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Gilmar recua em mineração, mas impasse sobre terras indígenas permanece no STF

  • O ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal recuou e retirou a proposta de abrir as terras indígenas para a mineração e atividades econômicas de um anteprojeto de lei controverso que, segundo os críticos, viola a Constituição.

  • A Advocacia-Geral da União também apresentou uma minuta de decreto presidencial que exclui atividades minerárias nos territórios indígenas, mas permite o turismo e outras atividades lideradas pelas comunidades.

  • Ambas propostas mantiveram artigos controversos relativos à indenização dos ocupantes não-indígenas, o que poderá inviabilizar o processo de demarcação de terras, segundo ativistas.

  • As propostas são o resultado de uma batalha judicial de anos centrada na polêmica tese do marco temporal, com o objetivo de anular qualquer reivindicação de demarcação de terras indígenas em áreas que não estavam fisicamente ocupadas antes da Constituição de 1988; a última reunião prevista para resolver o imbróglio terminou sem consenso em 2 de abril.

Depois de nove meses de tentativa de negociação, a última reunião prevista para resolver o imbróglio sobre a demarcação das terras indígenas ocupadas antes da Constituição Federal terminou sem consenso, deixando no limbo a garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas, afirmam ativistas.

Após intensos protestos em todo o país e no exterior, o ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal (STF) retirou a proposta de abertura das terras indígenas para a mineração e outras atividades econômicas de um polêmico anteprojeto de lei que, segundo opositores, viola a Constituição. Outros pontos polêmicos permaneceram, como a indenização aos ocupantes não-indígenas, o que, segundo defensores dos direitos indígenas, pode inviabilizar o processo de demarcação de terras.

Apresentado em fevereiro por Mendes, o anteprojeto de lei permite que o governo federal conduza atividades de “relevante interesse público da União” em terras indígenas quando não houver “alternativa técnica e locacional” para a exploração de recursos minerais estratégicos, obras de infraestrutura para serviços públicos de transporte, energia e telecomunicações, entre outros.

Líderes indígenas, ativistas e as Nações Unidas reagiram imediatamente, chamando a iniciativa de retrocesso e um ato “sem precedentes” na história da Suprema Corte, uma instituição que tem o dever de proteger os direitos dos indígenas e das minorias, conforme estabelecido pela Constituição. O STF disse que não responderia aos pedidos de resposta da Mongabay. Em 27 de março, o juiz assistente de Mendes, Diego Veras, anunciou mudanças no projeto e disse que o ministro debaterá a questão da mineração em um procedimento separado.

Para Luis Ventura, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a retirada da mineração do anteprojeto de lei é o que realmente deveria acontecer. “A mineração em territórios indígenas vai na contramão, vai agredir claramente os direitos dos povos indígenas à vida, ao território, às próprias formas de organização e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais de seus territórios”, disse Ventura à Mongabay por telefone.

Justice Gilmar Mendes presides over the first meeting of the special conciliation commission to deal with actions involving the time frame for demarcating Indigenous lands. Image courtesy of Gustavo Moreno/STF.
O ministro Gilmar Mendes presidindo a primeira reunião da câmara de conciliação para tratar das ações que envolvem o marco temporal para demarcação de terras indígenas. Imagem cortesia de Gustavo Moreno/STF.

Com o objetivo de alterar o artigo 231 da Constituição, que consagrou os direitos territoriais indígenas, o anteprojeto manteve pontos polêmicos que, segundo os críticos, acrescentam mais obstáculos ao já longo processo de demarcação de terras indígenas. Um deles é a possibilidade de ocupantes não-indígenas permanecerem na posse da área — mesmo que seja uma terra indígena totalmente demarcada — até receberem a indenização que julgarem pertinente, tanto pela terra nua quanto pelas benfeitorias.

O projeto é o resultado de uma batalha jurídica de anos centrada na polêmica tese do marco temporal, que visa anular qualquer reivindicação de demarcação de terras indígenas em áreas que não estavam fisicamente ocupadas antes da Constituição, mesmo que os indígenas pudessem provar que as áreas eram terras ancestrais. A tese ignora as desapropriações forçadas durante a ditadura militar (1964-85) e seus efeitos até 1988, bem como o comportamento nômade de algumas comunidades indígenas.

Em setembro de 2023, o STF decidiu que a tese do marco temporal era inconstitucional, mas o Congresso aprovou uma nova lei restabelecendo-o logo em seguida, confrontando a decisão dos ministros, levando o debate novamente à suprema corte.

Em abril de 2024, o ministro Mendes — que votou com a maioria de 9-2 do STF contra o marco temporal — suspendeu o julgamento de todos os processos relacionados à questão e criou uma “câmara de conciliação” com o objetivo de resolver o conflito, decisão fortemente criticada por representantes indígenas e defensores dos direitos indígenas.

Indigenous mobilization in Brasilia on the Esplanada dos Ministérios against bill 490 and against the time frame for it to be voted on by the court. Image by Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real.
Mobilização indígena em Brasília contra a tese do marco temporal em 2023. Imagem cortesia de Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real.

“Não existe a possibilidade de conciliar direitos fundamentais. Portanto, mesmo com a retirada da mineração, a manutenção da mesa de conciliação continua sendo no nosso entendimento um grave erro porque não é o foro adequado para discutir direitos fundamentais”, disse Ventura. Para ele, a única solução para resolver esse conflito é a declaração de inconstitucionalidade da lei do marco temporal pelo plenário do STF.

Imbrógio jurídico

Também no dia 27 de março, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou uma minuta de decreto presidencial que exclui as atividades de mineração em terras indígenas, mas permite atividades turísticas lideradas por comunidades indígenas. A minuta também permite que as comunidades realizem atividades econômicas em cooperação ou contratação de não-indígenas, desde que os resultados das atividades gerem benefícios para os indígenas e que seus direitos territoriais sejam mantidos. “As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja a posse direta pela comunidade indígena”, diz o projeto.

A minuta do decreto estabelece que as indenizações por benfeitorias necessárias e terra nua só serão cabíveis se o reassentamento do não-indígena for inviável e mediante a existência de título de propriedade válido. O título deve estar diretamente associado à posse do não-indígena ou se o governo tiver concedido, por erro, títulos de posse convertidos em propriedade sobrepostos às terras indígenas. Em ambas as situações, a ocupação ininterrupta antes de 5 de outubro de 1988 terá que ser comprovada. “É vedada, em quaisquer das hipóteses de compensação ou indenização previstas, a aceitação de situações ou documentos que configurem apropriação ilegal de terras públicas”, diz o documento. Caso contrário, a indenização será devida somente para as benfeitorias úteis e necessárias e construídas de boa fé na área.

Em manifestação enviada a Mendes, a AGU informou que a minuta de decreto resultado de “uma análise criteriosa tanto do ponto de vista técnico quanto jurídico”, após consulta às áreas especializadas dos ministérios envolvidos, considerando a viabilidade das medidas sugeridas, bem como os impactos sociais, administrativos e financeiros das alterações legislativas propostas. A AGU informou que optou por apresentar um decreto presidencial “com o intuito de conferir flexibilidade e efetividade à implementação das normas, ao mesmo tempo em que se prestigia e concretiza a competência atribuída constitucionalmente ao Chefe do Poder Executivo”.

Apesar de não ter havido consenso dentro do próprio governo para todas as questões pertinentes à demarcação de terras indígenas, a minuta de decreto consolida apenas os pontos consensuais, disse Marcos Kaingang, secretário nacional de direitos territoriais indígenas do Ministério dos Povos Indígenas.

Segundo ele, regulamentar a demarcação de terras por meio de uma lei seria muito restritivo e paralisaria o processo. “Se o Congresso é quem aprova o orçamento [do governo federal], eles vão dizer no final do ano quanto vai ter para demarcação ou não. Então isso é um ponto que nos preocupa”, disse Kaingang à Mongabay em uma entrevista em vídeo.

Munduruku Indigenous People blocked a road on March 25, protesting against the conciliation table at the Supreme Court and for the repeal of law 14.701. Image courtesy of the Pariri Association.
Indígenas Munduruku bloquearam uma estrada em 25 de março de 2025, protestando contra a câmara de conciliação no Supremo Tribunal Federal e pela revogação da lei 14.701. Imagem cortesia da Associação Pariri.

É por isso que o governo propôs um decreto presidencial para garantir que os territórios indígenas continuem a ser demarcados, acrescentou. “A gente tem tentado apresentar propostas meio-termo que atendam tanto os povos indígenas e defenda o rito que a gente tem hoje, mas também dando algum aceno no sentido que a gente está disposto a fazer um diálogo e atender alguns pontos da lei [do marco temporal] 14.701″.

Tanto o anteprojeto de lei de Mendes quanto a minuta de decreto da AGU mantiveram o direito dos povos indígenas às terras em áreas tradicionalmente ocupadas sem o marco temporal, o que provocou reação do setor do agronegócio. “O marco temporal é inegociável. Caso haja necessidade de votarmos mais uma vez, vamos reiterar esses votos e garantir o entendimento em relação à questão. Deixamos isso extremamente claro”, disse o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), logo após a apresentação do anteprojeto de Mendes. “A gente já se posicionou. Partimos do princípio de não negociar área invadida”.

Em 26 de março, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) enviou sua agenda legislativa prioritária para 2025, que inclui a aprovação da PEC 48/2021 para implementar a tese do marco temporal para trazer “previsibilidade nas demarcações e segurança jurídica para o produtor rural, que possui seu justo título e posse de boa-fé para produzir com tranquilidade, além de reduzir os conflitos fundiários no campo”.

De acordo com Kaingang, ainda há pontos pendentes a serem aprimorados na minuta do decreto e foi apresentado um plano de compensação transitório para fazer uma avaliação caso a caso para definição do melhor modelo. Como o processo de demarcação de terras está paralisado em meio a esse impasse jurídico, ele disse que o governo está fazendo todos os esforços para que o processo de demarcação seja retomado o mais rápido possível.

“Da forma como foi apresentada na proposta do Guilherme Mendes ou na forma como foi apresentada na proposta da União, o que significa é que os direitos dos povos indígenas, a seus territórios somente serão garantidos caso haja acordos e acertos com os ocupantes não indígenas em termos de indenização econômica” disse Ventura. “Portanto, o direito acaba sendo condicionado. E um direito quando é condicionado, deixa de ser direito. Deixa de ser direito. O direito deve ser garantido plenamente, integralmente”.

A luta contra a tese do marco temporal estará no centro do maior encontro anual de grupos indígenas do país. Com o lema “Em defesa da Constituição e da vida”, o Acampamento Terra Livre ocorrerá em Brasília de 7 a 11 de abril.

Imagem do banner: Indígenas Munduruku bloquearam uma estrada em 25 de março de 2025, protestando contra a câmara de conciliação no Supremo Tribunal Federal e pela revogação da lei 14.701. Imagem cortesia da Associação Pariri.

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Karla Mendes é repórter investigativa da Mongabay no Brasil e é membro do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center. Ela é a primeira brasileira e latinoamericana eleita para a diretoria da Society of Environmental Journalists (SEJ), dos Estados Unidos, onde ela também foi eleita Vice-Presidenta de Diversidade, Equidade e Inclusão. Leia outras matérias publicadas por ela na Mongabay aqui. Encontre-a no Instagram, LinkedIn, Threads, 𝕏 e Bluesky.

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