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Homens armados cercam grupo que reivindica terra na região mais violenta da Amazônia

O dono da empresa Maxford Security disse ter sido contratado por Ari Friedler, que se diz dono da Fazenda Hebrom, e Bruno Heller, grileiro que foi alvo da Polícia Federal em 2023. Foto: Fernando Martinho/Mongabay.

  • Um grupo de cerca de 70 pessoas montou um acampamento perto da BR-163, no município de Novo Progresso, no Pará, na esperança de conseguir um lote de terra.

  • A área fica dentro de um assentamento de reforma agrária, o PDS Terra Nossa, que está ilegalmente ocupado por fazendeiros da região.

  • Homens armados contratados pelos fazendeiros cercaram o grupo e estão impedindo a entrada de pessoas.

  • Com 97% da sua área ocupada por invasores, o PDS Terra Nossa tem um histórico de assassinato de lideranças.

NOVO PROGRESSO, Pará — Era meados de outubro quando José, de 54 anos, recebeu no celular a mensagem que tanto esperava. O sonhado assentamento de reforma agrária iria finalmente sair, e ele teria seu lote de terra. Ele não pensou duas vezes. Deixou a família em Porto Velho, Rondônia, e cruzou quase 1.800 quilômetros de moto, em uma viagem de três dias até o município de Novo Progresso, no sudoeste do Pará.

“Sempre trabalhamos na terra dos outros, e metade do que a gente colhe a gente tem que dar para os outros”, conta José, cuja família sonha com terra própria desde os anos 1980, quando migrou de Minas Gerais para a Amazônia. “Seria uma chance na vida de dar um conforto para a minha família.”

A história é parecida com a de Mariana, de 26 anos, que estava no interior do Maranhão quando recebeu uma mensagem de um amigo do Pará. Um assentamento estava sendo criado, e ela poderia conseguir um lote. “Falaram no Whats que o Incra ia cortar as terras”, ela conta. A jovem vendeu umas poucas galinhas que tinha no Maranhão, pegou a filha de dois anos e viajou 2 mil quilômetros até o pedaço de terra prometida.

José e Mariana, cujos nomes verdadeiros foram omitidos por razões de segurança, agora fazem parte de um grupo de cerca de 70 pessoas acampadas em barracos de lona em uma área a cerca de 10 quilômetros da BR-163, rodovia que liga o norte do Mato Grosso a Santarém, no Pará.

Segundo os acampados, o grupo já foi maior, de cerca de 300 pessoas. Mas muita gente foi embora depois que homens armados fecharam a porteira que dá acesso à área e instalaram uma guarita bem na entrada do acampamento. Outras duas guaritas com guardas armados foram instaladas ao redor do grupo.

Grupo de luta pela terra está acampado desde meados de outubro em área ocupada por grileiros dentro do PDS Terra Nossa. Foto: Fernando Martinho/Mongabay.

A área ocupada fica dentro do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, um assentamento criado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 2006 justamente para receber famílias sem-terra. Porém, assim como a maior parte do assentamento, o pedaço de terra escolhido pelos acampados foi ocupado ilegalmente por grandes fazendeiros locais.

A área conhecida como Fazenda Hebrom é reivindicada por Ari Friedler, e foi embargada em 2008 pelo Ibama pelo desmatamento de mais de 2.500 hectares. Documentos do Incra confirmam que se trata de uma ocupação irregular dentro do PDS Terra Nossa.

Segundo os acampados, os homens armados ficam de olho e já ameaçaram atirar em quem se afastasse do acampamento. “Nós não podemos sair; se sair, não entra mais”, disse uma das pessoas ouvidas pela Mongabay. “Estamos encurralados, e eles cada vez mais estão fechando o cerco. Então estamos pedindo ajuda às autoridades superiores.”

“A gente tem uma situação absurda, que são famílias com perfil de beneficiários de reforma agrária, ocupando um assentamento de reforma agrária que está ilegalmente na mão de um concentrador de terra”, afirma Maurício Torres, pesquisador da Universidade Federal do Pará e especialista em conflitos de terra. “E não duvido, nessa lógica canhestra, que essa população venha a ser criminalizada”, diz Torres, que foi até o acampamento colher informações para sua pesquisa.

A instalação da guarita e a proibição da entrada de novas pessoas obrigou o grupo a se dividir. Uma parte ficou do lado de dentro da porteira. Se saírem, não voltam mais. Outra parte ficou do lado de fora, impedida de entrar. Segundo os assentados, logo que chegaram, os homens armados também estavam impedindo a entrada de água, alimentos e remédios, e o grupo se viu obrigado a beber água suja de um igarapé. Depois, eles passaram a autorizar a entrada de mantimentos, que precisam ser passados por cima da cerca.

No dia 4 de novembro, um juiz da Vara Agrária de Santarém determinou a liberação da estrada. Mas até o dia 14 de novembro, quando a Mongabay deixou o local, a decisão não havia sido cumprida.

Os homens armados estão identificados com carros e uniformes da empresa Maxford Security, cujo dono, Andreilson da Silva Cordeiro, estava no local e conversou com a equipe da Mongabay. Ele negou que sua equipe tivesse impedido a entrega de alimentos, água e remédios. “É uma inverdade”, afirmou Cordeiro, que disse já ter trabalhado como policial civil e penal

Catorze seguranças armados cercam grupo de luta pela terra acampado próximo à BR-163. Foto: Fernando Martinho/Mongabay.

O ex-policial afirmou ter sido contratado por Ari Friedler e Bruno Heller, grileiro conhecido como um dos maiores desmatadores da Amazônia e que foi alvo de uma mega-operação da Polícia Federal em agosto de 2023. Heller ocupa irregularmente uma área de mais de 20 mil hectares, equivalente a nove ilhas de Fernando de Noronha, vizinha à Fazenda Hebrom.

Destes, cerca de 1.900 hectares estão dentro do PDS Terra Nossa. Em 26 de setembro, um juiz federal de Altamira determinou que Heller desocupasse a área em trinta dias, “sob pena de cumprimento forçado da reintegração de posse”. A Mongabay entrou em contato com os advogados de Bruno Heller, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.

Apesar de ter sido contratado pelos fazendeiros, Cordeiro afirmou que está no local para impedir que os próprios fazendeiros ingressem na área e entrem em confronto com os acampados. “Fomos contratados pelo proprietário da fazenda para evitar que acontecesse o pior, um confronto entre produtores rurais e as pessoas que adentraram na área sem autorização.”

O irmão de Ari Friedler, Ademar, estava no local e não quis gravar entrevista. Porém, afirmou que sua família não sairia da área. O advogado dos Friedler, Manoel Malinski, disse à Mongabay por mensagem de texto que irá “aguardar as autoridades competentes resolverem a situação”. A Mongabay sugeriu um encontro para gravar uma entrevista em vídeo, mas o advogado declinou.

Friedler prestou queixa na Delegacia Especializada em Conflitos Agrários de Santarém, que indiciou as lideranças do movimento por invasão de terras.

Entre os indiciados está Francisco das Neves Ferreira, conhecido como Goiano. Ele é presidente da Associação Bom Futuro, que há cerca de um ano vem recolhendo dinheiro de cerca de quinhentos associados com a promessa de criação de um assentamento. Segundo ele, os recursos são usados para pagar os custos da associação e comprar comida e medicamentos para o grupo.

Em 2019, Goiano foi preso após liderar um movimento semelhante que invadiu uma área dentro da Floresta Nacional do Jamanxim, uma unidade de conservação protegida por lei.

Goiano (no centro, de chapéu) é a principal liderança do grupo, e disse estar recebendo ameaças de morte. Foto: Fernando Martinho/Mongabay.

Na quinta-feira (14), três servidores do Incra foram até o acampamento e conseguiram convencer os seguranças a abrir a porteira por cerca de duas horas para que todo o grupo pudesse se reunir. Os agentes públicos reconheceram a legitimidade do movimento de luta pela terra. Eles explicaram aos assentados, no entanto, que é preciso aguardar uma decisão da justiça determinando que Friedler devolva a área à União. No caso da área de Heller, a decisão já foi proferida, mas ainda precisa ser cumprida.

Uma vez que isso aconteça, a preferência será das famílias que já deveriam ter sido assentadas no PDS Terra Nossa, mas foram impedidas pelos fazendeiros. “Já existem 700 famílias na relação de assentadas esperando um lote”, explicou ao Mongabay o conciliador agrário Antônio José Ferreira da Silva. O Incra garantiu que voltaria ao local no dia 15 de dezembro para cadastrar aqueles que ainda não estão na lista de espera do órgão.

Além de ser uma das campeãs de desmatamento da Amazônia, a região de Novo Progresso tem um histórico de conflitos violentos pela terra, e o PDS Terra Nossa concentra a maior parte do derramamento de sangue. Só em 2018, cinco pessoas foram assassinadas por conflitos envolvendo o assentamento, e até hoje as lideranças vivem sob ameaça.

“É uma região onde o controle da terra é feito pela violência. Quem fica com a terra não é quem tem a matrícula registrada no cartório de imóveis, é quem é mais forte e consegue expulsar o mais fraco”, diz Maurício Torres.

Movimento de luta pela terra no assentamento de Novo Progresso reúne pessoas do Pará, mas também de outros estados, como Maranhão, Goiás e Rondônia. Foto: Fernando Martinho/Mongabay.

Segundo o pesquisador, dos 150 mil hectares destinados ao PDS, 146 mil estão sob posse dos grileiros. A situação é de conhecimento do Incra há pelo menos nove anos, mas só agora estão começando a sair as primeiras decisões judiciais determinando a retirada dos invasores.

“Em mais de vinte anos de pesquisa, poucas vezes eu encontrei um grupo tão violentado, aterrorizado e sitiado quanto os assentados do PDS Terra Nossa”, disse o pesquisador.

Goiano, que é a principal liderança dos acampados, tem medo de ser o próximo alvo. “Tá chegando uma enxurrada de ameaças de morte pra mim na minha casa”, ele contou à Mongabay.

O Ministério Público Federal no Pará informou à Mongabay que abriu uma investigação sobre o caso, que está sob sigilo.

 

Enfraquecimento da reforma agrária abre espaço para violência contra assentados no Pará

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