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Terrorismo de barragem: como mineradoras usam sirenes para expulsar moradores

Parede de casa atingida pela rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG) em 2019. Foto: Romerito Pontes from São Carlos, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons

  • Tese tenta mostrar como algumas barragens em Minas Gerais foram colocadas em nível de risco de modo artificial pelas mineradoras, como forma de expulsar pessoas de alguns territórios.

  • Uma das evidências do chamado “terrorismo de barragens” é que, logo após Brumadinho, diversas mineradores tiveram o atestado de estabilidade dessas estruturas subitamente revogado, de modo que passaram a ser consideradas inseguras sem que houvesse uma reavaliação de seu estado.

  • Moradores têm sido acordados na madrugada com sirenes de emergência, mesmo sem provas de que a barragem estivesse a ponto de romper; os episódios começaram a ocorrer semanas após o desastre de Brumadinho, que matou 272 pessoas em 2019.

“Atenção, atenção! Isto é uma emergência! Atenção, atenção! Esta é uma situação real de emergência de rompimento de barragem. Abandonem imediatamente suas residências e indo (sic) pela rota de fuga até o ponto de encontro e permaneçam até que  sejam repassadas outras instruções.”

Foi com essa mensagem assustadora, bradada por alto-falantes – além de sirenes –, que os moradores dos povoados de Socorro, Piteira, Tabuleiro e Vila do Gongo, em Barão de Cocais (MG), a 94 km de Belo Horizonte, foram acordados às 4h da madrugada de 8 de fevereiro de 2019, duas semanas após o rompimento da Barragem de Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, que matou 272 pessoas.

A partir desse episódio, o físico Daniel Neri, doutor em Política Científica e Tecnológica e professor do Instituto Federal de Minas Gerais, no campus Ouro Preto, resolveu estudar e escrever uma tese sobre o que ele viria a chamar de “terrorismo de barragem”. “Trata-se de uma estratégia de ‘despossessão’”, diz.

Ele cita como exemplo o fato de que, logo após o rompimento da Barragem de Córrego do Feijão, subitamente empresas que prestam serviços para o setor de minério de ferro em Minas Gerais declararam que algumas barragens não tinham mais um documento chamado Declaração de Condição de Estabilidade (DCE), que atesta a estabilidade dessas estruturas.

“Ou seja, a DCE garantia que as barragens eram seguras”, explica Neri. “Aí, as certificadoras revogaram a DCE e as barragens passaram a ser consideradas inseguras. Com isso, as mineradoras poderiam usar essa suposta insegurança para aterrorizar os moradores. Com o agravante de que nem era a época estabelecida pela Agência Nacional de Mineração (ANM) para esse tipo de certificação. Esse foi um dos principais elementos que levou as pessoas a desconfiarem que aquilo era forjado.”

A ideia da pesquisa surgiu ao longo de 2019, quando ele tomou conhecimento da estratégia. “Divulgada inicialmente pelo Projeto Manuelzão, da UFMG, rapidamente verificamos que muitos moradores duvidavam dos verdadeiros riscos de algumas barragens colocadas subitamente em nível de risco, como a Sul Superior, em Barão de Cocais, e B3/B4, em Nova Lima [a 22 km de Belo Horizonte]”, conta.

O ponto de partida da tese foi um artigo, publicado em 2020 pelo geógrafo Klemens Laschefski, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O Daniel Neri fez uma disciplina comigo, na qual apresentei o meu trabalho sobre aquilo que chamei, em debates com ambientalistas, de ‘terrorismo de barragens’”, conta.

A origem do trabalho foram duas oficinas realizadas por Laschefski com pessoas removidas por causa de suposto risco de rompimento em Barão de Cocais (pesquisado posteriormente com mais profundidade por Daniel Neri) e em São Sebastião de Águas Claras, distrito de Nova Lima.

Para Laschefski, a tese do Daniel Neri é muito relevante, pois apresenta muitos elementos e dados empíricos que sustentam aquilo que ele formulou inicialmente como uma hipótese, consolidando assim o conceito. “Nesse sentido, o trabalho de Neri trouxe as evidências que consolidam a existência de uma estratégia empresarial para influenciar não apenas a população, mas também as instituições públicas e o judiciário por meio do medo”, diz. “A tese traz uma contribuição importante para entender a atuação das mineradoras no campo político.”

Vista aérea da barragem da Vale em Brumadinho (MG) após se romper, em 25 de janeiro de 2019. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Sirenes na madrugada

Neri diz que seu principal objetivo com a tese era demonstrar que algumas barragens foram colocadas em nível de risco de modo artificial, como forma de expulsar pessoas de alguns territórios. “Ao longo da pesquisa, outras perguntas surgiram, como, por exemplo, como é possível que as empresas possam subverter os processos legais de licenciamento e fiscalização dessas estruturas, em tantas instâncias (Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad), ANM, Poder Judiciário, Ministério Público?”, indaga. “Que articulação era essa que fez com essas empresas lograssem sucesso em seus objetivos corporativos?”

A principal conclusão, diz Neri, é que a Vale utilizou o expediente do terrorismo de barragens para garantir que pessoas fossem removidas das comunidades do Vale do Rio São João (Socorro, Piteira, Tabuleiro e Vila do Congo) em Barão de Cocais, para que ela possa executar um grande projeto de mineração da área, o Projeto Apolo.

Segundo ele, esse projeto, que a empresa tenta, agora em 2024, licenciar pela sexta vez, fica em volta dessas comunidades. “Desde 2020, a Vale começou a ceder seus direitos minerários para outras empresas, implementando um projeto que se chama ‘mini-minas’”, diz Neri. “Ou seja, ao invés de licenciar um grande projeto de mineração, licencia vários pequenos com empresas menores. E ela vem fazendo exatamente isso agora.”

Neri conta que a principal evidência da prática do terrorismo de barragem é o modo como se deram as remoções. “No caso de Socorro, a declaração de estabilidade da barragem Sul Superior foi retirada numa reunião no dia 7 de fevereiro de 2019 – 13 dias após o massacre em Brumadinho”, explica. “Na ocasião, foi decidido entre ANM, Semad, MP e Prefeitura de Barão de Cocais que as pessoas seriam removidas, mas não havia nenhuma anomalia, nenhum sinal de risco, nenhuma alteração na estrutura, e é a própria Vale diz isso seus informes.”

Para piorar, acrescenta, a remoção dos habitantes do local foi feita de madrugada, sob o som de sirenes e alto-falantes dizendo “atenção, esta é uma situação real de rompimento de barragem”. “Havia duas semanas que as pessoas viam, todos os dias na TV, a retirada de centenas de corpos de Brumadinho”, conta Neri “Aí, no meio da noite, tocam sirenes falando de um risco real, sendo que as remoções foram decididas de tarde. É evidente que usaram o terror da tragédia em Brumadinho para que as pessoas saíssem deixando tudo para trás.”

Obras do muro de contenção construído pela Vale para eventual rompimento da Barragem B3/B4 em Nova Lima (MG). Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A vida controlada pela Vale

Foi o que teve que fazer, mas por causa de outra barragem, a engenheira geóloga Ana Carla de Carvalho Cota, no dia 19 de janeiro de 2022. Eu morava na ‘zona de morte’ (Zona de Auto Salvamento – ZAS) da Barragem do Doutor, da Vale, em Antônio Pereira”, conta. “Ela foi elevada a nível 2 de emergência e a empresa anunciou que faria as remoções de forma preventiva de todos que moravam na ZAS. A lama chegaria na minha casa em seis segundos, caso a barragem rompesse.”

Cota e seus dois filhos, de 12 e 14 anos, e todos os vizinhos – cerca de 600 pessoas – foram removidos. Desde então, há dois anos e oito meses, a família mora num quarto do Hotel Providência, em Mariana (MG). “Na verdade, estamos sobrevivendo, sem as condições adequadas pra uma família e desenvolvimento saudável dos meus filhos”, reclama. “Não é um lar, não atende as necessidades básicas pra desenvolvimento saudável de duas crianças.”

Para ela, viver no hotel é viver numa prisão em regime semiaberto. “Eu tenho direito a sair, mas todos os dias tenho que voltar para dormir no hotel”, relata. “Minha vida é  controlada pela Vale, nossa alimentação diária é no hotel,  perdemos a autonomia da nossa vida. E isso é adoecedor. Até hoje, eu não sei o que será do meu futuro. Não recebi nenhuma indenização, não tenho mais casa própria, e tudo isso fica na invisibilidade. A Vale continua negando direitos.”

Se viver no hotel é ruim, na ZAS não era melhor. “Morar lá até a remoção causou danos irreversíveis à minha saúde”, conta Cota. “Pois o medo, o pânico de a barragem romper, principalmente nos períodos de chuva intensa, era o que chamamos de terrorismo de barragens promovido pela Vale no nosso território.  Eu fui diagnosticada na época com síndrome do pânico. Foram muitas crises, toda vez que chovia e eu estava em casa na ZAS eu tinha crise de pânico. Além disso, desenvolvi dermatite atópica por estar passando por longo período de estresse e comecei a ter hemorragia uterina.”

Lama decorrente do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG). Foto: Felipe Werneck/Ibama

Resposta da Vale

A Vale se posicionou por meio da nota abaixo, enviada por sua assessoria de imprensa à Mongabay:

A Vale informa que é infundada qualquer tentativa de atribuir à empresa a tese de usar de mecanismos como meio de obter qualquer tipo de benefício. A Vale atua de forma transparente, responsável e comprometida com a ética e o rigor à legislação.

A empresa esclarece que a descaracterização de estruturas construídas a montante no Brasil é um compromisso assumido pela Vale e que se tornou também uma obrigação legal. Desde 2019, das 30 estruturas previstas no Programa de Descaracterização, 14 já foram eliminadas, mais de 40% do total. Todas as barragens a montante da Vale no Brasil estão inativas e são monitoradas permanentemente. As ações implementadas nessas estruturas são objeto de avaliação e acompanhamento pelas equipes técnicas independentes, que fazem parte do Termo de Compromisso firmado.

 As comunidades de Barão de Cocais localizadas na Zona de Autossalvamento (ZAS) da barragem Sul Superior, citadas no estudo, foram evacuadas preventivamente após a elevação de nível da estrutura, com o objetivo de garantir a segurança da população. A estrutura está em processo de descaracterização e a previsão de conclusão é 2029. As famílias evacuadas firmaram acordos de indenização com a empresa ou estão em moradias escolhidas por elas próprias, com todas as despesas custeadas pela Vale.

Com relação ao projeto Apolo, também citado, a Vale esclarece que ele não está localizado no município de Barão de Cocais. O projeto está situado entre os municípios de Caeté e Santa Bárbara. Ele foi remodelado desde sua primeira versão em 2009, e foi desenvolvido ao longo da última década a partir da escuta ativa com comunidades e entidades ambientais.

Este novo projeto também é resultado de evoluções nas soluções de engenharia e reflete a nova forma de operar da Vale. O Novo Apolo não vai gerar rejeitos e não terá barragem ou outra estrutura para disposição de rejeito. A produção do minério de ferro será simplificada, com maior aproveitamento dos recursos minerais e sem a utilização de água no processo de produção.

O projeto Apolo está fora da área do Parque Nacional da Serra do Gandarela. Portanto, não irá interferir nos limites, nem nas cachoeiras do Parque. Da mesma forma, o empreendimento não afetará a disponibilidade de água na região, por estar localizado após o ponto de captação de água para Belo Horizonte e Região Metropolitana.

Adicionalmente, a empresa irá monitorar os cursos d’água e, caso seja verificada qualquer alteração, será feita a reposição conforme exige a legislação. Cabe esclarecer que a reposição da vazão será realizada com a mesma água do aquífero, sem alteração no volume ou na qualidade da água do curso d’água.

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