Uma das ferramentas para evitar que os servidores públicos não prestem contas por suas ações são os protocolos especiais para o processamento de funcionários eleitos. Por um lado, eles os protegem de processos triviais ou com motivações políticas.
No entanto, esse status especial permitiu a existência de um sistema judicial de dois níveis: um que protege os políticos das consequências de seus atos ilícitos, pois seus julgamentos costumam ser adiados até que as acusações sejam rejeitadas por questões técnicas, por prescrição ou porque foram absolvidos por magistrados influenciados politicamente.
Nesta seção, Killeen explica como esse tipo de impunidade constitucional funcionou no Brasil, na Bolívia e na Venezuela. No primeiro país, no famoso caso Lava Jato, que, apesar de tudo, conseguiu processar dezenas de políticos, muitos dos quais perderam sua legitimidade eleitoral.
A Federação Brasileira e as Repúblicas Andinas têm disposições constitucionais que estabelecem protocolos especiais para a acusação de funcionários eleitos. Supostamente, esses protocolos foram concebidos para garantir que os servidores públicos sejam responsabilizados por atos ilícitos e, ao mesmo tempo, protegê-los de processos frívolos ou com motivação política. Esse status especial, no entanto, criou um sistema de justiça de dois níveis que protege os políticos das consequências de seus atos ilícitos, pois seus julgamentos geralmente são adiados até que as acusações sejam rejeitadas por questões técnicas, devido à prescrição ou porque foram absolvidos por magistrados corrompidos pelo processo político.
O mais notório é o “Foro Privilegiado” do Brasil, que estipula que somente o Supremo Tribunal Federal (STF) tem autoridade para presidir um julgamento criminal envolvendo o presidente, vice-presidente, membros do Congresso e outras autoridades nomeadas de alto nível, enquanto governadores, juízes e outras autoridades eleitas desfrutam de formas semelhantes, embora menos visíveis, de proteção legal (Tabela 7.11). Essas disposições constitucionais se aplicam a um número impressionante de mais de 22.000 autoridades, excluindo seu possível julgamento do sistema de justiça criminal que se aplica a todos os demais.

Embora esse tratamento especial possa atribuir o julgamento a um tribunal com um juiz mais experiente, ou um juiz selecionado por uma revisão ética mais rigorosa, ele também remove o caso da jurisdição dos tribunais de primeiro grau, que são projetados (e equipados) para investigar e processar crimes. Em vez disso, eles são incluídos nas agendas de tribunais de apelação cuja tarefa principal é decidir sobre questões de jurisprudência, inserindo-os em um sistema judicial exposto ao processo político.
É mais provável que as autoridades eleitas sejam julgadas por um jurista imparcial em um tribunal de primeira instância, onde as nomeações são controladas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao passo que os juízes que atuam em um tribunal superior (STF, STJ) ou de segunda instância (TRF) são nomeados pelo presidente e ratificados pelo Senado.[i] Com pouquíssimas exceções, os juízes de segunda instância são advogados altamente qualificados com décadas de experiência; no entanto, muitos alcançaram sua posição de destaque trabalhando dentro do establishment político em algum momento de sua carreira.
As políticas destinadas a combater a corrupção política tornaram-se uma prioridade de campanha após o retorno à democracia, especialmente após os escândalos de alto nível da década de 1990 (consulte o Capítulo 6). No entanto, uma pesquisa realizada em 2016 mostrou que o STF não assumiu totalmente sua responsabilidade constitucional como um tribunal criminal para os poderosos. Entre 2011 e 2015, o tribunal superior considerou 404 ações criminais; dessas, 68% foram arquivadas por questões técnicas, como falta de provas ou por causa da prescrição, ou foram encaminhadas para uma jurisdição inferior quando o funcionário acusado deixou o cargo. Apenas cinco por cento terminaram com consequências negativas para o acusado, geralmente por meio de algum tipo de acordo. Apenas dois indivíduos foram condenados por um crime.

A injustiça inerente ao Foro Privilegiado foi revelada pelo escândalo da Lava Jato, quando empresários foram julgados por um tribunal distrital especializado em crimes financeiros (13ª Vara Federal de Curitiba), enquanto senadores, deputados e ministros foram julgados pelo STF. O tratamento diferenciado foi destacado pelas táticas agressivas empregadas pelo juiz que supervisionou o caso (Sergio Moro), que prendeu os réus como meio de coerção e, no processo, extraiu depoimentos que incriminavam autoridades eleitas e ministros. Em contraste, o juiz presidente do STF (Edson Fachin) permitiu que os políticos acusados se defendessem enquanto estavam em liberdade sob fiança pessoal.
Apesar do tratamento díspar, dezenas de políticos proeminentes foram processados; aproximadamente trinta por cento foram derrotados na eleição seguinte e várias figuras proeminentes foram condenadas e mandadas para a prisão. A maioria, entretanto, montou estratégias de defesa baseadas em atraso e negação. Por fim, os promotores de Curitiba visaram Inácio Lula da Silva, que não mais gozava da proteção do Foro Privilegiado. Em uma decisão altamente controversa, Sergio Moro considerou Lula culpado de suborno e lavagem de dinheiro e condenou o ex-presidente a nove anos de prisão.
A raiva e o desgosto em relação a essa elite política levaram, em parte, à eleição de Jair Bolsonaro, que recrutou Sergio Moro como seu primeiro Ministro da Justiça em 2019. No mesmo ano, no entanto, jornalistas investigativos revelaram que Moro e a equipe de promotores haviam coordenado inadequadamente suas estratégias e táticas, o que um tribunal de apelação decidiu que violava o direito de Lula a um processo imparcial. A equipe de defesa de Lula recorreu de sua condenação, que foi anulada em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal.
Essa decisão criou um precedente que motivou uma coalizão de advogados de defesa a comprometer todo o trabalho de investigação dos promotores, que haviam compilado dezenas de milhares de páginas de provas com base em confissões, registros financeiros e gravações clandestinas. Esses argumentos foram aceitos pelos tribunais de apelação, que anularam ou rejeitaram vários casos que implicavam senadores, deputados e ministros do gabinete; o STF manteve essas rejeições em setembro de 2023. A mudança no resultado judicial não significa que os réus sejam inocentes; ao contrário, sinaliza que os processos foram viciados por negligência judicial. A decisão final do STF, que foi redigida por um juiz nomeado para esse tribunal por Lula, coloca os promotores e juízes de Curitiba em risco legal – exceto Sergio Moro, que agora goza do Foro Privilegiado como o recém-eleito senador do Paraná.
Espera-se que o escândalo da Lava Jato seja visto como um episódio transformador que eliminou o uso de fraudes contratuais pelo setor corporativo como uma prática comercial padrão. É muito menos provável, no entanto, que acabe com a corrupção endêmica que assola o sistema político brasileiro, porque esse sistema mais uma vez perpetuou a impunidade para a elite política.

O sistema judiciário usado como arma política
O que começou como uma campanha justa para erradicar a corrupção acabou sendo desfeito por alegações de que Sergio Moro usou o processo judicial para promover sua própria carreira política. As condenações decorrentes das investigações da Lava Jato – e suas subsequentes reversões – mostram que um sistema judicial corrupto é inerentemente suscetível a atores políticos que usam a lei para obter e manter o poder.
A Venezuela é o exemplo mais flagrante da calamidade que pode ocorrer quando o sistema judicial é usado como arma para perverter o sistema político. Hugo Chávez e seus sucessores administraram mal a economia nacional, da que já foi a nação mais próspera da América do Sul, fazendo com que aproximadamente sete milhões de cidadãos fugissem do país. Apesar de sua óbvia incompetência e depravação moral, eles foram bem-sucedidos politicamente porque eliminaram toda a oposição política por meio da guerra legal (lawfare). Isso foi possível porque o sistema judiciário foi completamente corrompido por décadas de suborno e extorsão. É pouco provável que um juiz que tenha vendido sua honra por uma recompensa monetária resista à extorsão de uma máquina política implacável que ameaça seu sustento.
Embora nenhum outro país tenha caído na mesma situação de governança que assola a Venezuela, a Bolívia chegou perigosamente perto. Evo Morales consolidou o poder entre 2009 e 2019, em parte usando o sistema judicial para intimidar a oposição política. Morales, e seu círculo de operadores políticos, subjugaram facilmente autoridades judiciais corruptas e, depois de conquistar uma supermaioria legislativa, preencheu os tribunais com leais subservientes ao partido do governo.

Esse legado continua a dominar a política boliviana, apesar da derrota eleitoral e de um golpe de Estado falido que o marginalizou. Ironicamente, seus erros deram poder a uma camarilha concorrente dentro de seu próprio partido, que cooptou essas táticas autoritárias aperfeiçoadas em Cuba, Nicarágua e Venezuela.
Entre outros exemplos do uso do sistema judiciário para atacar adversários políticos estão o presidente Pedro Castillo no Peru (2023) e o Suriname em 2020, quando o governo criminalizou decisões políticas de boa-fé, relacionadas à pandemia de Covid, que haviam sido tomadas pela administração anterior. A corrupção judicial assola todas as jurisdições da Pan-Amazônia, sendo improvável que as políticas de lei e ordem para combater o desmatamento ilegal, o roubo de madeira, a grilagem de terras e a mineração ilegal sejam bem-sucedidas se não houver uma reforma genuína dos sistemas judiciais nacionais.
Imagem do banner: A alteração da lei sobre o crime organizado é criticada pelos promotores. Na imagem, nove pistas de pouso clandestinas detectadas por uma investigação da Mongabay Latam e que afetam os territórios de duas comunidades indígenas da selva central do Peru. Imagem de satélite: Earth Genome / Mongabay Latam.