Manaus é uma das capitais brasileiras que mais gera resíduos sólidos no Brasil, com média de 1 kg de lixo produzido diariamente por habitante. O problema afeta todo o Amazonas, um dos estados que mais utiliza lixões em todo o país — o que aumenta os riscos de contaminação do solo.
O Centro de Tratamento e Transformação de Resíduos (CTTR) Amazonas pode ser uma das soluções para o alto volume de detritos da cidade: pioneira no estado, a planta promete converter resíduos sólidos em biometano, chamado de “gás verde” por seu alto potencial de descarbonização.
Quando atingir pleno funcionamento, por volta de 2031, o CTTR poderá produzir mais de 80 mil m³ do biogás por dia, abastecendo cerca de 179 mil residências, segundo estimativas do setor.
Além de fortalecer a busca por metas nacionais de descarbonização, a incorporação do biometano à matriz energética no Amazonas pode reduzir o risco de insegurança energética em municípios do interior, que sofrem com o desabastecimento iminente.
Capital do estado do Amazonas, Manaus é uma das cidades brasileiras que mais gera resíduos sólidos, com uma produção diária de 1 kg por habitante. Segundo a Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), o problema do lixo não é exclusivo do município amazonense mais populoso: o estado como um todo apresenta um dos maiores índices de uso de lixões, com quase 92% de suas cidades descartando seus detritos dessa forma. Em estados como São Paulo e Santa Catarina, a taxa não chega a 3%.
A prática resulta em um acúmulo de resíduos poluentes que, além de criar problemas socioeconômicos e logísticos, contamina o solo em territórios amazônicos, acendendo diversos alertas ambientais.
A transição energética, agora, pode ter a solução.
Atualmente, o mesmo lixo que preocupa especialistas no Amazonas pode se tornar um importante aliado na corrida nacional contra as emissões poluentes, graças à futura operação do Centro de Tratamento e Transformação de Resíduos (CTTR) Amazonas. Com estrutura inaugurada em 2024, o CTTR de Manaus é a primeira usina de biometano do estado.
A instalação buscará transformar o material descartado pelo ser humano em biometano, chamado de “gás verde” por seu alto potencial de descarbonização. A captura desse energético gasoso vem da decomposição da matéria orgânica — uma vez coletado, o metano é convertido em biogás, que depois é purificado até chegar em sua versão final. Estima-se que o elemento emita até 2,5 vezes menos CO2 do que o gás natural.
O empreendimento deve iniciar as operações em 2028, data prevista para a transferência da gestão de tratamento dos resíduos para o novo aterro sanitário vinculado ao centro de tratamento. A futura produção diária de gás verde é estimada em 80 mil m³, o suficiente para abastecer 179 mil residências, segundo projeções de representantes do setor. Quando alcançar pleno funcionamento, o centro terá a capacidade de produzir 41 milhões de m³ de biometano por ano.
O biometano e o gás natural têm estruturas moleculares semelhantes, o que os aproxima em termos de infraestrutura de distribuição. Isso torna o gás produzido pelo CTTR um elemento estratégico para os esforços nacionais de descarbonização — uma meta que segue desafiadora. “O metro cúbico de biometano reduz 90% das emissões de gás carbônico caso substitua o gás natural. O número pode ser ainda maior se a substituição envolver o diesel. É uma molécula energética muito valiosa”, diz o economista Gustavo Soares, pós-doutorando na área de Bioenergia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em entrevista à Mongabay.
A iniciativa manauara pode atrair a atenção do mundo em 2025. Isso é possível à medida que as discussões sobre transição energética aumentam a meses da COP30, marcada para o próximo mês de novembro em Belém, outra capital do Norte brasileiro. No embalo da cúpula do clima da ONU, a região amazônica pode encontrar caminhos para aliar dois pilares importantes de desenvolvimento: sustentabilidade e soberania energética.
Mas, para atingir esse objetivo, o debate ambiental em fóruns globais deve ser plural, uma vez que “o problema não é só a floresta [amazônica]”, diz Pedro Maranhão, presidente da Abrema. “O Brasil ainda possui 3 mil lixões [a céu aberto]. São muitas fontes de água contaminadas, em sua maioria pela falta de uma destinação correta do lixo. É preciso que se fale sobre o tratamento de resíduos sólidos e do gás verde.”

Um raio-x do biometano no Amazonas
Os resíduos sólidos são a principal fonte do biometano produzido no Amazonas — mas não a única. Segundo Vinícius Magno, chefe de Energia do Instituto Conecthus, à frente de projetos tecnológicos para impulsionar o desenvolvimento sustentável em Manaus, há outras duas alternativas que podem abastecer o setor de biogás de forma eficiente.
“As vísceras do peixe são uma poderosa matéria-prima para a produção de biometano. Podem ser consideradas o segundo [melhor insumo].” O engenheiro diz que o estado pode se beneficiar da piscicultura por se destacar nacionalmente no setor. Em 2024, apenas a produção do tambaqui (Colossoma Macropomum), um dos peixes mais tradicionais da Amazônia, superou 17 mil toneladas, de acordo com o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam).
O ramo de biogás conta com outro aliado: a cana-de-açúcar. “Os resíduos da indústria açucareira também servem para se produzir biometano e buscar a descarbonização”, diz Magno. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o estado produziu quase 358 mil toneladas de cana somente em 2023. Parte dessa estrutura produtiva está localizada no município de Presidente Figueiredo, a 125 km de Manaus, onde operam empresas do ramo de bebidas alcoólicas. A proximidade entre o pequeno município e a capital poderia facilitar a destinação das sobras de cana para o CTTR.
A matriz energética de Manaus é abastecida primordialmente pelo gás natural produzido em Coari, município que fica a cerca de 363 km. O gás que vai para a capital é levado por um gasoduto — e por ser de fluxo contínuo, não pode ser armazenado.
Magno diz que esse modelo de distribuição traz alguns riscos. “Se houver algum tipo de interrupção na produção em Coari, o gasoduto para. Isso diminui a geração de energia elétrica. O Polo Industrial de Manaus, que precisa de gás natural para funcionar, pode deixar de operar.” A crise desencadeada por um eventual quadro de abastecimento pode ir além da capital: segundo a Agência Amazonas, em 2024 houve um consumo recorde dessa fonte de energia fóssil em todo o estado.
Diante dessa realidade, o engenheiro diz que a produção de biometano pode criar uma solução dupla, aliando práticas de descarbonização a futuras “reservas energéticas de segurança”.

Segundo o especialista, a insegurança energética é ainda maior fora de Manaus. O estado tem 62 municípios e não há um padrão na estrutura de energia — muitos contam com sistemas isolados, o que mantém cidades inteiras sem acesso a linhas de transmissão. Os casos mais críticos são detectados em regiões extremas do território estadual, no norte e no sul. “Cerca de 89% dos municípios amazonenses estão fora do Sistema Elétrico Nacional”, diz Magno. Mais ainda, a maior parte dessas cidades depende da atividade de 121 usinas termelétricas, por sua vez altamente dependentes da queima de combustíveis, como o diesel. Para piorar, essa dinâmica, naturalmente poluente, é afetada em períodos de estiagem.
“Quando os rios secam, é inviável abastecer as termelétricas. Muitos municípios ficam descobertos [de fornecimento elétrico]. Ao mesmo tempo, [esses mesmos locais] produzem resíduos que, se transformados em biometano, podem ajudar a descarbonizar o setor, além de aumentar a confiabilidade energética nessas regiões”, diz Magno.
Apesar das perspectivas positivas, representantes da categoria trazem uma visão pragmática. “Não vamos concorrer com o petróleo. Nós [o setor do biometano] somos parte integrante do processo de transição energética. O biometano é o agente de descarbonização do gás [vindo do] petróleo”, diz Hugo Nery, presidente da Marquise Ambiental, empresa de soluções ambientais responsável pela administração do CTTR.
Para Nery, ainda que o biometano seja uma “excelente alternativa”, o gás verde não poderá, sozinho, tornar-se um agente substituto dos combustíveis fósseis.
Ao menos, por enquanto.
Da coleta do lixo ao processo de distribuição: o caminho do gás verde
A produção do biometano começa com a coleta dos resíduos sólidos. Esse material chega aos aterros ainda misturado, reunindo a matéria orgânica com sobras de papel, metal e plástico. A primeira etapa consiste na separação do que de fato é orgânico — processo fundamental para descontaminar o gás antes de sua distribuição. Essa “limpeza” é necessária à medida que parte dos resíduos pode conter resquícios de medicamentos, inseticidas ou outros produtos químicos contaminantes.
No futuro, o processo pode ser facilitado caso os resíduos cheguem aos aterros já separados, otimizando o tempo, reduzindo custos e potencializando a produção.
Há, no entanto, um longo caminho a ser percorrido. O volume de biometano desejado pelo setor só se tornará viável em 2031, pelo menos três anos após o início das atividades do CTTR. Esse é o período necessário para que a empresa acumule uma quantidade suficiente de biogás a ser convertido em biometano. Concluída essa etapa, é previsto que a Companhia de Gás do Amazonas (Cigás) leve o produto ao cliente final. Em 2025, o centro e a Cigás já discutem a construção de um gasoduto extra que insira o biometano na rede de distribuição que está em funcionamento.
Outros avanços ambientais indiretos são previstos no processo. Além da estrutura produtiva de biogás, a planta de Manaus contará com um sistema de osmose reversa, que transforma o chorume — líquido que resulta da decomposição de matéria orgânica — em água de reúso. “Com o uso de nanotecnologia, o chorume será transformado em água desmineralizada, que pode ser utilizada na limpeza de equipamentos industriais, por exemplo. A usina deve produzir cerca de 1 mil m³ de água de reúso por dia”, diz Thiago Levy, diretor comercial da Marquise Ambiental.

O que ainda falta para iniciar a produção
Localizado a 40 km da região central de Manaus, o CTTR ocupa uma área de 140 hectares, antes utilizada por uma rede de extração ilegal de areia. Diante dos possíveis impactos ambientais dessa atividade, o terreno passou por um processo de restauração florestal antes do início das obras.
O CTTR já possui licenciamento ambiental para operar. Ainda depende, no entanto, que a prefeitura transfira a administração da coleta de lixo e o tratamento dos resíduos para o aterro sanitário vinculado à usina. Esse aterro, o principal da capital, atingiu o tempo de vida útil em janeiro de 2024, após 40 anos de operação — mas, em vez de ser desativado, conseguiu autorização para operar até 2028.
A assessoria de imprensa da Marquise Ambiental, futura administradora do CTTR, informou que “todas as etapas do processo foram fiscalizadas por técnicos do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), com laudos independentes e pareceres emitidos pelo Tribunal de Contas do Estado do Amazonas que atestam a legalidade, viabilidade e segurança ambiental do empreendimento”.
Ainda segundo a assessoria, em respeito ao Código Florestal do Brasil, foi estabelecida uma distância de 200 metros entre o perímetro da usina e o Igarapé do Leão, um importante curso hídrico que deságua no Rio Tarumã-Açu, um dos principais afluentes do Rio Negro. O tópico é sensível, uma vez que a construção de estruturas de armazenamento de lixo próximas ao igarapé já foi tema de denúncias por parte do poder público em anos recentes.
A Mongabay entrou em contato com a Prefeitura de Manaus para entender o que falta para a assinatura do contrato que transfere o tratamento dos resíduos para o aterro da CTTR Amazonas. A reportagem também perguntou se o contrato que confere à prefeitura o direito de administrar os resíduos será cumprido até 2028 — ou se os prazos podem ser modificados, de forma a acelerar o início da produção de biometano.
Já o Ipaam foi questionado sobre os riscos, caso existam, que as obras do CTTR impõem à qualidade da água do igarapé. Até o fechamento deste material, o instituto e a prefeitura não haviam respondido às perguntas enviadas por e-mail.
A Marquise Ambiental, por sua vez, aposta em sua experiência no setor para levar o projeto adiante. A empresa participou da criação da GNR Fortaleza, primeira planta de biometano das regiões Norte e Nordeste. Com sete anos de operação, a unidade localizada na capital cearense é responsável por 31,6% do biometano produzido no Brasil e fornece 15% de todo o gás consumido no estado do Ceará. A produção utiliza os resíduos sólidos vindos de Fortaleza e Caucaia.

Brasil tem cenário favorável para expandir produção, mas desafios seguem
Segundo o painel dinâmico de produtores de biometano da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, a ANP, a produção de biogás no Brasil em 2024 foi de 81,5 milhões de m³. Para o economista Gustavo Soares, os números são animadores, sobretudo ao se considerar a vasta biodiversidade e base agrícola sólida do país — cujas sobras podem “alimentar” essa estrutura.
Os setores de etanol, resíduos sólidos e agropecuária estão entre os maiores potenciais fornecedores de matéria-prima para a produção de biometano. No médio prazo, para que a estrutura de biogás se beneficie dessa oferta de resíduos, o investimento em logística e infraestrutura será fundamental para superar desafios, diz Soares. “Há também um grande potencial [de uso para a indústria de biometano] no esterco animal, considerando a grande população utilizada do Brasil. Os bois, no entanto, estão no pasto, o que gera desafios econômicos e biológicos.” De acordo com o IBGE, o país possui quase 239 milhões de cabeças de gado.
Para ele, iniciativas de incentivo aos biocombustíveis serão cruciais para a expansão do setor. Entre elas está a RenovaBio. Criada em 2017, a medida se baseia em compromissos climáticos internacionais de redução de gases poluentes e exige que empresas distribuidoras de combustíveis comprem os Créditos de Descarbonização (CBIO). O título corresponde a uma tonelada de carbono que deixa de ser emitida para a atmosfera.
Outra ação com potencial de fomento é o Combustível do Futuro, programa que promove a transição para fontes de energia mais limpas e renováveis. A partir dela, as distribuidoras de combustíveis devem comprar anualmente uma quantidade de biometano suficiente para descarbonizar sua matriz em cerca de 1% — parte de uma meta que busca incorporar 10% de gases verdes ao gás natural disponível no mercado brasileiro.
“O objetivo é descarbonizar o setor de combustíveis fósseis e valorizar a característica ambiental do biometano. Grandes emissores [de gases poluentes], como as indústrias química e siderúrgica, além das empresas [produtoras] de alumínio, serão obrigadas a alcançar uma meta de descarbonização. O biometano é uma excelente alternativa”, diz Soares.
Eficiência energética pode potencializar ganhos do biometano
A adoção de energias renováveis é um passo importante para redução das emissões em escala mundial. Felipe Barcellos, especialista em biometano do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), vai além: para ele, essa tendência pode ser potencializada se for aliada à eficiência energética.
Em resumo, “eficiência energética” significa produzir mais com menos recursos — como iluminar o mesmo número de ambientes de uma casa com menos lâmpadas, consumindo menos eletricidade.
Para Barcellos, essa pode ser a chave para a otimização. “É importante que tanto as usinas que buscam produzir biometano quanto os aparelhos eletrônicos que vão consumir essa energia sejam modelos eficientes — demandando menos biometano [de forma geral]. Esse é o melhor dos mundos: combinar biometano, energia renovável e eficiência energética.”
O pesquisador diz que essas práticas favorecem a cultura de consumo consciente e, no longo prazo, podem reduzir as pequenas emissões que fazem parte do ciclo natural do biometano. “O biometano é um gás verde que tem CO2 de origem neutra. Porém, como todo gás queimado, ele emite outros gases poluentes em pequena quantidade. Com a eficiência energética, esse impacto também pode ser reduzido.”
Imagem do banner: Fotografia aérea da usina de biometano de Manaus. Foto cedida pelo CTTR Amazônia
*A reportagem visitou as instalações do CTTR Amazonas a convite da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).