Mulheres indígenas lançaram em 2022 a rede Katahirine, que engloba 60 cineastas, produtoras e roteiristas de quase todos os biomas do país.
Ao transferir o protagonismo indígena audiovisual para a mão das mulheres, a rede quer usar as câmeras como ferramenta de luta por território e pela preservação da memória dos povos originários.
Além de apoiar novas produções, a Rede Katahirine organiza encontros mensais para exibição de filmes e troca de experiências.
Katahirine poderia ser nome de observatório astronômico, ou de algum projeto ambicioso sobre o espaço sideral, mas nomeia a primeira rede audiovisual produzida por mulheres indígenas.
A palavra, que na língua do povo Manchineri, do Acre, significa “constelação”, foi escolhida pelo coletivo por trazer a ideia de pluralidade, ao juntar em uma mesma plataforma vozes de vários territórios do país.
Cada uma delas com brilho e câmera em mãos, juntas descobrem as possibilidades do fazer cinematográfico, ofício que, há alguns anos, poderia ser impraticável em lugares distantes dos grandes centros.
Com a popularização de celulares, câmeras e apetrechos audiovisuais, hoje o cinema se faz presente na rotina de dezenas de mulheres indígenas Brasil adentro. Na Katahirine – Rede Audiovisual de Mulheres Indígenas, são 60 participantes que trabalham com projetos autorais, de ficção a documentários, filmando a realidade de comunidades de norte a sul do país.
De todos os biomas, apenas o Pantanal (por enquanto) ainda não foi contemplado com uma integrante da rede — o que pode mudar em breve, conforme acredita a fundadora do projeto, a cineasta Mari Corrêa.
Fundadora do Instituto Catitu, que mantém a Rede Katahirine, Corrêa desenvolve projetos de formação audiovisual com povos indígenas há 30 anos, desde que começou a dar oficinas no Parque Indígena do Xingu por meio do programa Vídeo nas Aldeias.
Em suas atividades, a cineasta costumava misturar os participantes — homens, mulheres, velhos e crianças — para combater as diferenças, entre elas o etarismo. Mas, segundo ela, “em situações que tinham homens e mulheres, o protagonismo era sempre deles. Elas assumiam um papel mais tímido, ficavam no fundo das salas, e eles manipulavam a câmera, discutiam os enredos dos filmes”.
Fundado em 2009, o Instituto Catitu já lançou aproximadamente 50 filmes de autoria indígena e compartilhada, com prêmios conquistados no Brasil e no exterior.
Clipe sobre a formação audiovisual das mulheres xinguanas pelo Insituto Catitu.
A Rede Katahirine foi criada em setembro de 2022 como um braço do Instituto Catitu e com o objetivo inicial de realizar o tão sonhado mapeamento das mulheres indígenas produtoras de conteúdo audiovisual no país. Com o apoio de ativistas e indigenistas ligados às agendas culturais de aldeias e povos originários, o projeto cadastrou, no primeiro momento, 20 participantes.
“Queríamos localizar mulheres que já tivessem algum tipo de experiência na plataforma audiovisual, mas não precisavam atuar na área. Havia também um sentimento de que [os povos indígenas] estavam perdendo coisas importantes da cultura. Precisavam registrar para não perder; e a forma de diálogo, para comunicar com as sociedades, é pela sua própria voz”, afirma Corrêa.
Com diversas línguas e variantes, a Rede Katahirine organiza seus encontros todos em português – idioma com que, com vários graus de fluência, todas as participantes conseguem se expressar.
Se há alguns anos a língua portuguesa era dominada pelos homens em algumas comunidades, hoje, ao menos nos projetos tocados pelo Instituto Catitu e pela Rede Katahirine, as mulheres têm a palavra final. “Elas sempre tiveram voz, a gente só ajuda a amplificar esse coro, a espalhar a palavra de tantas artistas”, define Corrêa.
Fime Preconceito, de Olinda Yawar Tupinambá.
Documentação da memória
Entre as atividades da Rede Katahirine está o cineclube, um encontro mensal que abre espaço para discussões importantes do projeto. A cada encontro, uma das cineastas é curadora da sessão, escolhe um filme e convida uma diretora para participar do debate.
Existe um clima intimista de conversa com as diretoras, relata Corrêa, pois as reuniões se convertem em espaços de escuta, sobre o que cada participante desenvolve, suas necessidades, as dificuldades e os êxitos, bem como as expectativas em torno do projeto, que busca apoio dos ministérios da Cultura e dos Povos Originários e de investimentos públicos e privados.
Para os anos 2024 e 2025, a Fundação Ford vai investir uma quantia na implementação do projeto. Hoje, a Rede Katahirine conta com outros três parceiros externos.
Pautada em torno de quatro linhas de atuação (Formação Audiovisual; Distribuição e Visibilidade; Fortalecimento Interno do Grupo; Fomento e Pesquisa de Projetos), a Rede Katahirine conta hoje com sete conselheiras, sendo cinco mulheres indígenas e duas não indígenas. Além de Mari Corrêa, são elas Olinda Yawar Tupinambá, Patrícia Ferreira Pará Yxapy, Vanúzia Bonfim Vieira Pataxó, Francy Baniwa, Bárbara Cariry, Graci Poty e Sophia Pinheiro.
Graciela Guarani, mais conhecida como Graci Poty, é uma das conselheiras e também uma das cineastas indígenas mais bem-sucedidas hoje. Ela é autora do documentário Meu Sangue É Vermelho, que conta a história do jovem Werá, rapper indígena que busca entender a violência contra seu povo.
Trailer do filme Meu Sangue é Vermelho, de Graci Poty.
Com a hoje ministra dos povos originários Sônia Guajajara e o rapper Criolo no elenco, o filme documental recebeu diferentes prêmios, como o de melhor documentário no Milestone Worldwide Film Festival, em Battipaglia, na Itália, e uma menção honrosa no Los Angeles Film Awards, nos Estados Unidos.
Sul-matogrossense nascida em Dourados, Graci começou a trabalhar com linguagens artísticas ainda na infância. Primeiro no desenho, para depois avançar para a fotografia e o audiovisual. Para ela, os multimeios mostraram novas possibilidades para manter viva a tradição da contação de histórias, costume majoritariamente oral que corria o risco de se perder.
Hoje, com o apoio de organizações não governamentais, entre elas a ONU Mulheres, Graci ministra oficinas audiovisuais para comunidades indígenas. Em entrevista à Mongabay, ela contou que, no ano passado, foi uma das juradas do Echoes Festival, que levou curtas de autores indígenas para Londres e Paris.
“Depois de mais de 20 anos trabalhando com a temática indígena, hoje podemos falar sobre o que a gente quiser”, diz Graci. “Só o fato da gente ocupar esses lugares, como corpo indígena, faz com que a gente possa circular de uma maneira natural. Não só em lugares etnográficos, mas também no cinema de entretenimento e de arte. Eu quero estar ali para falar da minha obra, do meu processo criativo”.
Além de dirigir o documentário Falas da Terra, que no ano passado na TV Globo, Graci também codirigiu a série da Netflix Cidade Invisível, sobre um detetive (interpretado pelo ator Marco Pigossi) que entra em contato com elementos do folclore brasileiro. A trama fantástica, que obteve bastante repercussão, tratou temas ligados à identidade nacional com uma ótica distante da didática.
Para Graci Poty, que inspira jovens em oficinas ministradas no território Pankararu, em Pernambuco, onde mora há 11 anos, a arte é libertadora e pode cruzar fronteiras: “o que a gente leva através dessas imagens é a possibilidade de continuação dos nossos pertencimentos. É uma soma, de como construir uma sociedade mais igualitária. Afinal, a imagem é algo extremamente político”.
Imagem do banner: a cineasta indígena Priscila Tapajowara. Foto: Matheus Alves