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Belém: população vizinha ao aterro de Marituba clama pelo direito de respirar

Aterro sanitário de Marituba. Foto: João Paulo Guimarães

  • O aterro sanitário de Marituba recebe desde 2015 os resíduos sólidos dos municípios de Belém, Ananindeua e Marituba, no Pará. Falhas no licenciamento ambiental permitiram que o empreendimento fosse instalado a apenas 30 metros da comunidade local.

  • Moradores reclamam do forte odor em casa, provocado pela presença de gás sulfídrico, substância conhecida como “gás da morte” pela toxicidade em altas concentrações.

  • Além de doenças respiratórias, a comunidade sofre também com problemas digestivos, provavelmente causados pela má qualidade da água; em Marituba, 68% da população não tem acesso à água.

Em 2015, o aterro sanitário de Marituba iniciou suas atividades de recebimento dos resíduos sólidos de Belém do Pará, Ananindeua e Marituba. A partir daí, a vida das pessoas que moram na região nunca mais foi a mesma. Doenças e desvalorização de imóveis são alguns dos problemas que o aterro trouxe para quem mora na área próxima ao empreendimento — que deveria estar a pelo menos 1 quilômetro de distância da área urbana.

O mau cheiro constante e os impactos socioeconômicos e ambientais se misturam com a falta de saneamento básico, o que confunde a população sobre quem culpar pelo adoecimento de adultos, crianças e idosos em todos esses anos que o aterro vem funcionando de forma irregular e colecionando processos, que entram inclusive no âmbito criminal.

Placa na entrada no aterro sanitário de Marituba. Foto: João Paulo Guimarães

O aterro, situado na periferia daquela que será a sede da COP 30, a conferência da ONU para o clima, deveria ter encerrado suas atividades no dia 31 de agosto deste ano, conforme acordado em 2021 entre a empresa responsável, a Guamá Tratamento de Resíduos, e os municípios da região metropolitana de Belém. O motivo seria a divergência quanto ao preço pago por tonelada de lixo à empresa, que foi firmado em R$ 124,55.

A empresa não achou justo o valor decidido e se negou a continuar as atividades nesse que é o único aterro com estrutura para receber resíduos em toda a região da capital paraense e entorno. De acordo com um pedido de tutela, a empresa exigia “um reajuste na ordem de R$ 188,34 por tonelada destinada ao aterro de Marituba, sem a qual aduz que não será possível discutir os demais temas do acordo proposto e demais condições, inviabilizando uma nova prorrogação das atividades do aterro sanitário.”

O pedido de tutela da Guamá foi deferido e, no próprio 31 de agosto, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará decidiu acatar o pedido dos municípios de Belém, Ananindeua e Marituba para que o prazo de funcionamento do aterro fosse prorrogado por três meses. No início de novembro, porém, a Guamá decidiu paralisar o recebimento de resíduos sólidos e lixo doméstico no aterro.

Gás da morte em casa

Jacimar Silva da Silva, o marido e filho do casal acordam todos os dias às cinco da manhã. Eles são forçados a levantar-se da cama porque o cheiro de enxofre e ovo podre que invade a casa, assim como a rua, não os deixa dormir. As janelas da casa são vedadas com panos para que o odor de gás sulfídrico não invada a residência, mas não adianta.

O gás conhecido como “gás da morte”, por ser altamente tóxico em grandes concentrações, adentra a casa deles e de seus vizinhos. Jacimar, cansada de sofrer com a situação de sufoco diário, fundou a associação Donas de Casa à Luta junto de outras mulheres que fazem parte dos conjuntos Albatroz I e Albatroz II, no bairro de Santa Lúcia, situados a apenas 30 metros do aterro. Jaci, como gosta de ser chamada, diz que sofre de dores de cabeça diárias, enjoo constante, mal estar, dores nas costas na região do pulmão e falta de ar, além do cansaço.

“O crime está aqui já comprovado e o povo de Marituba não quer se manifestar por comodidade ou porque estão de mudança”, diz Jaci. “Às vezes dá vontade de desistir porque parece que nada vai se resolver e ninguém nos ajuda. Se você for no igarapé onde a gente costumava tomar banho, você vai ver que a água não presta mais, está podre. Nossa prefeita ficou contra nós nessa última ação que mantém o aterro funcionando.”

Jacimar Silva da Silva, fundador da associação Donas de Casa à Luta. Foto: João Paulo Guimarães

Breno Imbiriba, professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, explica que todo aterro sanitário produz basicamente dois gases, o metano e o dióxido de carbono, além de uma pequena fração de outros gases — em torno de 2% a 3%.  Um deles é o gás sulfídrico, cuja presença o próprio Breno constatou através de medições feitas em 2019 no centro comunitário do Conjunto Albatroz I.

“Eu passei a me dedicar a essa questão do aterro devido o clamor público”, diz Breno. “Nós fizemos duas campanhas longas para determinar o gás no ar da região e fizemos medições na chuva também porque a chuva potencializa os episódios de odor. Observamos gás sulfídrico, assim como o metano.”

Breno explica que o metano é um gás de efeito estufa, e que por isso é necessário queimá-lo e transformá-lo em CO2 para não ir para a atmosfera. O aterro sanitário de Marituba tem esse sistema de queima, mas às vezes acontece de o gás escapar. A isso, Breno chama de “gases fugitivos”: “Um aterro sanitário tem que ser impermeabilizado por baixo, por causa do chorume, e ser fechado por cima também. Se por acaso o sistema de cobertura não for impermeabilizado o suficiente, vai haver uma certa quantidade de gases fugitivos”.

Edinamar Amorim é outra moradora do Conjunto Albatroz I, onde vive com sua filha e seu neto, que tem asma. Como Jaci, ela também vê sua vida afetada pelo gás da morte. “Hoje pela manhã senti o cheiro de gás dentro de casa e me assustei. Fui ver se estava vazando, mas não estava. Aí fui lá fora e vi que estava vindo de lá [do aterro]”, conta. “É um cheiro de carniça podre e não tem hora pra acontecer. Dá muita dor de cabeça e a gente acorda na hora se estiver dormindo.

Edinamar Amorim, moradora do Conjunto Albatroz I, vizinho ao aterro de Marituba. Foto: João Paulo Guimarães

Segundo Giovanni Chaves Penner, engenheiro sanitarista que em 2019 fez um trabalho para o Ministério Público quanto aos impactos ambientais da atividade, o erro está no licenciamento ambiental, que permitiu que o aterro fosse construído a menos de 30 metros dos conjuntos Albatroz I e II, quando deveria estar a pelo menos 1 quilômetro. Além disso, ele explica, “o aterro foi implantado num ponto em que a direção predominante do vento vai para a comunidade, então eles vão sofrer, sim, as consequências da questão do odor”.

Nos últimos anos, a Guamá Tratamento de Resíduos foi alvo de uma série de processos judiciais movidos pelo Ministério Público e organizações não governamentais em virtude das violações ambientais e de saúde pública. A empresa já autuada por 14 infrações e responde por diversos processos por poluição e despejo irregular de chorume.

Água de má qualidade

Edinamar também reclama da água em sua casa, que diz causar coceira e dor estomacal. Por causa disso, parou de usar a água da torneira fervida e passou a usar água mineral para consumo e preparação de alimentos.

Durante a reportagem, visitamos a casa onde vivem Raimundo Mota, sua mulher Edina e seu filho Moisés, de 4 anos. Enquanto conversamos com o casal, o menino faz caretas e põe a mão no abdome, indicando que vai ao banheiro. Raimundo conta que Moisés sofre há mais de um ano de uma forte dor intestinal, que o obriga a ficar constantemente vestido de fraldas. Os médicos concluíram que a origem dos problemas é a qualidade da água e sugeriram que a família se mudasse como forma de preservar a saúde do menino.

Moisés, de 4 anos, filho de Raimundo Mota, tem que usar fraldas de modo permanente por causa de problemas intestinais, provavelmente causados pela qualidade da água. Foto: João Paulo Guimarães

Giovanni acha improvável que a água na casa de Raimundo e Edina tenha sido contaminada ou afetada de alguma forma pela atividade do aterro. Ele explica que há uma questão topográfica, ou seja, a comunidade está acima do aterro: “Qualquer coisa que esteja no solo, em água subterrânea ou superficial, não vai caminhar para a comunidade.” Mas há, sim, segundo ele, uma outra questão importante por trás disso: o saneamento básico da região.

A água servida nos conjuntos Albatroz I e II não tem qualidade. A maioria das casas não é atendida pelo sistema de abastecimento municipal e por isso os moradores usam poços artesianos, em geral instalados de modo precário, próximos a fossas sépticas. Ou seja, um dos motivos pela má qualidade da água pode ser a contaminação proveniente do esgoto, embora faltem estudos para confirmar essa hipótese.

Em Marituba, município com cerca de 135 mil habitantes, 68% da população não tem acesso a água, enquanto 89,5% dos moradores não têm coleta de esgoto.

Uma das médicas do município de Marituba avisou aos pais de Moisés que um dos exames indicava contaminação por chumbo, mas que não poderia comprovar a afirmação e nem entregar nenhum exame, pois ela trabalhava para o município. Por outro lado, o Laboratório Central do Estado do Pará (Lacen) examinou a água de uma das torneiras da casa de seu Raimundo, mas não identificou nenhum problema ou contaminação na água.

Raimundo Mota, morador de comunidade vizinha ao aterro de Marituba. Foto: João Paulo Guimarães

Mas Raimundo sabe que algo está errado. “A gente toma água aqui e parece que o estômago vai inchando”, conta. “O Moisés fica com diarreia direto. Quando a gente tem água mineral, melhora um pouco. A prefeitura veio e fez exame da minha água aqui e eu acho que eles viram alguma coisa na água que não quiseram me mostrar.”

Ao ser questionada sobre sua relação quanto ao mau cheiro do aterro, a esposa de Raimundo resumiu em uma palavra. “Sufocante. Não gosto nem de falar sobre isso. dói demais essa humilhação.”

Procurada pela Mongabay, a Guamá Tratamento de Resíduos respondeu em nota que “cumpriu todas as premissas exigidas para a construção de aterros sanitários determinadas pela Legislação Brasileira. No processo de licenciamento em Marituba, a distância entre o local onde se deposita os resíduos e as comunidades estava de acordo com a normativa da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), bem como com o estabelecido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS).”

A empresa também disse que “a Guamá atua na prevenção da geração de odor nas suas operações, com todas as lagoas de armazenamento de chorume cobertas, resíduos diariamente cobertos com solo e cobertura do maciço encerrado com mantas. Além disso, as frentes de disposição dos resíduos são as menores possíveis e há desodorizadores pulverizados no empreendimento.” E acrescenta que, “no mês de outubro de 2023, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semas) – que é o órgão fiscalizador das atividades do empreendimento e que faz o seu monitoramento constante – emitiu uma nota técnica informando não ser possível afirmar que o aterro sanitário seja o responsável pela suposta presença de gases metano e sulfídrico no ar dos locais investigados pela pesquisa.”

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Imagem do banner: aterro sanitário de Marituba. Foto: João Paulo Guimarães

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