O município de Gilbués, no sul do Piauí, é uma das quatro zonas críticas em processo de desertificação no Brasil; são 805 km2 de Caatinga degradada, afetando cerca de 149 mil pessoas.
Em 2006, um programa pioneiro do Governo Federal aplicou tecnologias para controle de degradação e recuperação das áreas degradadas no solo desertificado de Gilbués, o que tornou possível o cultivo de alimentos.
O programa foi descontinuado em 2016 por razões obscuras, mas permanece entre os produtores o legado de transformação da terra em Gilbués, hoje um dos maiores produtores de milho do estado.
Quando enxergou pela primeira vez os chapadões de Gilbués, no sul do Piauí, José Rodrigues do Santos não imaginou que iria morar ali o resto de sua vida. Ele precisou caminhar aproximadamente 20 quilômetros do lugar onde nascera, junto com sua família, para chegar à sede do município de Gilbués, cruzando o mar vermelho de terras desertificadas.
Esse ambiente avermelhado cria um cenário que só estamos acostumados a ver nos filmes de ficção científica. Mas, ao olhar mais cuidadosamente, conseguimos enxergar bolsões verdes nesse mar de terra crua.
“A terra precisa de carinho igual gente. Ela também é viva”, afirma Zé Capemba, como é mais conhecido na região. Ele relata as dificuldades em manejar o solo seco e relembra a necessidade de buscar água distante para os afazeres básicos do dia a dia, mas confessa que hoje as coisas estão muito melhores do que há alguns anos. “O poço de água e a tecnologia melhorou muito a vida aqui para a gente”.
Gilbués está localizada em uma das quatro principais zonas em processo de desertificação reconhecidas pelo Governo Federal em todo o país, todas no semiárido nordestino. No Piauí, são 805 km2 de Caatinga degradada que alcança 14 municípios e uma população de aproximadamente 149 mil pessoas.
O leito do riacho Gameleiro, que passa dentro da propriedade de Zé Capemba, teve o seu curso alterado devido às voçorocas, grandes sulcos formados na terra a partir de processos intensos de erosão.
A chuva é um dos principais fatores para esse processo. Devido ao ambiente já estar naturalmente fragilizado, o impacto da chuva em excesso e a enxurrada escorrendo pelo solo arrastam os nutrientes, provocando assim a perda da qualidade da terra e agravando as erosões. “A força da água, aqui, exerce um processo de erosão sobre o solo, que eu chamo de erosão hídrica”, afirma Dalton Macambira, professor da Universidade Federal do Piauí.
A região possui características naturais de clima, relevo e solo propícias à degradação, mas foi a ação do homem, sobretudo associada ao desmatamento para pecuária e uso da madeira, a responsável pelo agravamento acelerado da desertificação. Mas, ao contrário do que pode parecer, aqui se produz vida.
Oásis em terras avermelhadas
Foi correndo atrás de boi que o vaqueiro Zé Capemba criou os dez filhos junto com sua esposa, Zilmar Barbosa dos Santos. Sua terceira filha, Maria Lúcia, é casada com o agricultor Francisco Washington Junior, responsável por um oásis nessas terras avermelhadas.
Sua propriedade produz alimentos de qualidade que vão para a mesa das pessoas. Todo dia pela manhã há colheita de alface, cenoura, alho, cebola, milho, feijão, entre outros. “Aqui era muito difícil de trabalhar. Quando eu cheguei nessa terra ninguém acreditava que eu iria conseguir plantar e hoje, olha só! Todo dia eu venho aqui e consigo tirar alimento para minha família e para vender”, diz Francisco.
O genro de Zé Capemba é responsável por transformar uma área de 15 hectares. Antes da sua chegada à região das Malhadas, como é conhecida, a terra era muito desvalorizada pela falta de vegetação, enormes voçorocas e a crença de que, por isso, aquele solo era pobre em nutrientes.
Na verdade, o que faltava era o manejo adequado. Segundo Fabriciano Neto, mestre em solo e nutrição de plantas, o solo litólico, típico das Malhadas, é rico em fósforo e pobre em nitrogênio. Sabendo compensar essa característica, a produção acontece. “A parte química deste solo é rica; o que falta é a parte física, com máquinas que possam otimizar o trabalho do agricultor e a assistência técnica especializada para trabalhar na terra”.
Ao caminhar pela propriedade, Francisco aponta para os locais indicando quais ações ele tem feito para melhorar o desempenho na área. Além de plantar árvores dentro das voçorocas, para ajudar a conter a erosão do solo, ele também criou barramentos para ajudar a nivelar o terreno e diminuir as depressões dentro de sua área. Com o tempo, ele vai ganhando áreas mais niveladas para os cultivos agrícolas.
Outra técnica que tem usado bastante é a silagem, para preservar as características do milho por mais tempo e alimentar os bovinos. Um trator colhe e tritura o milho, e depois essa massa vegetal é coberta por uma lona e uma camada de terra. Assim, mesmo na época seca, é possível garantir alimento de qualidade, rico em nutrientes para os animais.
Agricultura possível
Nem sempre foi possível fazer agricultura com qualidade em Gilbués. Foi através de um projeto do Ministério do Meio Ambiente, lançado com o objetivo de realizar medidas de combate à desertificação, que Francisco e outros agricultores locais tiveram contato com técnicas e ferramentas modernas para manejar o solo e poder desenvolver sua agricultura.
O Núcleo de Pesquisa de Recuperação de Áreas Degradadas e Combate à Desertificação (Nuperade) chegou em Gilbués em 2006 e inaugurou uma parceria inédita entre agricultores, técnicos e pesquisadores.
O município nordestino foi o único a receber o programa, que funcionou até 2016, com ações de estudos e testagens de tecnologias para controle de degradação e recuperação das áreas degradadas. O núcleo integrava as ações do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil).
Sede do Núcleo de Pesquisa de Recuperação de Áreas Degradadas e Combate à Desertificação (Nuperade) em Gilbués (PI), fechada desde 2016. Foto: Rafael Martins
“Nós melhoramos mais de 1.000% desde 2006”, diz Francisco. “Tudo que estou fazendo aqui eu aprendi no Nuperade, mas sempre melhorando as técnicas. Nós saímos de 20 sacas de milho por hectare em Gilbués para 120 sacas por hectare. Hoje eu posso dizer que nós somos uma das principais cidades produtoras de milho do Piauí.”
Os motivos que levaram à descontinuação do Nuperade são desconhecidos. No mesmo ano de 2016 houve o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a troca de alguns ministérios, inclusive do Meio Ambiente. Saiu Izabella Teixeira, que ocupava o cargo desde 2011, para a entrada de Sarney Filho.
Segundo José Marlos, assessor da prefeitura de Gilbués, existem algumas perspectivas de retomada de atividade na sede do Nuperade, situada na zona rural do município, como o projeto de biofertilizantes e as visitas de alguns alunos membros da ONG S.O.S. Gilbués, que recebem orientação sobre as experiências que aconteciam no local. A equipe da Mongabay esteve na sede do projeto, que estava fechada, com aspecto de abandonada e com animais dentro do terreno.
Os frutos do projeto
Foi por influência do amigo Francisco que Absalão Teles da Silva Neto também adquiriu um terreno nas Malhadas para plantar milho e criar alguns animais. “A vantagem das Malhadas é que nós já encontramos a terra desmatada. Então é só colocar a máquina para trabalhar. Com o conhecimento e a experiência adquirida no Nuperade ficou mais fácil produzir aqui, mas precisa ser mecanizado, no braço ninguém aguenta”.
A propriedade de Absalão fica em uma das regiões mais críticas da desertificação em Gilbués, e o trajeto até sua residência se destaca pelo caminho verde em um cenário completamente seco. Mesmo assim, Absalão afirma que valeu muito a pena adquirir a propriedade nas Malhada,s pois a região é atualmente muito produtiva.
Já Enias de Carvalho Neto colocou em prática outra experiência do Nuperade: produzir tanques para criação de peixes dentro das enormes depressões feitas pela erosão do solo. Enias é proprietário de um açougue e diz que a procura pelo peixe também é grande. “O sucesso é mesmo na Semana Santa, aí não tem para quem quer, mas todo dia tem alguém procurando peixe”, diz Enias.
Ele possui dois tanques de aproximadamente 100 metros de largura e cria uma espécie chamada “tambatinga”, cruzamento entre o Tambaqui e a Piratinga. Ele afirma que os peixes dele são “caipiras” pois recebem a ração somente no início, quando os alevinos (filhotes) chegam, mas durante os oito meses seguintes de engorda eles se alimentam de sobras de outros alimentos consumidos no sítio.
Mesmo com os conhecimentos técnicos adquiridos através da experiência com o Nuperade, alguns fatores naturais são imprescindíveis para o sucesso de um plantio. A chuva é um deles, e ela precisa ser na medida certa. Se chover demais, acaba com o trabalho de um ano inteiro.
Edvar Tavares Rodrigues sofreu com a falta de chuva e acabou perdendo parte do milho que plantou. Mesmo com os dois filhos trabalhando junto com ele, a roça de milho ficou comprometida. Ele explica que foi muito bom o tempo do Nuperade, mas que é difícil sozinho ter condições de adquirir os insumos para o solo e as ferramentas para trabalhar no plantio. Além disso, ressalta como o trabalho no campo é pesado e como é difícil convencer os filhos a trabalharem junto com ele na zona rural. “A gente divide a vida aqui. Neste ano nós compramos uma moto para eles poderem ir na cidade e voltarem, mas é complicado ficar aqui sem uma perspectiva de melhora”, diz.
As sementes do Nuperade continuam brotando em Gilbués, transformando o território e criando alternativas para que a vida continue a resistir e se desenvolver no mar de terra avermelhadas.
Imagem do banner: Área reflorestada em meio à paisagem desertificada do município de Gilbués, no sul do Piauí. Foto: Rafael Martins