Diferentemente da Amazônia, onde a ilegalidade é regra, no Cerrado baiano é o desmatamento autorizado que mais preocupa pesquisadores e ambientalistas.
Livro indica que no Oeste da Bahia, onde avançam juntos o desmatamento e a fronteira agropecuária, a apropriação de água pelo agronegócio intensifica conflitos.
Pesquisadores consideram que o agronegócio brasileiro tem perfil de extrativismo agrário, modelo de altos impactos socioambientais e concentrador de riquezas, como o extrativismo mineral.
Intensificado desde 2010, o processo de flexibilização da legislação estadual tem contribuído para o avanço do desmatamento autorizado no Oeste da Bahia, onde municípios como São Desidério já despontam entre os maiores desmatadores do Brasil.
O cenário é apontado no livro Desmatamento e apropriação da água no Oeste da Bahia: uma política de Estado. A publicação sinaliza que, de setembro de 2007 a junho de 2021, as Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV) emitidas pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), que dispensavam o licenciamento ambiental para atividades agrossilvopastoris, possibilitaram o desmatamento de 992.587 hectares, equivalente a 32 vezes a extensão continental da cidade de Salvador.
Análises envolvendo 5.126 portarias de ASV e 835 portarias de Outorgas de Uso de Recursos Hídricos indicam que 80% das áreas de desmatamento autorizado se concentram no Cerrado baiano. As outorgas de água, emitidas de setembro de 2007 a setembro de 2022 na região, equivalem à captação diária de 17 bilhões de litros das bacias hidrográficas dos rios Grande, Corrente e Carinhanha. A vazão seria suficiente para abastecer, diariamente, sete vezes a população do estado da Bahia e nove vezes a da cidade de São Paulo.
Os dez municípios que mais desmataram com ASV são Formosa do Rio Preto, São Desidério, Jaborandi, Correntina, Cocos, Barreiras, Luís Eduardo Magalhães, Riachão das Neves, Baianópolis e Santa Rita de Cássia. O Cerrado baiano se insere na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), onde a expansão da fronteira agropecuária tem causado avanço acelerado do desmatamento.
O livro amplia e consolida resultados de estudo realizado desde 2019 por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Mãos da Terra (Imaterra), com apoio do WWF-Brasil e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). A publicação foi lançada em 5 de setembro, no evento “O Cerrado que queremos”, organizado pelo Observatório do Código Florestal (OCF) na Câmara Municipal de Barreiras, pólo agropecuário conhecido como capital da região e um dos municípios mais desmatados do estado. O OCF também promoveu a Expedição Cerrado entre 2 e 13 de setembro.
Mesmo com mais de 1 milhão de registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR), somando mais de 37 milhões de hectares, e 35% de solicitações de adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), pelo Termômetro do Código Florestal é alto o passivo da Bahia em relação ao cumprimento da Lei Nº 12.651 de 2012 que rege a conservação da vegetação nativa em propriedades privadas. Aproximadamente 397 mil hectares de reserva legal (RL) e 167,1 mil hectares de áreas de preservação permanente (APPs) precisam ser recuperados, equivalentes a oito vezes a área do município de Salvador.
Desvendando conexões entre Estado e agronegócio
“Pelas mudanças da legislação ambiental, o estado valida iniciativas que fortalecem o agronegócio na Bahia”, afirma a pesquisadora Margareth Maia, diretora do Imaterra e organizadora da publicação. “Isso tem tornando a Bahia uma referência nacional em retrocessos ambientais.”
A professora Blandina Viana, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), uma das autoras do novo livro e de outra publicação que analisa o desmatamento autorizado no Cerrado baiano, considera que os únicos beneficiados pelo agronegócio nos territórios são os proprietários de terras, sem que isso resulte em melhorias no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) local.
Ao defender a construção de uma política pública de agricultura familiar que valorize a sociobiodiversidade e os saberes ancestrais, a professora questiona “o porquê de haver mais apoio ao modelo agroexportador em detrimento da agricultura familiar”. Para ela, diante da crise climática, o país não tem outro caminho a não ser mudar esse velho paradigma.
A professora também ressalta que o agronegócio não pode ser compreendido como sinônimo de agricultura. Ela explica que em um sistema de produção se inserem a agricultura familiar, orgânica e agroecológica, os cultivos geridos pelas comunidades tradicionais, a permacultura, além da integração lavoura-pecuária, entre outros elos que, a partir de saberes e modos de vida de inúmeros grupos sociais, garantem produção agrícola e geram melhoria da qualidade de vida da população. “Estamos falando de sistemas diversos que se opõem à monocultura”, reitera.
Os estudos das organizações parceiras têm trazido novas perspectivas sobre a realidade do Cerrado baiano. “Antes se pensava que a degradação era causada pelo desmatamento ilegal”, observa a diretora do Imaterra. Nesse contexto, os recursos hídricos têm sido afetados, com riscos ampliados para reservas subterrâneas como as do aquífero Urucuia. A alta demanda por água pelo agronegócio tem ampliado conflitos com comunidades tradicionais, como ocorre no município de Correntina, inserido no Mapa de Conflitos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “O Cerrado é uma zona de sacrifício desmedido”, opina.
Para a professora da UFBA, interpretações equivocadas da sociedade também levam à desvalorização da importância da vegetação característica do Cerrado, formada principalmente por savana (a mais biodiversa do mundo) e campos diversos. Esses são ecossistemas fundamentais à proteção dos recursos hídricos de um bioma reconhecido como “caixa d’água do Brasil”, por abrigar nascentes de rios que alimentam oito das doze bacias hidrográficas brasileiras e grandes extensões de aquíferos como o Bambuí e o Guarani, além do Urucuia.
Marcelo Elvira, secretário-executivo do Observatório do Código Florestal, considera importantes as pesquisas realizadas. Para ele, a situação do Cerrado é arriscada “diante do agravamento da crise climática e seus impactos na oferta de água, proteção da biodiversidade e qualidade de vida da população”.
Como ameaça à governança e ao controle social, ele afirma ser preocupante a falta de transparência sobre dados relacionados às ASV regionais. E ressalta que grande parte dessas informações não vem sendo disponibilizada em sistemas públicos de consulta, percepção que reitera no prefácio do livro recém-lançado.
Segundo Elvira, o Oeste baiano é alvo de grilagem e violência praticada contra comunidades tradicionais. Frente às pressões existentes e pela importância ambiental do Cerrado, ele afirma ser preciso analisar qual seria o seu ponto de não-retorno, tal qual tem sido debatido em relação à Amazônia.
Ele defende que soluções para o Cerrado passam, necessariamente, pela implementação do Código Florestal e pelo fortalecimento da governança ambiental, contemplando “o respeito e o reconhecimento da importância dos saberes das populações tradicionais na conservação da natureza e no papel fundamental da sociobiodiversidade como elemento-chave para a sustentabilidade regional”.