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Bioma mais degradado do Brasil, Pampa está virando soja e areia

Fazenda em Uruguaiana. Foto: Eduardo Amorim (CC BY-NC-SA 2.0)

  • Entre 1985 e 2022, segundo dados do MapBiomas, o Pampa gaúcho perdeu quase 3 milhões de hectares — uma redução de 30% em quatro décadas.

  • Cultivo de soja e silvicultura estão entre os principais fatores por trás do desmatamento da vegetação nativa, que tem uma das maiores biodiversidades por metro quadrado do Brasil.

  • O Pampa sofre ainda com a arenização, processo natural agravado pela atividade econômica; produtores locais vêm tentando revertê-la.

Com uma área de apenas 176 mil km², ou meros 2% do território nacional, o Pampa —grosso modo, a metade sul do Rio Grande do Sul —, é um bioma do Brasil praticamente “invisível”. Enquanto os olhos e a atenção do mundo estão voltados para a Amazônia e, em menor grau, para o Pantanal e o Cerrado, o extremo sul do país está sendo degradado sem que quase ninguém dê atenção.

Segundo dados do MapBiomas, entre 1985 e 2022, 2,9 milhões de hectares de sua vegetação campestre foram destruídos para dar lugar a áreas de agricultura e silvicultura. A redução nesses 38 anos equivale a 32% da área que existia no Brasil em 1985, quando se estendia por 9 milhões de hectares.

Conforme o levantamento do MapBiomas, entre 1985 e 2022, o uso agrícola do solo no Pampa gaúcho — sobretudo para o cultivo de soja — avançou 2,1 milhões de hectares. No caso da silvicultura (pínus e eucalipto), o aumento de sua extensão foi de mais de 720 mil hectares no período, o que corresponde a um crescimento de 1.667%.

O estudo do MapBiomas foi além do Brasil e verificou a situação de todo o Pampa Sul-americano, que se estende pelo Brasil, Argentina e Uruguai por quase 110 milhões de hectares (equivalente a duas Franças). Os dados levantados mostram que, entre 1985 e 2022, houve uma redução total de 20% da vegetação campestre no bioma, incluindo 9,1 milhões de hectares de campos nativos.

Segundo o engenheiro agrônomo Tales Tiecher, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Pampa gaúcho apresenta a maior biodiversidade de plantas por metro quadrado entre os ecossistemas brasileiros, mas tem sofrido uma drástica redução de sua área de vegetação nativa. “Proporcionalmente, o bioma está entre o mais degradado do país, à frente da Amazônia e do Cerrado”, diz.

Área de Pampa no município de Herval (RS). Foto: Eduardo Amorim (CC BY-NC-SA 2.0)

A perda de área de vegetação campestre é a principal ameaça para a fauna e a flora locais, acrescenta Tiecher. “Cerca de um quarto das aves campestres estão sujeitas a algum grau de ameaça de extinção em pelo menos uma parte do bioma e cerca de 30 espécies de mamíferos estão sob risco de desaparecerem para sempre”, alerta. “Além disso, diversas espécies de répteis, anfíbios e plantas também sofrem ameaça.”

O biólogo Juliano Ferrer dos Santos, do Departamento de Zoologia da UFRGS, diz que o avanço da cultura agrícola no Pampa é tão rápido que os pesquisadores não conseguem acompanhar o real estado de conservação de todas elas. “Em cada ida ao bioma para acompanhamento e pesquisa com peixes-anuais, meu objeto de estudo, nos deparamos com uma situação mais crítica em relação às áreas conhecidas de ocorrência e outras propícias para sua sobrevivência”, conta.

Ele explica que os peixes-anuais, ou peixes-das-nuvens, que incluem sete espécies nesta categoria (gênero Austrolebias), habitam pequenos lagos, com menos de 100 m², que se formam durante a época chuvosa no inverno em meio aos campos do Pampa. “Quando eclodem, crescem muito rápido e já se reproduzem, porque no final da primavera seus ambientes aquáticos vão secando e eles, morrendo”, explica Santos. “Mas seus ovos são enterrados junto ao barro e somente no próximo ano irão eclodir. Quando os lagos secam, não há indicação de que por ali vivem espécies únicas de peixes.”

Emas (Rhea americana), ave nativa do Pampa em Pinheiro Machado (RS). Foto: Eduardo Amorim (CC BY-NC-SA 2.0)

O problema dos areais

O avanço da agricultura e da silvicultura — e a consequente destruição de grandes áreas de vegetação campestre e campos nativos — está contribuindo também para agravar um problema antigo do Pampa brasileiro.

Trata-se dos chamados areais, ou regiões de arenização, que no Brasil existem no Rio Grande do Sul e na Região Centro-Oeste. Sua origem remonta a 200 milhões de anos, quando a maior parte do centro-sul brasileiro era um imenso deserto. Hoje essa área é conhecida geologicamente como Formação Botucatu. É um solo pobre, com muita areia em sua composição.

A diferença básica entre área de desertificação e areal está na quantidade de chuva que o local recebe. A 1.ª Conferência sobre Desertificação das Nações Unidas, realizada no Quênia, em 1997, definiu a primeira como “diminuição ou a destruição do potencial biológico da terra, que poderá desembocar, em definitivo, em condições do tipo deserto”.

O território gaúcho não é, portanto, uma região afetada pela desertificação. Ele está localizado numa região de clima subtropical, com precipitação média anual de 1.400 milímetros. Por isso, está fora da zona onde o clima e a ação do homem têm sido o motivo principal da degradação, como é o caso da Caatinga. Hoje, os areais no Brasil são considerados área de atenção especial.

Área arenizada no sudoeste do Rio Grande do Sul. Foto: Carmem Lucas Vieira, CC BY-SA 4.0 via Wikimedia Commons

O geógrafo Roberto Verdum, do Instituto de Geociências da UFRGS, explica que a arenização é o processo de formação de depósitos arenosos de origem fluvial e eólica datados do Pleistoceno (de 2,5 milhões a 11,7 mil anos atrás) e Holoceno (de 11 mil anos atrás até o presente), associados a fatores como clima, relevo e cobertura vegetal. Podem estar ou não relacionados a atividades agrícolas.

Segundo ele, a gênese dessas manchas arenosas está relacionada à suscetibilidade das rochas e dos solos do Pampa à dinâmica de chuvas torrenciais e períodos de seca. “Assim, os areais estão em constante retrabalhamento por agentes climáticos, essencialmente hídrico e eólico”, explica.

As atividades agrícolas sobre áreas naturalmente frágeis, somadas a um substrato fortemente suscetível à arenização, podem, no entanto, potencializar os fatores que dão início e contribuem para a evolução desse processo.

“Os impactos do mau uso e manejo do solo, com emprego de tecnologias inadequadas para os frágeis solos dessa região, podem se constituir como um dos principais fatores de contribuição para o surgimento de novos focos de arenização no contexto atual”, alerta Verdum.

Segundo o geógrafo Neemias Lopes da Silva, também da UFRGS, o que está ocorrendo no Pampa é a intensificação dos processos erosivos associados à arenização pela ação humana.

“Os solos são frágeis e pouco consolidados. Atividades como o alto pastoreio, ou o próprio peso do maquinário agrícola, pode compactar a terra e auxiliar no desenvolvimento de sulcos por onde a água escoará de forma concentrada até desenvolver ravinas e, posteriormente, voçorocas”, explica. Segundo Silva, tais processos movem e expandem sedimentos arenosos pela ação da água e do vento.

Revertendo a arenização

De acordo com Verdum, mesmo que os areais não tenham se ampliado espacialmente desde o monitoramento feito a partir dos anos de 1980, eles podem ser agravados pela produção agropecuária. Hoje eles somam ao todo 3.663 hectares, espalhados pelos municípios de Alegrete, Cacequi, Itaqui, Maçambará, Manuel Viana, Quaraí, Rosário do Sul, São Borja, São Francisco de Assis e Unistalda.

A área dos areais pode ser pequena se comparada à extensão total do Pampa, mas é significativa individualmente para cada proprietário que tenha suas terras afetadas pelo fenômeno.

É o caso do produtor de arroz e presidente do Sindicato Rural de Itaqui e Maçambará, Raul Borges. Suas terras próprias têm 120 hectares, das quais 46 eram de areais quando ele as comprou há mais de 15 anos. “Pode parecer pouco, mas para mim era muito significativo, pois chegava a mais de um terço de minha propriedade”, diz.

Por isso, ele resolveu recuperar o areal. Depois de muitas tentativas frustradas, Borges conseguiu bons resultado cobrindo a areia com casca de arroz ou as cinzas dela. “Hoje, cerca de 25 a 30 hectares estão recuperados”, conta. “Em parte da área, a vegetação natural voltou.”

Charco em Pelotas (RS). Foto: Eduardo Amorim (CC BY-NC-SA 2.0)

Além da falta de ação para recuperar as áreas arenizadas, outro problema são as tentativas inadequadas de fazer isso, como é o caso da silvicultura. Desde a década de 1970, houve projetos, inclusive alguns com apoio do governo estadual do Rio Grande do Sul, de recuperar os areais plantando eucaliptos sobre eles.

“Muitas das propostas de atividades econômicas, que veem os areais somente como um problema a ser combatido, são responsáveis por intervenções que descaracterizam a paisagem e alteram a dinâmica deste ecossistema”, diz Silva. “É o caso da silvicultura, com a ideia de formação de uma matriz de produção florestal nestas áreas.”

De acordo com ele, essa alternativa não resolve nada. “Onde a silvicultura é desenvolvida, o areal não é recuperado, ele somente fica oculto em imagens aéreas e toda a biodiversidade adaptada à área é substituída pelos eucalipto e por folhas sobre o solo”, critica. “Algumas espécies vegetais são endêmicas dos campos com areais. Os processos erosivos não cessam e a dinâmica natural é alterada, sem falar na transformação paisagística, que altera a vegetação herbácea e arbustiva com areais para um grande ‘muro verde’.”

https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2022/05/um-plano-para-salvar-os-ultimos-palmeirais-do-brasil-meridional/

Imagem do banner: Fazenda em Uruguaiana. Foto: Eduardo Amorim (CC BY-NC-SA 2.0)

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