Pela primeira vez no Brasil, a comunidade tradicional da Ilha do Cardoso assinou uma parceria público-comunitária com o governo de São Paulo, que delega aos moradores a operação da visitação do parque estadual homônimo.
Um dos mais antigos parques estaduais de São Paulo, a Ilha do Cardoso abriga um importante trecho de Mata Atlântica preservada onde vive uma comunidade caiçara pelo menos desde o século 19.
Os caiçaras se mobilizaram quando souberam do anúncio de uma potencial entrega da gestão do parque à iniciativa privada; garantindo seu direito ao protocolo de consulta, abriram caminho para parceria inédita.
1983. Parque Estadual da Ilha do Cardoso, extremo sul do litoral de São Paulo. A um ano do fim da ditadura militar no Brasil, a rotina tranquila das comunidades caiçaras é quebrada por voos rasantes de aviões de guerra.
O terror se amplifica em solo, com soldados da Marinha ameaçando de prisão moradores que possuam roças e dando 24 horas para todos abandonarem a unidade de conservação de 13,6 mil hectares.
Os militares agem em nome do Instituto Florestal, cuja política ambiental tem como premissa retirar todos os moradores de parques estaduais e deixar essas áreas livres de presença humana.
Entre a criação do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em 1962, e o fim do regime militar, foram mais de 20 anos de intimidações para forçar as cerca de 400 famílias caiçaras a deixar suas casas. Algumas estavam lá desde o século 19.
O processo de esvaziamento do parque foi finalmente barrado na Justiça graças à atuação do padre holandês João Verbeek, conhecido como João Trinta, pároco de Cananeia ligado à Pastoral da Terra. E mostra como os caiçaras da Ilha do Cardoso resistiram com afinco para permanecer em seu território ancestral.
Quatro décadas depois, no dia 27 de janeiro de 2023, a Associação de Moradores das Comunidades do Itacuruçá e Pereirinha (Amoip), com o apoio da Articulação de Comunidades Tradicionais da Ilha do Cardoso, celebrou a conquista inédita do convênio que firmou a primeira parceria público-comunitária no Brasil.
Estabelecida entre a Fundação Florestal do Estado de São Paulo (FF) e a Amoip, a parceria delega aos caiçaras o gerenciamento e operação por cinco anos (com direito a prorrogação) da visitação de um dos dois núcleos do parque estadual, o Núcleo Perequê.
Isso inclui a administração de serviços de hospedagem para alunos das redes pública e privada e a manutenção de refeitórios, trilhas pedagógicas, lojinha de artesanato e centro de visitação, além de apoiar eventos técnico-científico realizados no parque.
“A nossa vontade de trabalhar com turismo de base comunitária e a recepção de estudantes é antiga”, diz Sergio Carlos Neves, presidente da Amoip. “A Fundação Florestal conduziu a visitação até 2008, ano em que os serviços de hospedagem e alimentação que recebiam grupos foram paralisados para uma grande reforma. Só reabriram quinze anos depois, em 2023, quando nós assumimos.”
Inserido no Complexo Estuarino-Lagunar de Iguape, Cananeia e Paranaguá, o Parque Estadual da Ilha do Cardoso integra a maior área contínua de Mata Atlântica do Brasil.
Para entender sua importância, basta um olhar atencioso: costões rochosos, praias, braços de mar, estuários, barras, lagunas, restingas, manguezais e rios servem de habitat para diversas espécies ameaçadas de extinção, como o papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis).
A unidade de conservação abriga também os intrigantes sambaquis, montes feitos de conchas, areias, restos de plantas e ossos animais e humanos. Construídos entre 10 mil e 2 mil anos atrás pelos sambaquieiros, povo que ocupou o litoral brasileiro, os sambaquis foram utilizados como marcadores territoriais, moradias e cemitérios.
Salvando o parque da iniciativa privada
A intimidação militar ficou no passado, mas as restrições para os moradores do Parque Estadual da Ilha Cardoso ainda são grandes. É preciso autorização da Fundação Florestal para manter roças e é proibida a retirada de determinados tipos de madeira para a confecção de apetrechos de pesca.
Com seu modo de vida tradicional limitado pelas interdições, os caiçaras passaram a ter na pesca a sua principal fonte de renda e no turismo uma alternativa importante. A apreensão na época da paralisação dos serviços de visitação era que, depois de concluídas as obras, o receptivo ficasse nas mãos de uma empresa particular. A aflição dos comunitários se justificava pela lei estadual de concessões, que impede uma associação de moradores como a Amoip de participar em um processo de licitação pública.
O medo virou pavor em 2016, quando souberam da promulgação da Lei 16.260/2016, que colocava 26 unidades de conservação do estado em uma lista para serem concedidas à iniciativa privada.
Articulados com membros do Ministério Público Federal, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Instituto Linha D’Água, organização que trabalha com sociobiodiversidade costeira e marinha, os moradores da Ilha do Cardoso mais uma vez viraram o jogo.
O primeiro passo foi entrar com uma ação na Justiça junto com representantes dos povos tradicionais do Vale do Ribeira, contestando a lei de concessão.
No ano de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou parcialmente a lei ao considerar inconstitucional a parceria do governo estadual com empresas em unidades de conservação sobrepostas aos territórios tradicionais.
A segurança jurídica que a decisão do STF trouxe abriu o caminho para que o acordo inédito com os caiçaras pudesse ser costurado.
Peça fundamental na construção da base conceitual do convênio, formato que permitia uma parceria do Estado com uma associação de moradores, o coordenador executivo do Instituto Linha D’Água, Henrique Kefalás, lembra como ainda em 2016 se valeu de uma conversa com seu orientador, o antrópologo Antonio Carlos Diegues, para se inspirar e definir as premissas do instrumento inovador.
“O professor Diegues me provocou dizendo que as comunidades precisavam tocar o núcleo de visitação, assumindo este protagonismo”, diz Kefalás. “Ao contrário de propor uma parceria público-privada, teria que ser sugerida a parceira público-comunitária. Peguei a ideia e pensei comigo mesmo: vamos construir isso”.
No ano seguinte, o Instituto Linha D’Água produziu um diagnóstico de arranjos locais para visitação de uso público em áreas protegidas costeiras e marinhas em todo o litoral brasileiro.
Um dos casos revelados pela documento era o da Ilha do Cardoso, que já tinha um histórico de recepção de turistas, a exemplo das comunidades do Itacuruçá e Pereirinha, localizadas dentro do Núcleo Perequê, além do Núcleo Marujá, no sul da ilha.
O estudo culminou na cartilha “Navegando nos Caminhos do Uso Público”, que foi providencialmente apresentado à Amoip e à direção do Parque Estadual da Ilha do Cardoso.
“Nós mostramos para eles que existiam opções de modalidades de parceria que poderiam ser utilizadas pelo Estado, mas que dependem de um entendimento das necessidades do território. O objetivo do convênio é produzir qualidade de vida para a comunidade. Eles não são meramente prestadores de serviço”, afirma Kefalás.
O direito à consulta
Bolsista do Instituto Linha D`Água no curso de gestão comunitária, Michel Souza Razera, de 28 anos, é exemplo da articulação intergeracional de ativistas que se criou na Ilha do Cardoso ao longo do tempo.
“Chegamos nesta parceria inédita por conta de muita garra e luta de toda a comunidade. Não desistimos. Fomos criando acordos, princípios, e a Fundação Florestal durante este caminhar de construção de diálogo passou a respeitar bastante nossos valores”, diz ele.
Razera destaca um momento importante que mostrou para a própria comunidade a maturidade da consciência política da associação.
Em 2021, quando a Fundação Florestal, diante da resistência estruturada da Amoip, sinalizou a possibilidade de um convênio por meio de uma até então inexistente parceria público-comunitária, a associação comemorou. No entanto, teve que fazer valer seu direito jurídico ao protocolo de consulta para que este instrumento fosse feito por meio de um diálogo democrático, horizontal e dentro da sua realidade.
“Sabemos que a parceria é um teste, mas sabemos também do nosso potencial. É preciso que a cooperação seja feita de forma gradual e proporcional, respeitando nossa cultura e o momento de cada um para que dê certo. É um trabalho em evolução. E queremos também integrar outras comunidades. É a ideia do interesse comum”, conclui Razera.
Inaugurada no dia 27 de julho de 2023, quando as chaves do Núcleo Perequê foram entregues para representantes da Amoip, a operação da visitação por parte dos caiçaras é acompanhada com entusiasmo por Emily Coutinho, a nova gestora do Parque Estadual da Ilha do Cardoso.
“Muito do entendimento da parceria partiu do protocolo de consulta feito pelas comunidades da ilha. A partir do momento que a FF esteve mais aberta ao diálogo, a gente conseguiu avançar em muitas construções participativas no documento do convênio, que foi escrito inteiramente de forma participativa. E agora a parceria está começando a engatar, com os grupos escolares começando a fazer os agendamentos”, diz ela.
Além da execução das atividades voltadas ao uso público em estruturas e áreas do Núcleo Perequê, a gestora do parque destaca outro importante objeto do convênio, que prevê o desenvolvimento socioeconômico e incrementa a qualidade de vida das famílias tradicionais residentes.
“Só conseguimos esta amarração porque a gente teve este processo de construção conjunta, aberta e transparente”, diz ela. “Uma comunidade tradicional operando um parque estadual é algo novo e em cada demanda nova que surge a gente esta aprendendo junto com eles. E esperamos que este modelo continue funcionado bem e que ele sirva de exemplo para outros lugares, para outras regiões que tenham este mesmo contexto.”
Imagem do banner: Sérgio Carlos Neves, presidente da Associação de Moradores das Comunidades do Itacuruçá e Pereirinha (Amoip), uma das articuladoras da nova parceria. Foto: Luis Patriani