Pressionadas por inúmeras ameaças, três Terras Indígenas localizadas em diferentes biomas brasileiros (Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica) estão entre as dez iniciativas aprovadas pelo Programa Polinizando a Regeneração.
Os projetos comunitários, em diferentes estágios de execução, funcionam como vitrines que demonstram como essas ações, associadas à produção alimentar agroecológica, podem gerar renda e melhorar a qualidade de vida, principalmente em cenários de crise climática.
Esse movimento começou com um projeto de financiamento coletivo de meliponicultura na Amazônia há quatro anos, se fortaleceu e levou à criação da Rede Meli Brasil, que já conta com 53 comunidades tradicionais envolvidas com a criação de abelhas nativas no país.
Ana Rosa de Lima, engenheira de materiais brasileira radicada na Alemanha, nem imaginava que uma iniciativa de financiamento coletivo para um projeto de meliponicultura na aldeia Mojkàràkô, do povo Kayapó, no Pará, em 2019, inspiraria um movimento comunitário de criação de abelhas nativas que, quatro anos depois, já se estende por todos os biomas do país e se fortalece como rede de soluções pensadas e geridas pelas próprias comunidades.
Assim foram lançadas as sementes da Rede Meli Brasil, formada até agora por 53 comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas e camponesas que aliam polinização a regeneração florestal para gerar renda, reverter degradação ambiental causada por invasores e fortalecer a segurança alimentar pelo sistema agroflorestal.
Desse movimento, foram selecionados dez projetos comunitários pelo Programa Polinizando a Regeneração. A iniciativa foi apoiada pela Fundação Rockefeller após ser submetida pela organização socioambiental Meli Bees, criada na Alemanha por Ana Rosa, em 2020, fruto da demanda por incentivo à meliponicultura após experiência com os Kayapó. Cerca de 50 mil dólares serão destinados diretamente às ações comunitárias selecionadas.
Paralelamente à captação de recursos internacionais, que possibilitou apoiar microprojetos no Brasil, a engenheira conta que foi se ampliando um grupo pelo WhatsApp que funcionou como uma espécie de semente de formação da Rede Meli Brasil.
“Esse movimento foi ganhando uma adesão espontânea de lideranças comunitárias brasileiras interessadas na criação de abelhas”, relata. “Em 2021, tivemos um ano de excelentes experimentações e concluímos como é vital esse espaço de reflexão em rede”, acrescenta. Foi assim que em 2022, das trocas de ideias e saberes, a Meli Bees desenhou o “Polinizando a Regeneração” e foi em busca de recursos para viabilizá-lo.
Como a Rede Meli Brasil funciona como um ambiente colaborativo, especialistas de várias áreas, como as biólogas Ana Paula Cipriano e Silvia Lomba, dão apoio técnico para que as comunidades consigam inserir as ideias que tiveram em formato de projeto que atenda os requisitos das agências e instituições financiadoras. “Já recebemos ideias em áudios de WhatsApp que transcrevemos e formatamos com estrutura de uma proposta de projeto”, exemplifica Ana Rosa.
Tanto a engenheira como as duas biólogas mencionaram, em conversas com a Mongabay, que formatar um projeto nos padrões exigidos por instituições financiadoras representa um grande desafio das comunidades no Brasil. Por isso, parte das ações da rede envolve encontros de debate e capacitação para fortalecer habilidades e protagonismo nas localidades. “O diferencial é perguntarmos para as comunidades o que elas querem e a gente apoia como pode”, afirma Silvia Lomba. “Selecionamos projetos que são como sementes de iniciativas muito promissoras no Brasil”, destaca Ana Paula Cipriano.
No Pará, indígenas Gavião avançam como meliponicultores
A aldeia Tokurykti Jõkrikatêjê é a primeira das 27 aldeias da Terra Indígena Mãe Maria, do povo Gavião, no Pará, a apostar na meliponicultura como atividade econômica aliada à regeneração florestal. Tem 64 colmeias instaladas, quase o dobro do que havia há um ano, quando foi iniciado o projeto em parceria com a Meli. Lideranças comunitárias locais esperam chegar a cem unidades em breve e garantir uma promissora comercialização de mel em 2024. Buscando um diferencial de mercado que envolvesse a cultura indígena, as caixas do meliponário foram pintadas com grafismos característicos dessa etnia por mulheres e crianças, em um movimento liderado pela cacica Tuxati Parkatêjê, entusiasta dessas ações.
Antônio Guajarara, coordenador do projeto, liderança comunitária e casado há três anos com a cacica Tuxati Parkatêjê, afirma que no período experimental foram colhidos dez litros de mel de excelente qualidade para o consumo da própria comunidade indígena, onde vivem oito famílias, totalizando 38 pessoas.
Além de mais interesse de outras aldeias pela meliponicultora, existe muita abelha nativa na TI. Ele considera que essas características também tendem a contribuir para a regeneração de áreas que foram degradadas por criadores de gado invasores de parte do território indígena, retomado na década de 1980. Algumas vêm sendo recuperadas com plantio de espécies nativas da Amazônia, dentre as quais o açaí.
A meliponicultura veio a calhar para incrementar o pomar de açaí com mais de 300 palmeiras que começarão a produzir em 2024. “A presença das abelhas sem ferrão já está fazendo a diferença nas floradas das árvores, visivelmente ampliadas pela polinização”, afirma Antônio.
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Açaí e castanha são roubados das comunidades indígenas
Somada à regeneração de áreas degradadas por invasores no passado e à geração de renda futuramente, a produção de açaí também tem enfoque no abastecimento das comunidades com esse fruto que é parte fundamental da cultura alimentar na Amazônia. Antônio conta que os indígenas da TI Mãe Maria precisam comprar açaí, pois as palmeiras dos seus territórios são saqueadas por grupos criminosos que também roubam castanha e promovem caça ilegal.
Na aldeia, o plantio de árvores deve chegar a 5 mil mudas em cinco anos. Além de açaí, a ideia é plantar cupuaçu, cacau e castanha. O projeto da Meli, segundo ele, foi importante porque veio somar às iniciativas que estavam nos planos da cacica Tuxati. “Hoje esse é um dos principais projetos que estamos desenvolvendo e contribui para abrir os olhos da comunidade. É algo novo que beneficia a mata e a nossa qualidade de vida”, observa Antônio.
“A falta de fiscalização é um problema grave por aqui. Temos denunciado de todas as formas, mas as respostas demoram a chegar. Precisamos urgentemente de proteção territorial. Temos medo de andar na mata e encontrar caçadores e saqueadores”, denuncia o líder comunitário. Segundo ele, tanto a Estrada de Ferro Carajás, da mineradora Vale, como a BR-222, que cortam o território indígena, favorecem a invasão de criminosos. Por isso, mesmo dentro da TI eles não se aproximam das áreas mais próximas de ambas, temendo violência.
O conflito envolvendo a ferrovia foi recentemente abordado em reportagem da Mongabay e outras inúmeras violações sofridas pelo povo Gavião constam em relato documentado pelo Arquivo Nacional.
Sul da Bahia: de terra arrasada a vitrine de potencialidades
Parte da Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu, localizada nos municípios de Pau Brasil, Itaju do Colônia e Camacã, no sul da Bahia, foi invadida por fazendeiros e retomada, em 1982, pelo povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. O processo se arrastou por 30 anos, sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) somente em 2012, quando invasores foram retirados, deixando “um rastro de terra arrasada”, como relata a cineasta e ambientalista Olinda Tupinambá, presidente da Associação Okara Kaapora.
Ao regressar de estudos em Salvador, em 2015, ela enxergou a urgência de investir no tema ambiental no seu território para tentar reverter a degradação existente. “O sistema agroflorestal é a saída para recuperar a terra arrasada”, opina. Além disso, avalia como fundamental a busca por alternativas economicamente compatíveis com a proteção da natureza e da cultura de seu povo, já que o risco de aliciamento de indígenas da TI por fazendeiros continua sendo a principal pressão sofrida.
O projeto em parceria com a Meli é executado em área cortada pelo Rio Pardo, onde foram registrados três anos de fortes secas entre 2016 e 2018. Para Olinda, o cenário deixou mais perceptíveis os efeitos do agravamento da crise climática e a necessidade de recuperação ambiental para fortalecer a resiliência local. Os esforços empreendidos têm alcançado melhores resultados em 2023, ano que segundo relata tem sido mais produtivo para o trabalho de regeneração florestal.
Como parte dos esforços, já foram plantadas cerca de 3 mil mudas de árvores nativas da Mata Atlântica como jenipapo, pau-ferro e jatobá, dentre outras, além de frutíferas como cajá, bananeiras e, ainda, plantas usadas na medicina tradicional indígena. “Os pássaros estão voltando e também têm siriema, coelho e caititu”, exemplifica a ambientalista sobre os efeitos observados.
Como a TI é grande, com mais de 54 mil hectares e cerca de 4 mil moradores, reunir muita gente não é tarefa simples, já que o sistema de transporte local é ineficiente. Por essas e outras limitações, a ambientalista explica que o projeto tem funcionado como uma experiência-piloto. “A gente está no lugar mais seco do território. Se aqui der certo, a gente mostra que em outras áreas vai ser possível também”, analisa.
Ela recorda as dificuldades enfrentadas no começo da missão: “A gente molhava a plantação de balde. Mas nos próximos três meses já vai ser possível colher a produção das bananeiras. Com esses exemplos as pessoas estão querendo fazer o mesmo nas suas áreas. O projeto é para isso. Para mostrar que recuperar a terra sempre vale muito a pena”.
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Trabalho pedagógico com meliponicultura e cozinha comunitária
Como pessoa interessada no papel das abelhas para o equilíbrio ecológico e a produção de alimentos, Olinda Tupinambá passou a estudar sobre meliponicultura. Dessa paixão, tem até agora 20 caixas com colmeias que usa para atividades de educação ambiental na TI, onde recebe alunos de escolas estaduais e municipais.
“Precisamos olhar cada vez mais para os não humanos e entender que somos parte de tudo isso que está na natureza”, diz a ambientalista sobre a atividade que pretende impulsionar cada vez mais. “Queremos dar cursos e contribuir para que as nossas comunidades possam produzir mel de excelente qualidade”, conclui.
No território Tupinambá também está prestes a ser concluído o projeto de uma cozinha industrial comunitária que vai funcionar como espaço colaborativo para trabalhar com ações educativas com enfoque na produção agroflorestal. “Agora é o momento de plantar, recuperar e multiplicar para garantir a autossuficiência no futuro”, adianta a ambientalista. “Queremos produzir sem agrotóxicos, realizar cursos e consumir alimentos mais saudáveis”, acrescenta Olinda.
No processo de preparação de novas roças, ela destaca a valorização dos chamados “guardiões das sementes”, moradores mais antigos que contribuem para perpetuar as sementes tradicionais para as mais novas gerações e o futuro da segurança alimentar a partir de saberes ancestrais.
Articulação comunitária fortalecida no Maranhão
Os esforços de engajamento comunitário para a recuperação florestal associada à criação de abelhas têm surtido efeito na Aldeia Barreirinha, situada na Terra Indígena Arariboia, em região de transição dos biomas Cerrado e Amazônia no Maranhão. Como parceiro da Rede Meli, com projeto iniciado em março, o técnico em agroecologia e líder comunitário Jonas Guajajara informa que a meta é atingir cem caixas com colmeias ainda este ano. Isso significa dobrar a quantidade atual e abrir novas perspectivas de geração de renda com a produção de mel esperada para o ano que vem.
Para a recuperação florestal na aldeia, já foram produzidas 1,2 mil mudas de árvores nativas, como as palmeiras juçara e bacaba, das quais 600 foram plantadas. “A produção de mudas de juçara próxima ao meliponário foi uma ideia brilhante que tivemos, pois as abelhas visitam as flores dessas palmeiras”, opina Jonas. “A gente vem observando e ouvindo histórias dos nossos avós de que aqui tudo era floresta com igarapés e espécies que estão desaparecendo. Por isso, o esforço para recuperar a mata”, acrescenta.
O trabalho começou em cinco das dez regiões nas quais se inserem a TI Arariboia, já que as demais estão a mais de 100 quilômetros e a distância inviabilizou o amplo envolvimento comunitário. O que faltou ficará para uma outra etapa. Até 2024, deverão ser produzidas mais 360 mudas, em seis aldeias, além de ampliadas as colmeias pelo projeto da rede. Embora ainda não tenham sementes de buriti e bacuri, as de buritirana, murici, bacabi, açaí e cupuaçu têm sido coletadas e distribuídas para plantio.
Entusiasta da criação de abelhas, iniciativa que tem buscado incentivar na TI Arariboia, Jonas relata que da sua produção experimental rendeu 8 litros de mel no ano passado, ao preço de 140 reais por litro. “É uma atividade que tem tudo para dar certo”, opina.
O interesse pela meliponicultura foi despertado desde 2020, por meio de cursos e oficinas de capacitação do Programa Maranhão Verde, do Governo do Estado, no qual se insere um componente indígena. Nessa iniciativa, a aldeia Barreirinha passou a produzir artesanato, criar abelhas sem ferrão e animais de pequeno porte, além de fazer roças agroecológicas.
Como em 2023 o programa não funcionou, Jonas conta que, como tinha passado a acompanhar o grupo criado pela Rede Meli, em 2022, a ideia foi dar continuidade às ações já iniciadas. Durante os cursos, “muitos parentes tiveram interesse despertado e perderam o medo de manusear as colmeias”, afirma.
Ele destaca que em toda TI há abelhas das espécies uruçu-amarela, uruçu-boca-de-renda e tiúba, entre outras. “Quando a gente encontra em alguma árvore, a gente deixa. Se estiverem em tronco seco a gente tira e leva para as caixas porque sabe que estão vulneráveis”, explica. “Muitas vezes os parentes encontram abelhas em árvores caídas e nos comunicam para que sejam retiradas corretamente e protegidas”.
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Cenário de pressão e violência
O enfrentamento da violência sistemática contra indígenas, provocada por madeireiros e caçadores, é uma realidade agravada no Maranhão nas últimas duas décadas. De acordo com a Plataforma Caci, ocorreram 50 assassinatos de indígenas Guajajara entre 2003 e 2021, dos quais 21 eram da TI Arariboia. Essa base de dados sistematiza informações utilizadas pelo relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A situação ambiental no entorno do território indígena é preocupante. “Enfrentamos tempos difíceis. Com parte da floresta afetada pela degradação, trechos do rio que não secavam, agora já secam”, afirma Guajajara. Embora já perceba sinais positivos de recuperação ambiental com o projeto em andamento, ele destaca que existem muitos desafios a superar.
Como exemplo, menciona que o Rio Zutiua é o limite que separa a área urbana do município de Arame da TI Arariboia. Nos últimos anos, dentre as inúmeras pressões sofridas pelas comunidades indígenas, fazendeiros passaram a desrespeitar esse limite e a estender suas atividades para áreas que pertencem à TI. Jonas conclui que se a Terra Indígena não existisse, certamente o que resta da floresta já teria desaparecido completamente nos municípios onde seus territórios se inserem (além de Arame, Buriticupu, Amarante do Maranhão, Bom Jesus das Selvas e Santa Luzia), totalizando 413 mil hectares.
Imagem do banner: Oficina de meliponicultura na aldeia Tokurykti Jõkrikatêjê, da Terra Indígena Mãe Maria, do povo Gavião, no Pará, envolve novas gerações em ações educativas sobre a importância das abelhas nativas em projeto da Rede Meli Brasil em parceria com a ACT Brazil. Foto cortesia de Rayda Lima.