O Rio de Janeiro ocupa um lugar especial na história do Brasil, mas muitos de seus residentes desconhecem a herança indígena da cidade — desde nomes de lugares icônicos como Ipanema e Maracanã, até o trabalho escravo indígena que construiu alguns de seus mais famosos monumentos. Quase 7 mil indígenas vivem no Rio, a quarta maior população entre as cidades brasileiras; um mapa interativo exclusivo da Mongabay mostra onde eles moram, suas condições de vida e grupos étnicos. Apesar de a cidade do Rio ser reconhecida por sua diversidade cultural e estilo de vida descontraído, os indígenas que vivem na cidade denunciam preconceito e o “silenciamento” de suas tradições e cultura, o que eles atribuem a séculos de apagamento histórico para torná-los invisíveis. Mas os povos indígenas estão se mobilizando para colocar seus direitos na agenda política e desenvolvendo pesquisas nas universidades para revelar a história indígena da cidade que está sendo ocultada há séculos. RIO DE JANEIRO — Maracanã, Ipanema, Arcos da Lapa, Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro… Milhões de turistas brasileiros e estrangeiros que visitam a cidade mais famosa do Brasil todos os anos conhecem esses lugares e também expressões locais como carioca, nome dado a quem nasce no Rio. Mas o que a maioria dos visitantes — e mesmo os cariocas — não sabe é que todos esses lugares (e a palavra carioca) têm uma raiz indígena, seja por terem sido construídos com trabalho escravo dos povos originários ou por terem sido erguidos sobre territórios ocupados por indígenas. “Muitas pessoas passam pelos Arcos da Lapa, mas não imaginam que aquele monumento que hoje é um patrimônio, um símbolo da cidade do Rio de Janeiro, foi construído por mão de obra escrava indígena”, afirma a historiadora Ana Paula da Silva, doutora em memória social e pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pro Índio) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Os arcos, no boêmio bairro da Lapa, na região conhecida como Rio Antigo, foram construídos nos séculos 17 e 18 para dar sustentação ao Aqueduto da Carioca, que trazia água do Rio Carioca para o centro. Hoje, a Lapa é o coração da vida noturna da cidade e, em vez de água, a estrutura serve de passagem para o popular bondinho de Santa Teresa. Mas aqueles que trabalharam para construí-lo ficaram esquecidos, afirma da Silva. “Hoje a gente não tem essa memória… [A] História nos livros, na mídia, não conta essa história”, diz a historiadora. “Não tem [nem mesmo] uma placa [com essa informação no monumento”. Arcos da Lapa. Foto: Halley Pacheco de Oliveira via Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0). Lagoa do Boqueirão e Aqueduto da Carioca, por Leandro Joaquim (atribuído). Imagem cortesia do Museu Histórico Nacional/IBRAM. Outro aspecto “oculto” da história da cidade, segundo a historiadora, encontra-se debaixo da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Localizada no Morro da Glória, a 10 minutos de carro dos Arcos da Lapa e visível de várias partes da cidade, é conhecida popularmente como Igreja da Glória ou simplesmente Outeiro da Glória. Foi construída sobre território indígena Tupinambá disputado por colonizadores franceses e portugueses e povos indígenas durante as batalhas de reconquista do século 16. Segundo relatos da expedição francesa, aos pés da atual igreja ficava uma aldeia Tupinambá chamada Kariók ou Karióg, nome que provavelmente deu origem à palavra carioca. Da Silva diz que a construção da igreja também foi um símbolo do triunfo da Igreja Católica após a batalha, literalmente impondo o catolicismo aos nativos. A igreja tornou-se um dos lugares mais frequentados pela família real portuguesa após a mudança da sede de seu império para o Rio de Janeiro, no início do século 19. Inúmeros nomes e expressões que fazem parte do cotidiano carioca derivam da língua tupinambá (também chamada língua Tupi ou Tupi antigo), mas a maioria das pessoas desconhece isso, explica a historiadora. Ipanema, bairro famoso por suas praias e que ganhou destaque internacional nos anos 1960 com a música “Garota de Ipanema” do cantor e compositor Antônio Carlos “Tom” Jobim, significa “água inapropriada” na língua tupinambá. O bairro do Maracanã, onde fica o icônico estádio, leva o nome de uma arara que emite um som parecido com um chocalho; há também o Rio Maracanã. A palavra carioca se refere ao nome de um rio (que passa sob os Arcos da Lapa) e de uma aldeia, que, segundo alguns historiadores, se refere à moradia do povo indígena Carijó; outros interpretaram como a casa do homem branco ou uma casa com água corrente ou um riacho saindo da floresta. Da Silva diz que o significado desses nomes pode ter variado ao longo do tempo; estima-se que haja 40 mil verbetes indígenas no dicionário brasileiro. Muitos visitantes e moradores do Rio também desconhecem hábitos indígenas que hoje fazem parte do estilo de vida brasileiro, afirma da Silva, como tomar banho todos os dias — os colonizadores portugueses não tinham esse hábito quando chegaram ao Brasil, conta a historiadora — dormir em redes, e diversos itens da nossa alimentação diversa, como a mandioca ou aipim. “Isso tudo por causa da nossa educação, por causa da nossa história que desconstruiu, que silenciou e retirou o indígena, colocou o indígena no lugar de desprivilegiado na verdade, não incluiu o indígena como parte da nossa história, da nossa sociedade, então isso é muito complicado. As pessoas já se naturalizaram a não enxergar os povos indígenas”, afirma da Silva. A historiadora conversou com a Mongabay em frente ao Paço Imperial, no centro do Rio — outra estrutura icônica construída com trabalho escravo indígena. “As reformas do Paço Imperial também, atrás da gente, as reformas do Passeio [Público]… Tem documentação que mostra que os indígenas que vieram do Mato Grosso para o Rio de Janeiro e foram utilizados nessas obras, nas obras públicas, inclusive tinha disputa entre a Marinha, entre a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e a polícia por essa mão de obra”, afirma da Silva, referindo-se a uma extensa documentação nos arquivos da cidade com todos esses registros. As reformas do Paço Imperial, no centro do Rio, foram construídas com mão de obra escrava indígena, afirma Ana Paula da Silva, doutora em na memória social, diante da estrutura icônica. Foto: Mongabay. Com quase 7 mil habitantes, o Rio tem a quarta maior população indígena brasileira em números absolutos, de acordo com o censo de 2010 (o próximo censo será realizado em 2022). Mas essa presença está “diluída” em uma população total de 7 milhões (menos de 0,1% do total), diz João Pacheco de Oliveira, professor titular e curador das coleções etnográficas do Museu Nacional. “Essa presença dos indígenas nas cidades é algo muito importante. Ela só precisa ser entendida porque é uma coisa de natureza diversa,” afirma Oliveira. “Na cidade do Rio de Janeiro, ela é diluída. E a mesma coisa acontece em várias outras capitais… Rio de Janeiro e São Paulo e Brasília aparecem índios de todo o Brasil”. Os indígenas costumam vir para grandes cidades como o Rio em busca de oportunidades econômicas e de emprego, explica Oliveira, mas poucos grupos são realmente capazes de formar uma comunidade, pois estão distribuídos em várias áreas. Essa situação é diferente nas regiões norte e nordeste, onde bairros indígenas foram estabelecidos nas cidades. Um mapa interativo inédito feito pela Mongabay mostra como os povos indígenas estão espalhados por todo o Rio, além de suas condições de vida e seus grupos étnicos.