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Comunidades do Acre vivem drama com falta de água potável na seca amazônica

Rio Acre, em 24 de julho de 2024, registrou a menor cota para o período dos últimos 5 anos. Foto: Felipe Freire

  • A população da capital Rio Branco e região passou por uma enchente no início do ano e agora sofre com a escassez de água devido à seca severa.

  • A Defesa Civil instalou caixas d’água para moradores de comunidades rurais da capital, mas o abastecimento ainda é insuficiente.

  • Depois da seca extrema de 2023, a Amazônia se prepara para uma nova estiagem, que já vem dando sinais que pode superar a crise do ano passado.

RIO BRANCO, Brasil — Rosineide de Lima, moradora da comunidade do Panorama, em Rio Branco, enfrenta uma luta diária pela sobrevivência em meio à seca severa que atinge a capital do Acre e a região. Em sua casa, onde vivem sete pessoas, o racionamento de água é uma realidade constante.

“O meu poço seca mesmo em agosto”, ela disse à Mongabay, preocupada com a saúde dos cinco filhos. “Por enquanto, ainda estou conseguindo tirar um pouco de água dele para lavar roupa uma vez na semana e fazer as coisas de casa, mas para beber comecei a comprar água mineral desde que meus filhos começaram a ter problemas de saúde, como desidratação.”

Após viver uma seca extrema em 2023, a Amazônia já vem sentindo sinais de uma nova estiagem neste ano. Segundo especialistas, a seca de 2024 pode ser ainda pior. A estiagem já atinge 69% dos municípios da Amazônia, uma alta de 56% em relação ao mesmo período do ano passado.

Ao todo, a comunidade de Panorama, na zona rural de Rio Branco (AC), tem cerca de 700 famílias. Foto: Tácita Muniz

Panorama, localizada a pouco mais de 6 km do centro de Rio Branco, é uma das 31 comunidades rurais severamente afetadas pela seca que assola o estado. Embora fique a 800 metros das margens do Rio Acre, a comunidade não usa o poluído rio para abastecimento. As 700 famílias do local não têm água encanada e dependem de poços artesianos, que estão secando devido à baixa do lençol freático.

A seca atual é uma das mais graves já registradas no estado, com o Rio Acre atingindo, em julho, a menor cota dos últimos cinco anos: 1,55 metro.

Desde 14 de junho, o nível do rio se mantém abaixo de 2 metros, o que levou a Defesa Civil Nacional a reconhecer a situação de emergência em Rio Branco em 24 de julho. Além disso, um decreto de emergência ambiental foi emitido para os 22 municípios do Acre, com previsões de agravamento nos meses de agosto e setembro. O impacto dessa seca, considerada atípica pela Defesa Civil Municipal, vai além do ambiental, afetando profundamente a vida das pessoas.

Para mitigar os efeitos da seca, a Defesa Civil Municipal instalou 19 caixas d’água em pontos estratégicos, abastecidas por carros-pipas. No entanto, com os poços secando, a demanda por essa água excede a oferta, e o transporte da caixa até as casas muitas vezes é feito manualmente, com baldes. “São muitas famílias que se servem dessas caixas, então precisamos controlar porque não tem como atender toda a nossa necessidade”, diz Lima. “O que priorizo é comprar galão com água para beber porque água é tudo, é vida.”

Rio Acre, em 24 de julho de 2024, registrou a menor cota para o período dos últimos 5 anos. Foto: Felipe Freire

Francisco Rodrigo de Oliveira, outro morador de Panorama, também sente os efeitos da seca. No final de julho, ele enchia uma caixa com a água que recolhia manualmente de balde em balde. “Sofrer com a falta de água é sentir falta de tudo”, ele disse à Mongabay. “Se falta água em uma casa, falta tudo. Comprar nem sempre dá certo, porque não é todo dia que a gente tem dinheiro, então a gente vai fazendo o que dá.”

Isandra Nascimento mora na comunidade há 13 anos e diz que já se acostumou a usar o mínimo de água para não faltar em nenhum momento. Mesmo com a mobilidade limitada após perder a perna em um acidente de trânsito, ela relata que já chegou a levar roupa para lavar na casa de uma amiga porque não tinha água em sua caixa.

“Somos seis pessoas dentro de casa, então a gente precisa regrar porque senão a água não dá pra nada”, ela disse à Mongabay. “Minha filha, muitas vezes, quando sai do trabalho vai na casa da sogra, toma banho e lava a roupa dela lá pra poder poupar a água que conseguimos reservar aqui.”

A aposentada Ivone da Silva também compartilha a sensação de que a água se tornou um luxo. “Meu sonho é voltar a ter água jorrando, não para estragar, mas para que a gente não fique mais sem, porque água é tudo na vida da gente”, disse, enquanto mostrava como faz para lavar a louça de casa e armazenar água, que já está abaixo da metade do recipiente que usa como apoio.

O vaqueiro Sebastião Matos, que trabalha em uma das fazendas da comunidade, enfrenta dificuldades adicionais. Sem um poço nas terras onde vive, ele depende do abastecimento irregular da Defesa Civil. “No inverno, a gente pega água da chuva ou em algum poço mais perto; agora, com uma seca dessa, a gente depende desse abastecimento pontual da Defesa Civil”, disse à Mongabay. “Mesmo assim é bem complicado, porque não atende a tudo que a gente precisa. Temos que tomar banho, cozinhar, beber, e tem o gado e as plantações, que sofrem também com essa seca.”

Sem poço próprio, Sebastião Matos depende da Defesa Civil para obter água. Foto: Tácita Muniz

Ciclos extremos

Em menos de um ano, o Acre sofreu com os extremos dos eventos da já conhecida sazonalidade da região. Durante o “verão amazônico” (de julho a novembro), que tecnicamente ocorre entre o outono e o inverno brasileiros, o bioma tem altas temperaturas e seca. No “inverno amazônico” (de dezembro a junho), quando o resto do país vive o verão e o outono, a região passa a ter o maior volume de chuvas e rios cheios.

Em março, o Rio Acre, na capital, registrou a segunda maior enchente desde 1971, quando os rios passaram a ser monitorados no estado. O nível chegou a 17,89 metros, e o evento chegou a ser considerado, proporcionalmente, o maior desastre ambiental do estado.

As queimadas também preocupam. Neste ano, o Acre teve 740 focos de incêndio, 96% a mais que em 2023, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Eventos extremos têm se tornado cada vez mais comuns no Brasil, e, segundo Carolina Accorsi Montefusco, engenheira civil e técnica do Laboratório de Hidráulica e Saneamento da Universidade Federal do Acre (Ufac), que pesquisa o impacto desses eventos na população acreana, uma estiagem como a registrada este ano afeta drasticamente a vida de todos da comunidade.

“Com menos precipitação, a água disponível para infiltrar no solo e reabastecer é drasticamente diminuída”, ela disse à Mongabay. “Isso resulta em uma queda no nível do lençol freático, tornando os poços menos produtivos ou completamente secos. A seca prolongada pode fazer com que poços mais rasos sequem, ou seja, o nível do lençol freático cai abaixo da profundidade do poço. Isso exige a perfuração de poços mais profundos, o que é caro e tecnicamente mais complexo”, disse, ao explicar o motivo de comunidades como o Panorama serem as mais afetadas com essa estiagem.

A pesquisadora ressalta, ainda, que para mitigar os impactos é crucial que as autoridades locais e a comunidade científica no Acre permaneçam em monitoramento contínuo desses padrões e desenvolvam um planejamento adequado para enfrentar as consequências dessas variações climáticas.

“Uma opção é a construção de reservatórios que possam ser usados tanto para controle de enchentes quanto para armazenamento de água potável durante períodos de seca. Esses reservatórios ajudam a regular o fluxo dos rios, diminuindo o risco de inundações e armazenando água para uso posterior. Essas medidas, entre outras, não só ajudam a proteger as comunidades contra os riscos de inundações e secas, mas também promovem a resiliência hídrica e a sustentabilidade a longo prazo”, sugere.

Com seca do rio, água entregue pelo poder público precisa atender toda comunidade. Foto: Tácita Muniz

De forma unânime, os moradores concordam que a solução para que essa realidade mudasse seria a recuperação de reservatórios de água que já possuem na comunidade, mas estão contaminados com o despejo do esgoto. Outra solução dada pela comunidade é a escavação de poços mais profundos para garantir que eles não sequem.

Já Rosineide Lima completa que o alto custo para a escavação do poço impede que mais moradores tenham acesso à água. “Os nossos poços são mais rasos, porque um poço profundo exige uma estrutura diferente e sai muito caro.”

À Mongabay, a associação dos moradores do bairro informou que tem mantido um diálogo com a Prefeitura de Rio Branco em busca de mapear, pelo menos, dois pontos para a perfuração de poços mais profundos, que possam atender a população.

Irving Foster Brown, cientista ambiental do Woodwell Climate Research Center, também aponta a complexidade da situação. Ele explica que a alternância entre os fenômenos El Niño e La Niña, respectivamente o aquecimento e o esfriamento anormal das águas do Pacífico equatorial, contribui para esses eventos extremos, entre outros fatores. O El Niño ocorreu em 2023 e será substituído por La Niña neste ano. “A seca é mais fácil de prever do que a cheia”, disse Brown à Mongabay. “A mudança na distribuição de correntes no oceano afeta o que acontece na área terrestre, então essas variações afetam o clima também.”

Um relatório da World Weather Attribution (WWA), feito por uma equipe de cientistas climáticos internacionais que analisa eventos climáticos extremos, concluiu que o aquecimento global foi o principal responsável pela grave seca que assolou a bacia do Rio Amazonas em 2023. O El Niño, um fenômeno climático natural que há muito se suspeitava ser um dos principais causadores da seca, teve um papel muito menor, de acordo com a WWA.

A combinação de pouca chuva e alta evaporação desencadeou o que os autores classificaram como uma “seca agrícola” excepcional. Essa condição se tornou 30 vezes mais provável devido ao aquecimento global, o relatório concluiu. Este ano, com a previsão de instalação do fenômeno La Niña a partir de agosto, a seca pode não alcançar níveis tão baixos, mas a falta de chuvas continua preocupante.

Francisco de Oliveira diz que, sem água em casa, falta tudo. Foto: Tácita Muniz

Apesar das chuvas que restauraram a navegabilidade e reconectaram as comunidades isoladas pela seca histórica de 2023, os rios em todo o bioma estão em níveis mais baixos agora do que no mesmo período de 2023. Em junho, o nível do Rio Madeira recuou 3 metros em duas semanas, atingindo 4,15 m no dia 19, o nível mais baixo em 2024.

Até agora, os estados amazônicos não registraram chuvas suficientes para indicar mudanças promissoras. Em Rio Branco, choveu 1,20 milímetro até o final de junho — pouco, perto dos 60 mm esperados para o período.

O coordenador da Defesa Civil de Rio Branco, tenente-coronel José Glacio de Souza, ressalta que o baixo nível registrado no Rio Acre em julho já é considerado atípico para o período. “Não temos previsão de chuva, e o que nos chama atenção é que o rio atingiu uma cota de 1,55 metro em julho, quando esses níveis são comumente registrados em outubro, como mostra o histórico das menores cotas,” ele disse à Mongabay. “Por isso, já consideramos um evento atípico porque a previsão é que, sem chuvas, o rio vá secando cada vez mais.

Imagem do banner: O Rio Acre, em 24 de julho de 2024, registrou a menor cota para o período dos últimos 5 anos. Foto: Felipe Freire

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