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Sofrimento animal em eventos no Nordeste: defensores cobram fiscalização

Em uma vaquejada, vaqueiros cercam o boi e derrubam o animal segurando-o pelo rabo, o que leva, em muitos casos, à quebra da cauda. Foto: Tatiana Azeviche

  • Relatos de defensores animais afirmam que cavalos são forçados a percorrer longos trajetos, sem água e comida, rumo à Romaria de São Severino dos Ramos, evento religioso-cultural realizado em Paudalho, Pernambuco.

  • Nas vaquejadas, eventos de grande popularidade em todo o Nordeste, os bois são submetidos a quedas e fraturas para divertimento do público; o STF discute a inconstitucionalidade da prática.

  • O bem-estar animal está previsto na Constituição, e Pernambuco possui um Código Estadual de Proteção aos Animais; segundo defensores animais, falta rigor na fiscalização durante os eventos.

Todos os anos, entre setembro e janeiro, o Santuário de São Severino do Ramos, em Paudalho, Pernambuco, a 46 km de Recife, recebe centenas de romeiros. Eles vêm de vários lugares do Nordeste, muitos fazendo o trajeto a cavalo ou de carroça. Defensores de animais relatam que têm sido cada vez mais frequentes casos de cavalos que chegam ao evento agonizando, esgotados por longos trajetos que são forçados a percorrer, famintos e desidratados, por não terem acesso a água, e feridos por objetos para impor-lhe comandos e forçá-los a trotar mais rápido.

Há um vídeo, de 2020, que mostra um cavalo sendo jogado da ponte do município de Paudalho, ainda vivo. As imagens são chocantes. Agonizando, o animal é jogado em um riacho com pouco volume de água para morrer lentamente. Segundo romeiros e ambientalistas ouvidos, o animal havia percorrido um longo trajeto, sem água e alimento, o que o levou ao esgotamento crítico.

De acordo com o ambientalista e membro do Fórum de Bem-estar Animal de Pernambuco (Febema), Alexandre Moura, durante muito tempo os eventos tradicionais foram vistos como divertidos e prazerosos apenas sob a perspectiva do público, mas não do bem-estar animal. “Muitos condutores andam alcoolizados, guiando os animais com objetos como espora, chicote, que provocam dor e ferimentos”, critica.

Alexandre reforça que os maus-tratos têm sido comuns também com animais que conduzem as carroças. “Muitos deles carregam excesso de peso e são feridos pelo freio professora [instrumento colocado na boca do cavalo para comandar seus movimentos]”, complementa.

Membros do Febema têm cobrado a instalação de postos de fiscalização com a presença da polícia ambiental de Pernambuco para impedir esses maus-tratos. “Esses eventos são tradicionais, vão continuar, mas é preciso que seja feita fiscalização, que haja abordagem policial para averiguar as condições dos animais”, defende Moura.

Ainda de acordo com Alexandre, outra grande preocupação diz respeito à fiscalização das condições sanitárias dos animais. “É preciso saber se esses animais estão vacinados, ou seja, imunes a zoonoses, doenças que podem afetar os seres humanos”, destaca.

O ambientalista recorda que o Febema cobrou a adoção de um protocolo de combate aos maus-tratos animais durante reunião do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). No Poder Legislativo, os membros afirmaram ter contatado parlamentares para buscar apoio às medidas de proteção animal nesses grandes eventos.

Bem-estar animal previsto na Constituição

A proteção animal está prevista na Constituição de 1988. O Artigo 225, Inciso VII, afirma que cabe ao poder público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”, diz o texto.

O estado de Pernambuco possui o Código Estadual de Proteção aos Animais, que veda condutas que imponham aos animais esgotamento físico. O inciso 3 do artigo 12, por exemplo, afirma que é proibido “fazer viajar animal a pé por mais de 10 (dez) quilômetros sem lhe dar descanso”.

Quando surgiu, o Santuário de São Severino dos Ramos fazia parte das propriedades da família Cabral de Melo. Um sacerdote e membro da família, que vivia no Engenho Ramos, recém-chegado da Europa, presenteou a matriarca da família com uma imagem de São Severino. A fama de que a imagem se tratava do corpo imaculado de Cristo e que vertia sangue ganhou os quatro cantos, sendo balizada por uma série de milagres que foram atribuídos ao local. Assim surgiu a romaria.

Hoje o local onde se encontra o santuário foi adquirido pela prefeitura de Paudalho. A Mongabay consultou a Secretaria de Turismo do município para saber se o órgão faz o controle do fluxo de romeiros, se tem ciência dos maus-tratos aos animais relatados aqui e registrados no vídeo e se realiza algum tipo de fiscalização contra esse tipo de prática. Até o fechamento desta reportagem, não obtivemos retorno do nosso contato.

O freio professora fere o focinho do cavalo sempre que o animal recebe o comando; a dor provocada pelo ferro, em contato com o focinho, o faz obedecer à vontade do vaqueiro. Foto: VFPN

A reportagem também fez contato com a Polícia Militar Ambiental de Pernambuco, responsável pela Companhia Independente de Policiamento do Meio Ambiente (Cipoma). Perguntamos se órgão já foi acionado para averiguar as denúncias de maus-tratos no evento e se há algum canal de denúncias para esse tipo de prática. Por e-mail, o órgão informou que “no momento do flagrante de maus-tratos, a população deve ligar para o 190 para que uma equipe possa ir ao local realizar a condução do infrator”.

Ainda segundo o texto, “as secretarias municipais de meio ambiente devem ser acionadas para remoção do animal e adoção das medidas de cuidados pertinentes”, diz outro trecho do texto. Por fim, a nota explica que a Polícia Militar possui atuação definida no combate ao tráfico doméstico, mas “está sempre pronta para agir de forma subsidiária e em apoio aos órgãos municipais no trato com animais domesticados”, conclui a nota.

Fizemos contato ainda com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE). O órgão trata da pauta do sofrimento animal por meio do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (CAO Meio Ambiente). Por telefone, a assessoria de imprensa informou que não teve atuação em relação aos casos de maus-tratos ocorridos na Romaria de São Severino dos Ramos.

Nas vaquejadas, o sofrimento do boi

Por outro lado, a assessoria informou estar atuando em relação ao sofrimento animal ocorrido em vaquejadas. O órgão enviou uma nota técnica que orienta a atuação dos promotores municipais a cobrar o cumprimento de normas de proteção animal previstas no Regulamento da Associação Brasileira de Vaquejada (Abvaq).

A vaquejada é uma atividade muito popular na região Nordeste. Ela é inspirada numa prática muito comum no cotidiano do vaqueiro, que derrubava o boi jovem para vaciná-lo, medicá-lo ou aplicar qualquer outro cuidado.

Com o passar do tempo, essa atividade passou a ser praticada como esporte e ganhou ares de grande evento, com premiações de até meio milhão de reais. Atrelando grandes shows à programação, as vaquejadas, que ocorrem o ano todo em várias cidades do Nordeste, atraem multidões.

Na competição, o vaqueiro é desafiado a mostrar suas habilidades para derrubar o boi, competindo com outros vaqueiros. Na região Nordeste, de janeiro a dezembro, ocorrem, no mínimo, três grandes vaquejadas por mês.

Incrustada na cultura sertaneja, a vaquejada é um evento que agrada grande parte da população de todas as gerações. Mas o que é divertido para o público e satisfatório para o vaqueiro causa sofrimento ao animal.

“O animal é colocado em condição de angústia sem razão. A queda [momento em que o vaqueiro mostra valentia sobre o boi] é uma condição de submissão na qual nenhum ser vivo gosta de ficar. As consequências são fraturas na pata e a quebra da cauda do animal. É diversão para o público, mas para o animal é um sofrimento”, analisa Alexandre.

Em outubro de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STF) considerou inconstitucional a prática da vaquejada, justamente por considerar que esta provocava sofrimento animal. A votação, de 6 votos contra 5, derrubou a lei estadual número 16.321, de 2017, que considerava a vaquejada uma prática desportiva e cultural.

Logo após a decisão do STF, o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 304/2017, que viabilizou a vaquejada “ao considerar não cruéis as práticas desportivas com animais, desde que sejam manifestações culturais”.

Já em 2019 foi aprovada a Lei 13.873, que regulamenta a atividade de vaquejada e prevê normas de proteção animal. Em maio deste ano, estava na agenda do STF a votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5728), com o propósito de decidir sobre a viabilidade da PEC. A ADI foi retirada da pauta de votação do dia 26 de maio deste ano e não voltou a ser analisada.

Boi com a cauda quebrada e decepada após participar de disputa de vaquejada. Foto: VFPN

Isso nos traz de volta ao termo de cooperação técnica firmado entre o Ministério Público Estadual de Pernambuco (MPPE) e a Associação Brasileira de Vaqueiros (Abvaq). De acordo com a nota técnica, os defensores públicos dos municípios do estado são orientados a cobrarem o cumprimento das regras previstas no manual de bem-estar animal da Abvaq. O documento determina, por exemplo, o uso do protetor de cauda e a oferta de alimentação e água ao animal.

Na avaliação da médica veterinária e diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Vânia Plaza Nunes, as medidas previstas na lei não evitam o sofrimento animal. “O protetor de cauda é um tubo de plástico, com coloração opaca e um velcro em cima. Se houver um pequeno sangramento ou o rabo do animal for arrancado, como ocorre na maioria das vezes, ninguém vê, pois é tudo muito rápido”, explica.

No entanto, a defensora explica que nos bastidores, ou seja, no local onde os animais ficam concentrados antes e logo após a prova, os problemas persistem e são notórios.  “Eu tenho vários colegas veterinários que foram chamados para fazer perícia e é unânime; não existe vaquejada sem que se submeta o animal ao sofrimento. Não é romantismo quando você estuda a fisiologia e o comportamento animal, e percebe os sinais que o animal emite”, reforça Vânia.

Entramos em contato com a Associação de Vaquejada do Brasil (Abvaq), mas até o fechamento desta reportagem não obtivemos retorno.

Imagem do banner: Em uma vaquejada, vaqueiros cercam o boi e derrubam o animal segurando-o pelo rabo, o que leva, em muitos casos, à quebra da cauda. Foto: Tatiana Azeviche

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