia.

No caso do tamanduá-bandeira, um comedor de cupins e formigas que possivelmente já foi extinto em vastas áreas das Américas Central e do Sul, são os cachorros que os obrigam a adotar hábitos mais noturnos. Na zona rural, muitos cães são criados soltos e acabam perseguindo ou mesmo caçando os animais silvestres durante o dia, quando ficam mais ativos.

A primeira autora do artigo, Heather Ewart, explica que mudar de comportamento ou migrar para outras regiões são as únicas alternativas que restaram para estes animais diante da rapidez com que seus habitats estão sendo destruídos.

“Como não é possível ver mudanças evolutivas na escala de tempo que precisamos, estes animais ficam apenas com estas duas opções. E se eles não conseguem fazer nenhuma destas duas coisas, o que vemos são grandes declínios populacionais”, afirma Ewart, que está concluindo seu PhD na Universidade de Manchester.

Reação em cadeia

As conclusões do estudo reforçam aquelas observadas por outros pesquisadores, como o grupo coordenado por Maria Joāo Ramos Pereira, professora do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Portuguesa radicada no Brasil, ela e seus colegas vêm estudando como a presença humana afeta o comportamento de mamíferos no que restou de Mata Atlântica no estado gaúcho e, mais recentemente, também no bioma Pampa.

“Infelizmente temos encontrado essas alterações [de comportamento], que muitas vezes são específicas de cada espécie. A fauna não responde toda da mesma forma”, diz Pereira.

A presença de cachorros, que costumam viver livres pelas áreas rurais, é o principal fator de estresse para o tamanduá-bandeira, ameaçado de extinção. Foto cedida por Adriano Chiarello

Algumas espécies podem até se beneficiar da presença humana. É o caso do cachorro-do-mato, que segundo o artigo da Global Ecology and Conservation é encontrado com mais frequência em áreas ocupadas por humanos do que em áreas preservadas. Um dos motivos, acreditam os pesquisadores, é o fato de ele comer praticamente de tudo e encontrar uma variedade maior de alimentos nestes locais.

Em outras espécies, o que acontece é um ajuste fino no comportamento. Pereira e seus colegas estudaram como um grupo de graxains (Lycalopex gymnocercus), uma espécie de raposa do campo, fazia para evitar o assédio dos cães. Eles descobriram que os animais continuaram ocupando os mesmos espaços, mas não todos ao mesmo tempo. “É como se nós duas usássemos o mesmo apartamento e estivéssemos ambas ativas durante o dia, só que eu estou ativa hoje e você vai estar ativa amanhã”, ela compara.

Na maioria das vezes, a destruição da vegetação nativa e a proximidade da presença humana acaba restringindo a área e os horários de circulação dos animais, com consequências ainda incertas.

“É como diminuir o orçamento de uma família; ela vai sobreviver com mais dificuldade. O bicho tem que dar um jeitinho. Por exemplo, eu não posso mais sair o dia todo, só de noite. A vida fica mais difícil, e nessas situações de estresse ele vai se reproduzir menos, viver menos”, explica Chiarello. “Há mecanismos que vão permitir alguma resiliência, mas a partir de determinado nível as espécies extinguem-se, e é isso que já está a acontecer”, lamenta Pereira.

Essa adaptação forçada não impacta apenas as espécies obrigadas a mudar de rotina, mas também todo o entorno. “A maioria das espécies tem papéis-chave nos seus ecossistemas. A cutia, por exemplo, é um dispersor de sementes, e isso vai se traduzir no cultivo de plantas”, explica Ewart.

“O que está a acontecer é um conjunto de reações em cadeia que podem ter consequências não só para aquelas espécies mas para o sistema como um todo. Os ecossistemas são estas redes muito complexas e interconectadas,” concorda Pereira.

Para os pesquisadores, as conclusões do estudo reforçam a importância da criação de áreas protegidas e também do cumprimento do Código Florestal dentro das propriedades privadas, com respeito às áreas de preservação permanente — nas margens dos rios, por exemplo — e de reserva legal. “Porque esse pouquinho de mata é reduto desses bichos”, explica Chiarello. “As áreas protegidas protegem as espécies, seu comportamento natural e populações”, diz Ewart.

Imagem do banner: jaguatirica (Leopardus pardalis), uma das espécies em cujo comportamento o estudo identificou alteração. Foto: Instituto Últimos Refúgios, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

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