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A volta por cima do algodão agroecológico no agreste da Paraíba

  • Desde 2021, governo, iniciativa privada e cooperativa de agricultores trabalham juntos para que o plantio do algodão orgânico e agroecológico em Ingá (PB) tenha cada vez maior produção.

  • A atividade segue o modelo agroecológico, dispensa o uso de agrotóxicos, e parte das terras tem certificação orgânica. Há variedades do algodão que nascem coloridas, não precisando de corantes e evitando uso de água.

  • A produção é vantajosa para o agricultor porque a compra da safra é garantida desde a plantação, e o valor pago é cerca de 50% mais alto em relação ao cultivo convencional.

  • Nos anos 1930, a Paraíba era a segunda maior exportadora de algodão do mundo. Do século 18 até a década de 1980, a atividade moveu a economia regional até que a praga de um inseto, o bicudo, arruinou plantas e famílias.

Na lavoura de algodão em Ingá, no agreste da Paraíba, o pôr do sol ilumina um desfile de moda. Uma cena improvável, de sonho, que exibe roupas de algodão marrons, verdes e brancas. O vaivém de modelos, profissionais ou não, faz parte da comemoração pela colheita do algodão semeado em abril. Nesta época de seca, a poeira avermelhada gruda no suor do rosto do público: são crianças vindas da escola, agricultores, compradores do algodão, entendedores de moda, governantes e políticos. Rompendo o silêncio de vozes e o barulho do vento, ouve-se Asa Branca, de Luiz Gonzaga. “Quando olhei a terra ardendo…”

O algodão que serve de matéria-prima às roupas da passarela é plantado nesta região da Paraíba com práticas de sustentabilidade. A atividade segue o modelo agroecológico (dividindo o espaço com o cultivo de alimentos para subsistência), sem uso de agrotóxicos, e parte das terras tem certificação orgânica. Há variedades do algodão que nascem coloridas, não precisando de corantes e evitando uso de água. A produção é vantajosa para o agricultor porque a compra da safra é garantida desde a plantação, e o valor pago é cerca de 50% mais alto em relação ao cultivo convencional.

A produção de algodão na Paraíba não é novidade. Nos anos 1930, o estado era o segundo maior exportador do mundo. Do século 18 até a década de 1980, a atividade moveu a economia regional até que a praga de um inseto, o bicudo, arruinou plantas e famílias. Mas agora, desde 2021, existe em Ingá uma interessante articulação entre diferentes setores que faz uma complexa engrenagem agroecológica dar certo.

O governo estadual incentiva a cultura do algodão e oferece assistência técnica, enquanto a prefeitura fornece terra ou identifica proprietários que possam cedê-las para produção, e envia defensivos agrícolas naturais, tratores e mão de obra. Os produtores rurais, organizados em cooperativa, trabalham em parceria. Diferentes empresas garantem a compra do algodão, produzindo fios, tecidos e fazendo as roupas chegarem até o exterior.

Desfile de moda com roupas de algodão agroecológico em Ingá, na Paraíba. Foto: Beatriz Santomauro.

No campo, onde tudo começa

Maria do Socorro da Silva Nascimento, a dona Nenê, é a responsável pela plantação que compõe o cenário do desfile de moda no chamado Dia da Colheita. Agricultora desde criança, há três anos ela faz o cultivo orgânico consorciado com jerimum, fava, milho e feijão. O resultado está no seu sorriso, no campo florido e no bolso um pouco mais cheio.

Ela aprendeu com técnicos da Empaer (Empresa Paraibana de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária) como evitar o ataque do bicudo, e recebe um extrato natural, de nim e pereiro, para controlar a praga. Dona Nenê não é a proprietária dessas terras, mas pode utilizá-las sem custo em parte do ano. Para ela, a rotina é quase sempre a mesma: acorda às 4h e segue de carroça com o marido até a lavoura. No rancho de pau-a-pique entre as plantações, faz café e almoço.

“Cozinho um pouco e vou pra terra. Minha vida é muito corrida, porque limpo o mato, arranco toco, faço tudo. O dia passa e fico entre o campo e o fogão até as 5 da tarde. Antes ia pro forró no domingo, mas agora não mais”, conta Nenê, e mesmo morando a cerca de uma hora de João Pessoa, não conhece o mar. Ela gosta de ver o desfile de moda em volta de sua plantação: “É uma alegria muito grande saber que o algodão das roupas vem da mão da gente”.

Terminada a safra, já começa novo ciclo. “Neste ano a chuva caiu, nem muita e nem pouca, como deve ser. Deu bicudo, mas a gente coloca mistura do mato, feita aqui mesmo, e dá certo. O algodão é do bom, sem veneno. A gente trabalha muito, mas no final sobra alguma coisinha”, conta a agricultora, prestes a completar 60 anos.

Maria do Socorro da Silva Nascimento, dona Nenê, produtora de algodão em Ingá (PB). Foto: Beatriz Santomauro.

Nos bastidores, organização e novidades no beneficiamento

Natália Keli de Lima Araújo, engenheira agrônoma e gestora da Itacoop (Cooperativa dos Agricultores Familiares de Ingá e Região), apoia os 54 cooperados de 44 famílias de Ingá, incluindo Dona Nenê. Esses números vêm crescendo: eram 13 famílias em 2021, quando a organização foi criada, e novos interessados para 2024 não param de aparecer graças à produtividade crescente da agricultura familiar e o apoio para produzir e vender.

O algodão faz parte da história de Natália: “Desde pequena eu ia nos campos, mas na universidade estudei a praga do bicudo e os problemas trazidos pelos agrotóxicos. Hoje em dia vejo como pesquisas científicas e novas modalidades de plantio possibilitam cultivo sem irrigação, viáveis para o produtor, o meio ambiente e a economia”.

Além do desfile de moda, a programação do Dia da Colheita inclui palestras, venda de roupas, rendas e artesanato. Natália percorre radiante o evento e vibra com as conquistas em tão pouco tempo. Na caixa de som, mais Gonzaga: “Quando chega o tempo rico da colheita, trabalhador vendo a fortuna, que beleza, chama a família e sai, pelo roçado vai cantando alegre, ai, ai, ai, ai”.

O algodão que já nasce colorido é uma variedade aprimorada geneticamente pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desde 2000, que produziu fios mais resistentes em cinco tons, do verde-claro ao marrom. No dia a dia, é a Empaer, órgão do governo estadual, quem acompanha o produtor rural. Hudson de Souza e Silva, técnico da instituição, explica: “Os produtores que estão nessa cultura desde 2021 continuaram nos anos seguintes, sem rotatividade dos envolvidos. É, portanto, viável, e quando a gestão pública e agricultores estão juntos, o trabalho evolui”.

Algodão colorido produzido em Ingá (PB). Foto: Beatriz Santomauro.

Uma grande novidade marca esta safra. Severino Vicente da Silva, o seu Biu, presidente da Itacoop, está diante da nova descaroçadeira que faz o beneficiamento da rama de algodão, separando pluma, caroço e resíduos e preparando o produto para a comercialização. A máquina de 32 toneladas e seis metros de altura vai reduzir o tempo de trabalho, de oito meses para três dias, e ainda garantir um padrão de qualidade superior.

Também para isso a articulação foi essencial: a prefeitura recuperou o terreno para instalação do maquinário e as empresas Companhia Industrial Cataguases (de Minas Gerais, que transforma a pluma do algodão em fios) e Dalila Têxtil (de Santa Catarina, que faz os tecidos), reformaram o galpão e adquiriram o equipamento, dando cinco anos de prazo de pagamento para a cooperativa de agricultores.

Seu Biu está satisfeito: “Antes a gente plantava, colhia, ensacava, entregava as sacas no armazém e ia embora. Mas daí o bicudo destruiu tudo e há 40 anos não tínhamos mais algodão. Desde 2021 é diferente: os gastos e os ganhos são de todos, temos essa comemoração da colheita, e a gente consegue negociar o preço direto com o comprador, sem atravessadores. O trabalho é duro, ontem fazia 45 graus, mas a gente tem mais força. Esperamos trazer mais famílias para o campo, comprar nossas propriedades e ter incentivo para produzir.”

Plantação de algodão agroecológico em Ingá (PB). Foto: Beatriz Santomauro.

Instituições mobilizadas em uma cuidadosa costura

O prefeito de Ingá, Robério Burity, é o anfitrião do Dia da Colheita e veste um elegante paletó de algodão orgânico mesmo no calor paraibano. Nas palestras, apresenta convidados da iniciativa privada, governo, certificadora de sustentabilidade, bancos (do Nordeste e do Brasil) e instituições que prestam apoio para produção ou venda (Sebrae, Embrapa, Empaer, ApexBrasil, Abrimos e Senai).

“Estamos em um projeto sério, de responsabilidade, com envolvimento de União, estado e município, o que muda a vida das pessoas”, diz o prefeito diante da mesa composta majoritariamente por homens. André Klein, da Dalila Têxtil, complementa: “Falamos tanto de ESG nas empresas, mas neste projeto eu enxergo o S, da dimensão social. Aumentando a escala de produção do algodão, conseguiremos tornar sustentáveis os custos fixos e fazer uma transformação social em Ingá”.

Uma das grandes responsáveis por unir esses diferentes atores é Francisca Vieira, presidente da Associação Brasileira da Moda Sustentável (Abrimos) e fundadora da Natural Cotton Color, marca responsável por grande parte das roupas do desfile. A empresária é pioneira no uso de algodão orgânico desde 2005, leva sua alfaiataria de luxo com rendas e bordados locais para eventos de moda em todo o mundo, exporta para mais de 10 países e investe na certificação de sustentabilidade Friend of The Earth, que acompanha o processo completo de produção, do campo ao produto final.

O crescimento da produção do algodão paraibano e da visibilidade para o público também é de responsabilidade de Armando Dantas, proprietário das marcas Terra do Sol e Santa Luzia Redes e Decoração. Suas redes, tapetes, toalhas, colchas e produtos de decoração são feitos com algodão agroecológico e fios reciclados (mesclados com fibra de garrafa pet), exportados para mais de 20 países e tendo o Reconhecimento de Excelência Artesanal do Cone Sul, validado pela Unesco.

O algodão agroecológico usado em suas peças é produzido em vários municípios paraibanos, inclusive por agricultores quilombolas e por assentados rurais. Aliás, é em Itatuba, vizinha a Ingá, que Armando está organizando uma festa para comemorar a safra, com direito a rubacão, prato típico do sertão paraibano, para os agricultores. É hora de se reunir e incentivar o trabalho, como canta Luiz Gonzaga: “Sertanejo do norte, vamos plantar algodão, ouro branco que faz nosso povo feliz, que tanto enriquece o país”.

Armando Dantas, fabricante de redes à base de algodão agroecológico. Foto: Beatriz Santomauro.

De olho no futuro

Elis Janoville, paraibana produtora de moda que vive na França, finaliza o Dia da Colheita com grande sorriso no rosto. Ela é a organizadora do desfile e diz nunca ter visto uma passarela montada em um ambiente como este, ao ar livre e na plantação.

Assim como tantos participantes apontam ao longo do evento, essa engrenagem que envolve organização dos produtores rurais, governo e iniciativa privada ainda tem espaço para se desenvolver.

As expectativas para os próximos anos são muitas: ter máquina para processar o caroço do algodão e destiná-lo para a alimentação animal ou extração do óleo para uso cosmético; conseguir certificações internacionais, com rastreamento da cadeia de produção para ampliar a venda do produto em um mercado qualificado; estruturar a cooperativa para que tenha autonomia financeira e técnica; ter acesso garantido às sementes do algodão orgânico; e possibilitar que os agricultores sejam proprietários de suas terras.

Mais do que cansada pelo dia, Elis está confiante: “É emocionante ver a mudança de vida que os produtores rurais já tiveram. Tem quem comprou terreno, reformou casa, adquiriu moto e automóvel, se organizou para ajudar os filhos. Eles estão revivendo o passado, em que o algodão dava lucro, mas refazendo uma história. A agricultura de subsistência garante a comida no prato, o algodão dá dinheiro e o uso de defensivos naturais gera saúde”.

https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2021/12/projeto-de-algodao-agroecologico-em-mg-resgata-tradicoes-e-garante-segurancas-alimentar/

Imagem do banner: Plantação de algodão agroecológico em Ingá (PB). Foto: Beatriz Santomauro.

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