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A ‘fungibilidade’ pode afundar mecanismo de financiamento da Convenção sobre a Biodiversidade, Decisão 15/9 (artigo)

Uma rã-folha-lêmure em Costa Rica. Foto: Rhett A. Butler/Mongabay.

  • São necessários bilhões de dólares para a conservação da biodiversidade, que poderiam ser financiados por meio do mecanismo multilateral de repartição de benefícios estabelecido na Decisão 15/9 da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica.

  • ‘Fungibilidade’ significa que o mecanismo a ser desenvolvido não deve financiar projetos que já seriam financiados de qualquer forma: em vez disso, os incentivos devem ser alinhados por meio de royalties derivados de biotecnologias baseadas na biodiversidade.

  • Bilionários não deveriam financiar discussões que silenciam a questão das rendas, pois ditas filantropias fazem mais mal do que bem pois tornam-se prejudiciais, argumenta um novo artigo de opinião: “A fungibilidade se torna um palavrão. tanto para o filantropo bilionário quanto para os atores envolvidos no ‘experimento de política’, ‘projetos de destaque’ ou qualquer que seja o eufemismo para vender a Decisão 15/9.”

  • Esta publicação é um artigo de opinião. As opiniões expressas aqui são as do autor, e não necessariamente representam as opiniões do Mongabay.

O senso comum é tudo, menos comum, é uma verdade universal. Os professores de economia frequentemente invocam o senso comum para explicar a alocação de recursos. O problema da fungibilidade é exemplar. Este termo esotérico vem das finanças e é sinônimo de “seleção adversa”: uma política econômica seleciona adversamente toda vez que os beneficiários tenham tomado o mesmo posicionamento, sendo assim  a ação é fungível e não deve ser financiada.

O senso comum para filântropos bilionários seria identificar um bem público que o Estado não teria financiado de outra maneira: propostas fungíveis não devem ser candidatas às generosidades privadas. Propostas não fungíveis na casa dos oito dígitos são muito menos numerosas do que o número de bilionários que agora habitam o Planeta Terra (cerca de 1.623, segundo a Forbes). Além da questão crucial das rendas econômicas, que foi abordada no meu comentário anterior para o Mongabay, o desenvolvimento de um “caso de demonstração” de US$ 250 milhões para a Decisão 15/9 da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB) parece atender o critério de fungibilidade.

Mas as aparências enganam.


Um calau-malhado-grande no Parque Nacional Kaeng Krachan, na Tailândia. Foto de tontantravel/Flickr.

Como exemplo não relacionado à biodiversidade, para tornar a seleção adversa e a fungibilidade menos abstratas, compare as emissões de carros de última geração com as de carros velhos e poluentes. A política federal dos EUA “Dinheiro por Sucata” (o programa CARS, para retirar veículos antigos e ineficientes das ruas) parece senso comum. No entanto, economistas demonstraram que metade dos veículos antigos teria sido descartada por seus proprietários de qualquer maneira. O “Dinheiro por Sucata” selecionou adversamente e a aposentadoria dos veículos era fungível. O governo federal teria gasto melhor os US$ 3 bilhões em outros bens públicos com mais redução na poluição do ar, como a interconexão de redes isoladas de ciclovias, embora a construção das redes tenha sido financiada publicamente, uma escala maior e maior interconexão não são fungíveis. Interesses pró-carros prevalecem nos EUA.

Filantropos de boa-fé deveriam financiar bens públicos não fungíveis. Ao fazer isso, no entanto, eles correm o risco de enfrentar a ira de lobbies poderosos e legisladores subordinados. Pensa-se no desprezo lançado sobre George Soros, que financiou a reforma da justiça criminal e a política de imigração, que são bens públicos essencialmente não fungíveis.A Seção 10 da Decisão 15/9 pode ser interpretada como um mandato para o apoio financeiro a projetos de conservação, reconhecendo que “os benefícios monetários e não monetários decorrentes do uso de informações de sequência digital sobre recursos genéticos devem, em particular, ser usados para apoiar a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica e, inter alia, beneficiar os povos indígenas e as comunidades locais.” Uma porcentagem significativa desses projetos de conservação será fungível e, portanto, pertencente à mesma classe de formulação de políticas do estilo “Dinheiro por Sucata”.

Dendrobium longicornu orchid flower.
Uma orquídea Dendrobium longicornu do Nepal. Imagem cedia por Kumar Paudel.

Um exemplo diretamente relacionado à biodiversidade pode esclarecer ainda mais o assunto. A migração do campo para a cidade criou demanda por restauração de bacias hidrográficas em muitas metrópoles. Pensa-se nas bacias hidrográficas de Pequim, São Paulo e Nairóbi, onde também vivem comunidades indígenas e locais. A restauração é um bem público de alta prioridade nacional, portanto, de acordo com a Seção 10 da Decisão 15/9, a restauração de bacias hidrográficas se qualificaria para apoio do fundo global do mecanismo. Mas a restauração precisa realmente de tal financiamento? Essa distribuição de recursos evitaria tantas extinções quanto, por exemplo, a proteção de hotspots de biodiversidade em áreas mais remotas e pouco povoadas da China, Brasil e Quênia? As respostas são, respectivamente, não e enfaticamente não. A Seção 10, assim, viola tanto a eficiência quanto a equidade, que são critérios da Seção 9. A filantropia de boa fé no desenvolvimento da Decisão 15/9 terá sido em vão.

Existe também filantropia de má-fé. Bilionários céticos veem a filantropia como um imposto, de facto, e não de jure. No desenvolvimento da Decisão 15/9, eles ignorarão cuidadosamente o problema da fungibilidade, junto com o restante relevante da economia. Tudo o que importa é que o imposto de fato seja menor do que o que pode se tornar o imposto de jure. Eles pensam que políticos socialistas estão incentivando taxar os bilionários até a sua extinção. O filántropo de má fé pensará, por que se preocupar com a devida diligência? Mais fácil despejar dinheiro em organizações de conservação renomadas e instituições de primeira linha, que farão o trabalho de relações públicas e manterão os socialistas à distância. A fungibilidade se torna um palavrão, tanto para o filántropo bilionário quanto para os envolvidos no “experimento de política”, “projetos emblemáticos” ou qualquer outro eufemismo para vender a Decisão 15/9. Os economistas são os estraga-prazeres.

No curto prazo, a biodiversidade precisa que as Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica não façam algo muito importante, ou seja, não abram estradas em florestas primárias, não represem rios e não drenem zonas úmidas. No longo prazo, a biodiversidade precisa de ‘Meia-Terra’, o chamado do famoso naturalista E.O. Wilson. São necessários incentivos para fazer a transição cultural, social e psicológica para um mundo de limites. A transição poderia ser financiada por meio da coleta e distribuição de rendas econômicas por meio de um Mecanismo Global de Repartição Multilateral de Benefícios, que é o Artigo 10 do Protocolo de Nagoia.

O senso comum vai convencer?

A lemur leaf frog in Costa Rica.
Uma rã-lêmure na Costa Rica. Foto: Rhett A. Butler/Mongabay.

A Decisão 15/9 impõe um ultimato na Seção 19 ao decidir “revisar a eficácia do mecanismo multilateral na décima oitava reunião da Conferência das Partes, incluindo, inter alia, os critérios estabelecidos nos parágrafos 9 e 10 da presente decisão.” Embora os economistas relutem em prever, eu prevejo que, sem rendas econômicas e o alinhamento de incentivos, a revisão da eficácia na COP18 será desastrosa.

A extinção terá continuado inabalável até a COP16 e COP17. Desencorajadas pela revisão na COP18, Partes usuárias e fornecedoras – quantas, não posso dizer – tomarão medidas para se retirarem da Convenção sobre Diversidade Biológica.

A retirada espera a COP19. Somente com rendas econômicas e incentivos para viver dentro dos limites, a tragédia poderá ser evitada.

Leia o comentário relacionado: Um bilionário financiará a biodiversidade? A Decisão 15/9 da CDB como uma potencial ‘mina de ouro’

 Joseph Henry Vogel é professor de economia da Universidade de Porto Rico-Río Piedras. Publicou amplamente sobre a Convenção sobre Diversidade Biológica e atuou como assessor da delegação equatoriana na COP2 e COP9. Artigo traduzido ao português por Camilo Gomides, professor de línguas estrangeiras na Universidade de Porto Rico, campus de Rio Piedras.

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