Os diversos habitats do Brasil abrigam uma notável variedade de espécies de vaga-lumes, muitos dos quais são especialistas de habitat, prosperando em nichos ecológicos específicos, porém vulneráveis a mudanças ambientais.
Um novo estudo feito no Cerrado mostrou um declínio drástico na diversidade de vaga-lumes e outros insetos bioluminescentes nas áreas afetadas por perda de habitat e uso de pesticidas nos últimos 30 anos, e sugere que a Luz Artificial Noturna também será uma ameaça a esses insetos no futuro.
Pesquisas do mundo todo também apontam para a perda de habitat, o uso de pesticidas e a poluição luminosa como as principais ameaças às populações de vaga-lumes, destacando que a última é a ameaça que cresce mais rapidamente no Sudeste do Brasil.
Embora as áreas protegidas ofereçam algum refúgio diante da perda de habitat e dos pesticidas, os impactos sutis da poluição luminosa, combinados a uma falta de conhecimento sobre os vaga-lumes e outros besouros bioluminescentes, são obstáculos para iniciativas de conservação eficazes.
“Fala sério, agora até você quer estudar vaga-lume, né?”, perguntou Luiz Felipe Silveira, professor da Universidade da Carolina Ocidental e um dos maiores especialistas do mundo em – é claro – vaga-lumes.
Naquele momento da nossa conversa online, Silveira estava me mostrando, entusiasmado, os resultados de um estudo que publicou com sete outros cientistas brasileiros em 2022. O artigo, publicado na revista Zoologica Scripta, concentra-se na evolução de um único gênero de vaga-lume (Luciuranus), mas revela muito sobre a diversidade de todo esse grupo de insetos na Mata Atlântica.
“Este gênero tem oito espécies, e nenhuma delas co-ocorre em pequena escala. Numa escala maior sim, como na mesma montanha, por exemplo, mas não vão ocupar os mesmos lugares ao mesmo tempo”, diz.
Cada vaga-lume vive em seu próprio nicho, no conjunto específico de condições climáticas que prefere – como temperatura e umidade, por exemplo. Muitas espécies têm fêmeas sem asas, uma característica que restringe sua mobilidade e as prende ainda mais àquele ambiente específico.
Segundo ecólogos, esses vaga-lumes são especialistas de habitat. Nem toda espécie tem esse estilo de vida, mas muitas na América do Sul, sim. Cientistas catalogaram até agora 350 espécies de vaga-lumes só no Brasil – um número que, segundo Silveira, está extremamente subestimado.
“O Brasil tem uma diversidade de habitats incrível, e é provável que cada partezinha tenha muitas espécies endêmicas, muitas ainda não descobertas”, diz o pesquisador.
Por mais incrível que tenha sido ouvir sobre essa riqueza escondida, não foi a diversidade desses insetos que me levou àquela entrevista. Queria saber se toda essa especialização e baixa mobilidade é o que os tornava tão vulneráveis à perda de habitat e aos agrotóxicos.
“Com certeza”, confirmou Silveira. “E a larva deles vive no solo, e frequentemente associada a corpos d’água, o que é mais um motivo para se preocupar com os pesticidas.”
Pesquisas estão começando a demonstrar que o endemismo e a especialização têm um custo alto. Essas espécies são muito vulneráveis às principais ameaças que atingem os vaga-lumes no Brasil e no mundo: a destruição do habitat, os pesticidas e as luzes artificiais.
Problemas no Cerrado
Os vaga-lumes compõem apenas uma família (Lampyridae) dentre a lista de besouros bioluminescentes – insetos capazes de produzir luz usando uma enzima chamada luciferase para oxidar um composto chamado luciferina. Os elaterídeos (Elateridae) e as larvas-trenzinho (Phengodidae) também são avistados com frequência à noite em muitos ecossistemas, inclusive no Cerrado. É aqui que as larvas de uma espécie específica de inseto, o Pyrearinus termitilluminans, criam um espetáculo único.
Elas se escondem em grandes cupinzeiros e emitem luz para atrair suas presas, iluminando as silhuetas desses montes de terra com pontos verdes brilhantes. Um fenômeno de tirar o fôlego, mas, de acordo com Vadim Viviani, professor da Universidade Federal de São Carlos e especialista em bioluminescência, é um espetáculo que está se tornando cada vez mais raro.
“Na década de 1990, era possível ver muitos desses cupinzeiros, inclusive em áreas de pastagem, repletos de vaga-lumes”, disse Viviani num release à imprensa. “Agora, a maioria dos campos foi substituída por monoculturas de cana-de-açúcar, onde quase não se encontram esses besouros luminescentes.”
Viviani é o autor principal de uma pesquisa realizada ao longo de três décadas e publicada na revista Annals of the Entomological Society of America em novembro passado, que revelou que a quantidade de besouros bioluminescentes está diminuindo no Cerrado. Os pesquisadores investigaram diferentes áreas do bioma, incluindo o Parque Nacional das Emas e fazendas próximas nos municípios de Mineiros e Costa Rica, no estado de Goiás. Abrangendo aproximadamente 100 mil hectares, o parque é uma das maiores e mais preservadas áreas remanescentes de Cerrado no Brasil.
Nos últimos 30 anos, os pesquisadores registraram 51 espécies de besouros bioluminescentes nas áreas de estudo. Quase metade, 24 espécies, foi encontrada dentro do Parque Nacional das Emas – isso fez da reserva uma das áreas mais ricas em espécies da pesquisa, o que não é surpreendente.
Nos anos 1990, fazendas adjacentes ao parque tinham uma diversidade parecida. Entre os anos 1990 e 1996, os cientistas registraram 23 espécies na fazenda Santa Cruz, uma propriedade que à época era coberta principalmente por cerradão (uma mistura de cerrado e floresta tropical), algumas pastagens e uma mata de galeria. Mas em 2000, quando a fazenda mudou de nome para Bacuri, “grandes áreas de cerradão já tinham sido desmatadas para dar lugar à agricultura e à produção de carvão”, de acordo com o estudo. Entre 2010 e 2021, os cientistas registraram apenas oito espécies no local.
Os cientistas também encontraram sinais de redução das populações de larva-trenzinho na fazenda. Antes de 1996, eles haviam registrado uma média de dez insetos por noite de observação, de nove espécies diferentes. Em 2005, viram apenas cerca de três larvas-trenzinho por noite, de duas espécies diferentes. Depois de 2008, apesar de 12 noites de esforços, os cientistas não encontraram uma única larva-trenzinho.
“O declínio nessa família foi especialmente evidente”, diz Viviani.
Mas as mudanças de uso da terra – de pastagens e cerrado natural para soja e cana-de-açúcar – não foram o único problema revelado pela pesquisa de Viviani. Próximo à sede do Parque Nacional das Emas, outra coisa estava afetando o número de larvas-trenzinho encontradas.
Nas primeiras décadas da pesquisa, os cientistas conseguiam atrair várias espécies de larvas-trenzinho, como a Euryopa clarindae e a Mastinocerus nigricollis, usando armadilhas luminosas montadas ao longo do Rio Formoso, que corre pelas imediações. Depois de 2010, entretanto, poucas foram capturadas.
Como o habitat permanecia intacto e relativamente distante das plantações, restava apenas uma hipótese: as lâmpadas halógenas instaladas em vários pontos dentro do parque. Os pesquisadores sugerem que esta pode ser a primeira evidência de que a Luz Artificial Noturna (LAN) – pode afetar larvas-trenzinho adultas, e temem que esta descoberta possa anunciar um problema futuro.
Perto do Parque Nacional das Emas, três centros urbanos estão se expandindo: Chapadão do Céu, Chapadão do Sul e Mineiros.
“Até 2000, essas cidades do entorno eram pequenas demais para causar qualquer efeito visível dentro do parque”, escreveram os autores. “Hoje, contudo, a LAN atinge intensidades consideráveis, o que fica evidente principalmente nas noites nubladas.”
Mineiros, a maior das três cidades, atingiu 70 mil habitantes no censo de 2022, um aumento de 38,32% em relação a 2010.
“Os níveis cada vez maiores de luz artificial dentro do Parque Nacional das Emas, vinda dos crescentes centros urbanos adjacentes, podem ameaçar muitas espécies bioluminescentes”, diz Viviani, “o que merece atenção especial e mais estudos.”
Trio terrível
Há alguns anos, ecólogos e entomologistas vêm alertando sobre o declínio de espécies de insetos por todo o mundo, e os vaga-lumes não são exceção a esse problema. Em 2020, Sara Lewis, professora emérita da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, e especialista no comportamento de insetos, conduziu um tipo diferente de estudo sobre a conservação dos vaga-lumes. Ela enviou um questionário a pesquisadores de vaga-lumes do mundo inteiro, pedindo que eles avaliassem a gravidade de diferentes ameaças a esses insetos. Entre 49 respostas, três principais riscos emergiram: perda de habitat, uso de pesticidas e poluição luminosa.
Não é surpreendente que a destruição do habitat fique em primeiro lugar, já que cientistas constataram, inúmeras vezes, que esta é uma das cinco maiores ameaças globais à biodiversidade da Terra.
O uso de pesticidas tampouco surpreende, uma vez que está ligado ao declínio de insetos em muitas partes do mundo. Poucos estudos testaram o impacto direto dos agrotóxicos sobre besouros bioluminescentes, apresentando resultados variados. Embora evidências sugiram que inseticidas baseados em organofosfatos não sejam muito tóxicos para as larvas do vaga-lume japonês Luciola cruciata e suas presas, um estudo que avaliou a suscetibilidade da espécie coreana Aquatica lateralis a dez inseticidas diferentes registrou num assustador crescimento entre 80% e 100% em sua taxa de mortalidade.
Os compostos dos pesticidas podem ser carregados facilmente pelo ar e pela água, afetando as áreas adjacentes às plantações. Viviani e seus colegas, por exemplo, descobriram que não havia larvas-trenzinho em áreas da fazenda Bacuri que permaneciam intactas, sem plantações. Apesar do habitat conservado, os pesticidas trazidos das fazendas próximas pelo vento são os principais suspeitos neste caso.
Diferentemente dos agrotóxicos e da destruição de habitat, contudo, a luz não costuma ser apontada como uma ameaça comum à biodiversidade. Ainda assim, ela foi listada entre as três principais ameaças globais às populações de vaga-lumes no estudo de Lewis.
“Esses animais bioluminescentes são afetados pela competição com a luz artificial”, explica Stephanie Vaz, pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do ramo sul-americano do Grupo de Especialistas em Vaga-lumes da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
“Por exemplo, machos e fêmeas que dependem de um sinal luminoso para se encontrarem acabam ficando praticamente cegos — ninguém se encontra. Da mesma forma, a vida também fica complicada para as larvas que precisam emitir luz para se defender ou para atrair presas.”
O brilho sutil e efêmero que esses diminutos animais emitem não se compara ao de uma lâmpada halógena – ou, talvez mais grave que isso, ao de um céu noturno iluminado artificialmente.
“Há estudos de fora do Brasil — mas eu acredito que isso possa ocorrer aqui também — que mostram que as fêmeas acabam por não brilhar com tanta competição luminosa, ou têm seu hábito circadiano alterado, entendendo que é sempre dia”, diz Vaz.
Em 2021, Vaz liderou um estudo que revelou que a poluição luminosa é a ameaça à conservação dos vaga-lumes que cresce mais rápido na Mata Atlântica. Sua velocidade supera a urbanização e o desmatamento no Sudeste do país, e seus efeitos não respeitam os limites das áreas protegidas.
“Independente da devastação da vegetação, a poluição luminosa pode adentrar as florestas”, explica Vaz. “[A floresta] pode fornecer algum abrigo, mas, principalmente nas bordas, os vaga-lumes com pouca mobilidade — com fêmeas que não voam ou com larvas que demoram muito para se deslocar – provavelmente vão sofrer com esse estressor.”
Combater esses impactos não é fácil. A perda de habitat e os pesticidas acompanham a expansão agrícola, uma tendência que ameaça muitos ecossistemas ricos em insetos no Brasil e em outros lugares. Mais pesquisas e testes podem ajudar a identificar quais agrotóxicos são menos prejudiciais a essas espécies, e regulações mais rígidas podem ajudar a preservar a biodiversidade.
“O uso de pesticidas menos tóxicos pode ser uma opção para mitigar esses efeitos”, diz Vaz, “aplicados longe de lugares cruciais para o meio ambiente, como lençóis freáticos.”
A luz já é uma questão mais delicada, uma vez que os cientistas estão apenas começando a explorar seus impactos.
“Há pesquisas tentando identificar quais tipos – LEDs, fluorescentes etc – e cores de luzes impactam menos esses animais”, diz Vaz. “Alguns tipos de cobertura sobre as lâmpadas, fazendo com que a luz se volte diretamente para o solo, pode diminuir o brilho difuso e refletido para o céu, e talvez ajudem a mitigar o impacto da iluminação artificial instalada em áreas naturais.”
A primeira barreira para a conservação desse grupo altamente diverso de insetos, contudo, ainda é a falta de conhecimento. “Para conservar, a gente tem que pelo menos conhecer quem está conservando”, diz Vaz. “Temos um esforço para a identificação de espécies crescendo bastante agora, e estamos fomentando bases de dados para entender que medidas de conservação a gente pode propor para essas espécies que estamos descobrindo.”
Imagem do banner: Vaga-lume adulto do gênero Photinus. Foto cedida por André Alves