Em 2017, alguns moradores da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, começaram espontaneamente a cuidar de uma horta criada em um evento corporativo e depois esquecida.
Sem apoio contínuo do governo ou de empresas, a iniciativa se transformou em uma agrofloresta — um sistema agroecológico sustentável onde árvores frutíferas, arbustos, plantas medicinais e hortaliças são cultivados em conjunto para benefício mútuo —, inspirando mais de uma dúzia de projetos semelhantes na ilha.
Essas agroflorestas remodelaram a paisagem urbana local e agora atraem uma variedade de fauna, desde pássaros e abelhas até vagalumes, todos atraídos pela diversidade de plantas que prosperam em solos enriquecidos.
Talvez mais importante ainda, as agroflorestas oferecem alimentos e remédios gratuitos para moradores necessitados, além de sombra e oportunidades educacionais para toda a comunidade, de crianças a estudantes universitários e moradores.
RIO DE JANEIRO – Eu não sabia o que esperar quando cheguei ao Cocotá. A grande praça de 110 mil metros quadrados aterrada há mais de cinco décadas era bastante familiar. Tudo ali permanecia mais ou menos como eu me lembrava: das pistas de skate e quadras esportivas às calçadas e bancos de concreto. Tudo, exceto o pequeno e curioso agrupamento de árvores que eu vim visitar, que parecia mais uma pequena floresta do que um jardim construído pela prefeitura.
O Cocotá é um bairro da Ilha do Governador, uma ilha de 39 quilômetros quadrados no nordeste da cidade do Rio de Janeiro. Grande parte dela é ocupada pela Força Aérea Brasileira e pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim (vulgo Galeão), deixando cerca de metade de sua área para seus mais de 200 mil residentes. Eu era um deles alguns anos atrás, o que tornou o objeto da minha visita ainda mais surpreendente: nunca esperaria que uma agrofloresta — onde árvores, arbustos e plantas anuais úteis para a população humana são cultivados juntos em um sistema que fornece frutas, vegetais e habitat para animais — surgisse bem no meio da minha cidade.
Meus anfitriões estavam aproveitando a sombra daquela floresta em miniatura. Victor Huggo, um arquiteto local, levantou-se das raízes de uma árvore de jambolão (Syzygium cumini) para me cumprimentar. À sua frente, Lucas Marques, estudante de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estendeu a mão. Ambos moraram na Ilha do Governador por muitos anos, e nenhum dos dois era o tipo de pessoa que se esperaria ver cuidando de uma pequena agrofloresta em uma praça pública. Mas essa é justamente a ideia por trás de toda a iniciativa.
A Agrofloresta do Cocotá nasceu da vontade de alguns membros da comunidade insulana e, há sete anos, vem crescendo em um solo inicialmente pobre, sem nenhum tipo de apoio governamental ou corporativo, em meio à selva de concreto da segunda maior cidade do Brasil. Essa ideia inusitada agora está se espalhando, inspirando mais de uma dúzia de outras agroflorestas e hortas agroecológicas por toda a ilha, mas sua gênese é talvez o aspecto mais surpreendente de sua história.
Vegetais e sementes de girassol
Em 2017, a TV Globo promoveu um evento na Ilha do Governador, buscando integrar artistas locais e estimular mais projetos culturais na região. Dançarinos, músicos, professores de yoga, grupos de teatro, artistas marciais e muitos outros se reuniram no Cocotá para o festival e, entre as atividades programadas, estava a criação de uma pequena horta comunitária liderada por um agricultor orgânico chamado Pedro Vettorazzo, mas plantado pela própria comunidade.
“Acho que estava passando com a minha mãe, aí a gente se envolveu e começamos a cavar lá”, diz Paulo Randall, um skatista local que costumava frequentar a praça. “A terra daquele lugar era muito dura.”
Ao final daquele dia, alfaces, salsinhas, cebolinhas e couves foram plantadas, mas o envolvimento da Globo com o jardim terminou assim que as festividades acabaram, deixando seu destino nas mãos dos moradores.
Randall foi um dos primeiros membros da comunidade a começar a atuar em prol da horta e a adicionar mais coisas a ela. Tendo algumas sementes de girassol germinadas sobrando em casa — restos de uma dieta saudável —, decidiu plantá-las na horta.
As flores se adaptaram bem ao novo ambiente e começaram a chamar a atenção dos moradores, especialmente os mais velhos. Ao ver Randall cuidando diariamente da nova e colorida horta, as pessoas começaram a oferecer mais plantas para ele.
Logo outros moradores, como Victor Huggo e Marques, também se envolveram no plantio, poda e rega. No entanto, no começo, seus cuidados não seguiam nenhum método específico, e o solo pobre e aterrado da praça se mostrou um obstáculo para seus esforços.
Mas, à medida que estudavam mais e eventualmente entravam em contato com estudantes da UFRJ que participavam de projetos agroecológicos na universidade, um tipo muito específico de agricultura começou a tomar forma.
Floresce uma agrofloresta urbana
Agroflorestas são uma prática agroecológica que integra árvores — muitas vezes frutíferas ou medicinais — com o plantio de outras plantas alimentícias ou criação de animais. A prática se baseia diretamente em conhecimentos do manejo florestal e na teoria da sucessão ecológica, que observa como as comunidades de plantas mudam ao longo do tempo; ou, mais precisamente, como certas espécies, ao colonizarem uma nova área, transformam as condições locais de modo a permitir que outras espécies sobrevivam ali.
Em 2017, nenhum dos que agora me recebem para conhecer seu projeto comunitário sabia exatamente o que era uma agrofloresta ou como ela deveria funcionar.
“Durante o processo de trabalho, individualmente, cada um estudava”, lembra Victor Huggo. Aos poucos, aprenderam um pouco mais com livros, filmes, artigos e com a própria prática.
“A horta foi uma escola”, diz Marques, que também teve a oportunidade de interagir com projetos agroflorestais acontecendo na UFRJ. “Muito do nosso conhecimento, e das nossas plantas, veio da universidade.”
Agora, sete anos depois, esses agroflorestores autodidatas estavam me ensinando como usar chayas (Cnidoscolus aconitifolius), margaridões (Tithonia diversifolia) e feijões-guandu (Cajanus cajan) como adubo verde. Essas plantas ajudam a acumular matéria orgânica e a estruturar o solo, além de enriquecê-lo com nitrogênio. Picar as bananeiras após elas darem fruto também é uma técnica que ajuda a manter a umidade local do solo, e adicionar restos de outras podas à mistura torna o solo mais rico para árvores frutíferas.
Hoje, bananas, jambolões, acerolas, ora-pro-nóbis e muito mais crescem em uma área de cerca de 558 metros quadrados. Mas mesmo com seus métodos se tornando mais sofisticados, a iniciativa nunca abandonou suas raízes ideológicas.
Todos os membros da comunidade são bem-vindos para sujar as mãos de terra, aprender como a agrofloresta funciona e, talvez o mais importante, colher o que está sendo produzido. Qualquer um pode se servir dos alimentos e plantas medicinais da agrofloresta e, ao longo do ano, várias pessoas — especialmente aquelas em necessidade — coletam feijões-guandu, abacates, graviolas e outros produtos cultivados localmente.
“Diariamente, tem uma rotatividade de pessoas vindo aqui e consumindo coisas”, diz Victor Huggo.
Raízes em expansão
“Tudo germinou aqui”, diz Jefferson José Nogueira, conhecido localmente como Jack, referindo-se à Agrofloresta Cocotá, enquanto caminhávamos da praça até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) a apenas 200 metros de distância, situada entre a agrofloresta e a Baía de Guanabara. Ele está envolvido na iniciativa desde os primeiros meses e, há cerca de três anos, assumiu a liderança em um dos muitos desdobramentos do projeto.
“A gente chegou aqui nesse espaço e ele era assim, só mato”, ele diz. Em 2021, ele liderou um esforço para iniciar outra agrofloresta dentro da UPA, com uma área semelhante ao lote original do Cocotá.
Olhando ao redor, parecia incrível que o projeto tenha começado há apenas três anos: bananas, maracujás, mamões, goiabas, urucuns (Bixa orellana) e moringas (Moringa oleifera) já estavam crescendo bem no lote da UPA. Graças ao fácil acesso à água vinda da unidade — um privilégio que a floresta original não tinha — o terreno possui uma horta vertical e um mudário. Há também cadeiras e uma mesa à beira da baía para que os funcionários da UPA possam desfrutar de seus intervalos de almoço ao ar livre, cercados pelo mar e pelas árvores. Em breve, quando o terreno tiver mais sombra e um solo mais rico, Nogueira planeja plantar cacau e juçara (Euterpe edulis).
Assim como na praça do Cocotá, Nogueira começou a plantar na UPA sem nenhum apoio, mas, recentemente, após uma mudança na administração do centro de saúde, a nova diretora da unidade se encantou com a iniciativa e contratou Nogueira para cuidar dela.
E agora, outras duas agroflorestas estão sendo cultivadas por um trabalhador da UPA em outro bairro da Ilha do Governador chamado Ribeira. Colaborador de longa data da iniciativa agroecológica, Alexandre Henrique decidiu replicar tudo o que aprendeu no Cocotá no quintal de sua própria casa.
“Teve uma situação em algum momento da minha vida em que eu estava mal, e eu vinha pra cá [para o Cocotá] e eu comia acerola, comia folha de ora-pro-nóbis, e eu conseguia passar a manhã”, ele diz. A lembrança o levou a iniciar uma nova agrofloresta em um terreno abandonado em frente à sua casa.
“Eu lembro de uma época que tivemos o primeiro pé de feijão-guandu e a gente viu uma família colhendo ele e falando que era o que alimentava eles no norte do Brasil”, ele diz. Segundo Henrique, todos deveriam ter acesso a alimentos cultivados nas ruas. “Eu não colho nada em frente à minha casa. Eu planto exatamente para as pessoas terem consciência de passar ali, olhar e quando estiver maduro, pegar”, diz.
Outros efeitos dessas iniciativas também chegaram às escolas locais. Em 2019, no colégio público Sun Yat Sen, localizado no bairro do Tauá, a coordenadora pedagógica Gabriela Sinhorelo — junto à diretora Márcia Paghetti e à adjunta Márcia Simões — iniciou outro projeto agroflorestal com estudantes da UFRJ que participavam do Capim Limão, um dos projetos agroecológicos da universidade. Segundo ela, eles “têm feito um trabalho de alfabetização ecológica”.
Nos últimos cinco anos, as crianças participaram da criação de um jardim suspenso, de uma espiral de ervas, de um pequeno pomar e do plantio de diferentes plantas alimentícias não convencionais (as chamadas PANCs). Sinhorelo diz que as plantas já melhoraram a sensação térmica em algumas partes da escola, mas acrescenta que a agroecologia mudou mais do que o clima local e a paisagem: ela transformou a mentalidade e a perspectiva de todos os envolvidos no projeto.
Refaunando a paisagem urbana
Isabela Maciel é a única integrante ativa da iniciativa do Cocotá com vínculos acadêmicos formais. Ela está tentando entender como a diversidade de abelhas responde às mudanças na paisagem urbana.
“A gente quer entender como é que a paisagem afeta a biodiversidade nesses agroecossistemas”, ela diz. Sua pesquisa de mestrado mapeou 18 diferentes áreas agroecológicas na Ilha do Governador, principalmente em escolas e espaços públicos.
Maciel se envolveu com a iniciativa em 2018, ainda como graduanda, e também trabalhou junto com Nogueira na agrofloresta da UPA em 2022. Seu trabalho anterior investigava a relação entre abelhas e cafeeiros em dois outros municípios do estado do Rio de Janeiro, mas sua pesquisa na ilha ainda está no começo.
Sua experiência pessoal com a agrofloresta despertou sua curiosidade científica. “A gente começou a ter bastante [espécies diferentes de abelhas] conforme foram passando os anos”, ela diz, além de pássaros. “Quando eu cheguei aqui, realmente não tinha muitas árvores, e [os pássaros] não ficavam muito ali. Mas, conforme as árvores foram crescendo, a gente viu muito bico-de-lacre (Estrilda astrild), maritaca (Pionus sp.), tesourinha (Tyrannus savana) e mais.”
Maciel não está sozinha em suas observações. Segundo o estudante de Geografia Marques, especialmente nos primeiros anos da Agrofloresta do Cocotá, houve uma sucessão de espécies de insetos acompanhando o crescimento das plantas que cultivavam.
“No começo, as saúvas dominam porque elas adoram solo degradado”, ele diz. “Mas, conforme o solo vai melhorando, as saúvas não conseguem mais sobreviver e novas espécies de formigas, incluindo algumas carnívoras, começam a aparecer.”
Mas as formigas não foram as únicas recém-chegadas. “Ao transformar uma horta em um sistema agroflorestal, você vê diferentes bichos aparecendo em ciclos. Teve um tempo que apareceu aranhas, gafanhotos coloridos, muitos pássaros e cigarras. É muito legal ver essa diversidade e como cada um contribui para o equilíbrio”, diz Marques.
“O dia [que apareceu] vagalume foi mágico demais, pois é algo muito raro aqui na cidade”, lembra ele.
Experiências semelhantes parecem ocorrer em cada agrofloresta e horta agroecológica. Durante minha curta visita à UPA, Nogueira também mencionou que, após o crescimento das árvores plantadas, muitas aves passaram a visitar o pátio do centro de saúde todas as manhãs. Abelhas também são visitantes frequentes, e ele aproveitou para me mostrar algumas das armadilhas que Maciel instalou na área. No Sun Yat Sen, segundo a professora Sinhorelo, as joaninhas são as estrelas do show.
“Em épocas quando o feijão-guandu floresce, nós temos abelhas de tudo quanto é jeito e joaninhas”, ela diz. “É a coisa mais linda. As crianças andam com joaninhas na mão.”
Além da Ilha do Governador
O Rio é uma metrópole relativamente verde, com duas das maiores florestas urbanas do mundo — o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca — e uma boa quantidade de áreas vegetadas menores. Isso significa que, apesar de todo o concreto, a cidade ainda sustenta uma fauna rica de aves e insetos, que podem ocupar mais espaços como as agroflorestas, à medida que se tornam convidativos.
E as iniciativas agroflorestais urbanas no Rio não se limitam à ilha: outras agroflorestas estão localizadas no campus da UFRJ e em bairros como Urca, Maracanã, Penha e outros, na maioria das vezes mantidas por estudantes e pessoas dispostas a tornar a cidade mais verde e a melhorar o acesso a alimentos para quem precisa.
Assim, graças à força desses simples objetivos, mesmo com recursos incrivelmente limitados, várias pequenas agroflorestas prosperam na cidade.
Como Nogueira disse enquanto saíamos da UPA, “Quando você não tem essa relação com o solo de exploração econômica, é muito diferente como você cuida dele. Você planta as coisas que você quer de verdade ver no futuro, que você quer que as suas filhas e netos possam usufruir”.
Citação:
Kempf, A. B. (2022). Agroflorestas urbanas como apropriação de espaços livres públicos da cidade: Um estudo de caso da Agrofloresta do Cocotá. Monography. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro.