Notícias ambientais

Veneno do céu: a luta dos quilombolas do ES contra a Suzano

Elda Maria dos Santos mostra o mapa da terra quilombola de Linharinho, que ainda aguarda titulação. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

  • Na região de Sapê do Norte, no Espírito Santo, comunidades quilombolas vêm denunciando a pulverização aérea de agrotóxicos feita pela Suzano nas plantações de eucalipto da área.

  • Moradores relatam prejuízos em sua produção alimentar, o esgotamento das fontes de água, a morte de peixes e o desenvolvimento de doenças.

  • Na União Europeia, a aplicação aérea de pesticidas está proibida desde 2009; no Brasil, o número de pessoas atingidas pela prática aumentou 86% entre 2021 e 2022.

CONCEIÇÃO DA BARRA, Espírito Santo — Beatriz Cassiano trabalhava na sua roça quando repentinamente ouviu seu neto gritando: “Vó, sai daí, sai, vem para casa. O avião!”

Em entrevista à Mongabay, Beatriz relembra que foi surpreendida por um avião que sobrevoava as casas da comunidade pulverizando agrotóxicos: “A gente não sabia, [ninguém] avisou nem nada. Jogaram um veneno, mas rodava dentro das propriedades das pessoas”.

Num dado momento, Beatriz foi atingida pelos pesticidas: “Caiu em cima de mim e meu braço ficou coçando”. E sua roça também foi destruída no processo: “Perdi a abóbora, perdi milho…”

A comunidade quilombola de Linharinho situa-se no município de Conceição da Barra e integra uma região do Espírito Santo conhecida como Sapê do Norte, onde existem 32 quilombos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares.

De acordo com relatos da comunidade, nos últimos anos, a Suzano, líder mundial na produção de celulose de fibra curta, tem realizado pulverizações aéreas de agrotóxicos em suas plantações de eucalipto nos arredores da comunidade, sem comunicação prévia e em desacordo com a distância de segurança regulamentada pela Instrução Normativa 2/2008 do Ministério da Agricultura, que restringe a aplicação aeroagrícola a distâncias inferiores a 250 metros de moradias isoladas.

Os moradores informaram à Mongabay que o avião passa tão próximo de suas casas que, por vezes, os agrotóxicos atingem seu corpo, suas roças e seus rios, gerando preocupações sobre a segurança do consumo da comida cultivada localmente e da água de fontes naturais, devido aos potenciais riscos de contaminação.

Plantio de eucalipto vizinho a um campo de futebol da comunidade quilombola de Linharinho. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

O problema teve início no final de 2017, quando a então Fibria Celulose convocou uma reunião em Linharinho para comunicar o início das aplicações aéreas na região. Em resposta, a comunidade solicitou à empresa que, antes de iniciar as pulverizações, seria necessário transparência acerca dos produtos e da forma de aplicação, além da apresentação de laudo técnico que comprovasse a segurança do procedimento.

Desse modo, ficou acordado no dia 11 de outubro daquele ano que a aplicação aérea nos talhões de eucalipto nos arredores da comunidade só ocorreria mediante a apresentação dessas informações. A Fibria descumpriu o acordo após seis dias e realizou o procedimento sem esclarecer as demandas da comunidade, desrespeitando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante consulta prévia aos povos tradicionais perante qualquer projeto que possa impactar seus territórios e modos de vida.

Em 2018, o grupo Suzano S/A incorporou a Fibria, mas segundo Leovegildo dos Santos Evangelista, quilombola de Linharinho, apesar da mudança, os problemas persistem. Leovegildo contou à Mongabay que também já teve prejuízos em razão das pulverizações: “Nós tínhamos uma roça de abóbora e um bananal; amarelou e acabou com tudo”.

Ele descreve que, na medida em que suas plantas eram atingidas pela pulverização, o pesticida “amarelava as folhas. E, quatro dias depois, parece que passou um fogo. Matou tudo — minhas bananas todas que estavam produzindo”.

Leovegildo relembra que, durante o incidente, sua filha foi atingida: “Quando o avião passou fazendo a manobra, esse veneno caiu na minha filha. Deu uma dor de cabeça e caiu na vista dela, e até hoje ela está fazendo tratamento. A cirurgia da minha menina hoje vale 30 mil reais. Soltou a retina da vista dela.”

Ele mesmo diz que após o incidente teve “um problema no estômago por conta dessas água braba que a gente estava bebendo”.

Maria Helena de Jesus Gomes, por sua vez, diz que seu estado de saúde tem estado “péssimo” desde que as pulverizações começaram. Maria Helena desenvolveu câncer de útero, glaucoma e problemas cardíacos no período. Ela acrescenta que o estresse e a insegurança gerados pelo conflito contribuem para a deterioração da saúde mental da comunidade.

Dinâmica de grupo representando uma “rede quilombola” durante uma reunião em Linharinho. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

Os sintomas descritos à Mongabay por vários membros da comunidade são consistentes com os sintomas de intoxicação aguda por pesticidas comumente encontrados em vários ingredientes ativos, conforme informado pelo índice da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA). Além disso, o consumo contínuo de água e alimentos contaminados pode levar ao desenvolvimento de problemas de saúde crônicos.

No caso da filha de Leovegildo, um estudo publicado no International Journal for Molecular Sciences relaciona a toxicidade de pesticidas a problemas na retina. Segundo o artigo, o dano ao tecido ocular pode acontecer através do contato direto com a substância ou através do consumo de alimentos contaminados. Entre os potenciais causadores estão dois ingredientes ativos de uso comum no Brasil: o inseticida clorpirifós e o herbicida glifosato.

Em relação aos prejuízos nas plantações das roças quilombolas, a literatura científica indica que o uso inadequado e a aplicação incorreta de certos herbicidas podem causar amarelamento, murchamento e até a morte das plantas.

As denúncias feitas pela comunidade sugerem fortemente a possibilidade de uma séria violação de direitos humanos em andamento, exigindo uma investigação rigorosa apoiada por exames laboratoriais conclusivos.

Na União Europeia, a aplicação aérea de pesticidas está proibida desde 2009 por conta dos danos potenciais à saúde humana e ao meio ambiente. Um problema associado ao procedimento é a chamada deriva, um fenômeno no qual a calda de agrotóxicos pulverizada desvia do alvo pretendido.

As condições meteorológicas, a composição da substância, a distância e a velocidade da aplicação são alguns dos fatores que influenciam na trajetória do produto e que devem ser cautelosamente considerados previamente à aplicação, a fim de reduzir os riscos de acidentes e impactos adversos.

Os conflitos envolvendo a aplicação de agrotóxicos nos eucaliptais não ficam restritos à comunidade de Linharinho. Na comunidade quilombola Morro da Onça, também localizada em Conceição da Barra, a Suzano foi condenada a pagar uma indenização por danos materiais após uma empresa prestadora de serviços destruir uma plantação de mandioca e mudas de coco com a pulverização aérea de agrotóxicos no dia 9 de julho de 2022.

Após realizado um inquérito civil, o Ministério Público Federal ingressou em 2019 com uma ação civil pública contra a Suzano em razão dos acontecimentos em Morro da Onça, exigindo a adequação de seus procedimentos à legislação e aos parâmetros de segurança vigentes, além da criação de um protocolo de comunicação e prestação de informações às comunidades e uma indenização por danos morais coletivos.

Vista do dossel de uma plantação de eucalipto nos arredores de Linharinho. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

Resposta da Suzano

Em resposta à Mongabay, a Suzano informa que, desde a adoção da aplicação aérea em 2017, “tem trabalhado consistentemente para adotar os melhores processos possíveis, proativamente informando as comunidades sobre suas atividades e aderindo estritamente às normas aplicáveis e políticas da empresa”.

A empresa ressalta que “um procedimento de comunicação de atividades de aplicação aérea de defensivos especialmente destinado a comunidades tradicionais foi desenvolvido”.

Sobre o incidente de 2017 em Linharinho, a Suzano diz que “agiu prontamente — dentro dos prazos do processo de diálogo —, esteve aberta para compreender as perspectivas das comunidades e atendeu apropriadamente esses apontamentos. Desde então, a companhia não registrou chamados externos relacionados com esse tema nos canais de comunicação da Companhia ou nos diálogos com as comunidades”.

A empresa explica que “devido à altura das árvores, que atingem de sete a oito metros de altura após 15 meses, é impossível aplicar qualquer fertilizante a partir do solo.”

A Suzano menciona que “todas as aplicações de defensivo são realizadas somente após a realização de um monitoramento prévio, executado por equipes especializadas” e que “realiza rigoroso processo de seleção, avaliação e monitoramento de todos os prestadores de serviço, em especial os parceiros responsáveis pela aplicação de defensivos, assegurando que atendam ao padrão de fornecedores Suzano”.

Leia a resposta da Suzano à Mongabay na íntegra.

“E assim se construiu esse império”

Os conflitos fundiários entre povos tradicionais e a indústria de papel e celulose no norte do Espírito Santo remontam à década de 1970, no período da ditadura militar, um momento crucial em que o Brasil passou de importador de pasta de celulose branqueada para um dos maiores exportadores do mundo.

Estima-se que o território de Sapê do Norte, até início da década de 1970, abrigava cerca de 12 mil famílias quilombolas, distribuídas em mais de cem comunidades. A dinâmica da região começou a se transformar com a chegada da empresa Aracruz Celulose. O Governo Federal, por sua vez, havia implementado leis que favoreciam o plantio de eucalipto, incluindo incentivos como o abatimento do imposto de renda para pessoas físicas e jurídicas que investissem em reflorestamento.

Além disso, foram promulgadas leis que dificultavam a permanência das comunidades negras rurais em suas terras ou até mesmo a obtenção de títulos de propriedade. Como a Lei Delegada Nº 16, que serviu como obstáculo aos indígenas e quilombolas na comprovação da posse de suas terras. Paralelamente, houve uma facilitação na aquisição de terras consideradas “devolutas”, o que resultou na prática em que muitos funcionários da Aracruz solicitavam a posse dessas terras para, em seguida, transferi-las à empresa.

Capela da comunidade quilombola de Linharinho. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

Após perderem suas terras, alguns indígenas e quilombolas que permaneceram na região trabalharam em condições precárias na cadeia produtiva de celulose.

João Batista Guimarães, técnico agrícola e liderança quilombola da comunidade Angelim 1, conta à Mongabay que “o que chegava era que todo o mundo ia ter emprego e que ia ser bom. Por uma década houve essa correlação de trabalho. Ou seja, mesmo os quilombolas saindo do território, eles voltavam para plantar, cortar ou fazer mudas de eucalipto. Como foi o caso da minha mãe, que desde os 13 anos fez mudas de eucalipto para o setor de celulose, e assim se construiu esse império.”

Em pouco tempo, as promessas de riqueza e desenvolvimento se provaram vazias — sem terra e sem trabalho, cerca de 90% da população quilombola do Sapê do Norte foi obrigada a se deslocar para as periferias das grandes cidades.

“Não acontecia emprego nenhum e deixavam o pessoal na favela. Várias pessoas da nossa própria comunidade foram embora para a periferia”, lembra Fernando dos Santos, da comunidade de Linharinho.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada em 2002 pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo e o ajuizamento de duas Ações Civis Públicas pelo Ministério Público Federal (2013 e 2015) comprovaram a fraude na aquisição de mais de 30 terrenos rurais pela Aracruz na década de 1970. Em 2009, a fusão entre as empresas Aracruz e Votorantim Celulose e Papel resultou na Fibria.

“A população no Sapê do Norte está adoecendo”

A expansão das monoculturas na região e a subsequente perda das florestas nativas acarretaram uma série de impactos nos modos de vida das comunidades tradicionais locais. Entre as principais queixas, destacam-se o desaparecimento de corpos d’água, a redução da produtividade agrícola e a extinção da fauna e flora nativas.

João Batista diz à Mongabay que “nos últimos 60 anos desapareceram mais de 170 pontos de alagados, entre córregos, rios e mais de 2 mil nascentes estratégicas que jorravam nos principais leitos”.

“Em cada rio desses no Sapê do Norte, das mais de trinta variedades de peixe que se tem, restou apenas três ou quatro”, acrescenta o técnico agrícola.

Nesse sentido, Benedita Cassiano, parente de Beatriz, relata à Mongabay que “o veneno que eles jogam no solo vai diretamente para água. A gente não lava a roupa no rio e a pescaria também acaba, porque tenho medo de comer um peixe que está estragado”.

A restrição do acesso aos recursos naturais e a preocupação com a contaminação por resíduos agroquímicos desencorajam e tornam inviável a manutenção dos modos de vida da comunidade.

“Eles [os jovens] não estão comendo mais um alimento da nossa cultura. Nós não tínhamos essas doenças que a gente tem agora e os alimentos eram mais tipo um remédio, uma coisa boa, sadia. Mas agora ninguém pode caçar, ninguém pode pescar”, conta Beatriz.

Esses problemas também impactam as práticas rituais da comunidade, relembra Elda Maria dos Santos: “Nós [povos tradicionais] precisamos da água para tudo. Até os nossos rituais também têm que ser feitos na água. A água era pra tudo, para beber, para banho de descarrego”.

Elda Maria dos Santos, conhecida como Miúda, em sua casa na comunidade de Linharinho. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

Consequentemente, João Batista Guimarães explica que “a população no Sapê do Norte está adoecendo. Nós temos casos de pessoas que foram internadas intoxicadas com veneno.  Isso [vem] do modelo de pulverização e dos mais de 200 tipos de agrotóxicos que foram liberados nesses últimos anos, responsabilidade de um governo anterior [de Jair Bolsonaro]”.

No Brasil, a desigualdade no acesso à terra tem sido a principal causa de muitos conflitos agrários. Recentemente, os agrotóxicos têm desempenhado um papel central nesses conflitos, com um aumento significativo nos casos de contaminação, especialmente devido à introdução de práticas como a pulverização aérea de pesticidas. Em 2022, o número de pessoas atingidas por pulverização aérea aumentou 86% em comparação ao ano anterior e entre 2010 e 2019, uma média de 15 pessoas por dia foram vítimas de envenenamento por agrotóxicos.

Como resultado do processo iniciado durante a ditadura militar, as comunidades quilombolas do Sapê do Norte vivem hoje em pequenos fragmentos de terra cercados por extensas monoculturas, em um estado de confinamento conhecido por eles como “imprensamento”.

Apesar de certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), a comunidade quilombola de Linharinho ainda aguarda a titulação de suas terras, e por isso vive cercada por plantios de eucalipto, que ocupam 64% do seu território (2.244 hectares), segundo dados do MapBiomas. Atualmente, apenas 4.3% de quilombolas no Brasil vivem em territórios titulados. Em Sapê do Norte, apenas 4 das 32 comunidades são oficialmente delimitadas.

Portanto, a escassez de terra e a degradação dos recursos naturais forçam os quilombolas a buscar o suprimento de suas necessidades básicas fora de seu território.

“A gente não consegue nem abastecer comida aqui, porque as terras não estão na mão dos quilombolas, não estão na mão dos indígenas, nem dos agricultores familiares. Estão na mão do papel e celulose e do agronegócio. E a comida que chega aqui para o nosso povo vem de outro lugar. E vem envenenada”, explica João Batista.

A expectativa da titulação de seus territórios cultiva a esperança de que um dia aqueles que migraram para as grandes cidades possam retornar às suas terras tradicionais e viver de forma digna, ressalta Fernando: “A gente está tentando resgatar nosso território para trazer um pouco dessas pessoas e mostrar que eles têm uma sustentabilidade melhor no campo”.

Enquanto o problema permanece em aberto, Beatriz conta que é a memória dos antepassados que impele a luta pela terra e pelo bem viver: “É a resistência dos antepassados. A gente tem que ficar firme, lutar e não desistir. Porque se nós tudo sair fora e desistir, acaba. Nós temos que estar na luta, morrer na luta, para o jovem seguir o mesmo caminho. Nós estamos aqui, seguindo as coisas dos antepassados. Os pais da gente lutaram, foram embora e nós temos que ficar e lutar e dar prosseguimento para ver se vai até o fim.”

Sentada na sala de sua casa durante o entardecer, Elda Maria ecoa a palavras de Beatriz mostrando uma das canções que ela compôs na época da retomada do território quilombola de Linharinho: “Queremos justiça na Terra, já temos justiça no Céu /Queremos terra na Terra, já temos terra no Céu /Plantação de eucalipto, não é alimento não /Alimento é arroz e milho, mandioca e feijão”.

Imagem do banner: Elda Maria dos Santos mostra o mapa da terra quilombola de Linharinho, que ainda aguarda titulação. Foto cedida por Giuliana Zamprogno

Exit mobile version