A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.
O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.
Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.
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O sistema de produção mais importante na Pan-Amazônia, quando medido pelo PIB, é o cultivo de culturas anuais: principalmente soja, mas também milho, arroz, sorgo, trigo e algodão. No Brasil e na Bolívia, o cultivo anual é organizado em torno da soja, porque os mercados de exportação oferecem o potencial de um retorno substancial sobre o investimento.
A agricultura em escala industrial é muito mais arriscada do que a pecuária, pois exige um investimento de capital considerável para o plantio e a colheita de uma safra. Uma colheita bem-sucedida depende do clima, que é imprevisível, e do preço, que é determinado pelos mercados de commodities, que são notoriamente voláteis. Uma má colheita durante a baixa do ciclo de preços das commodities pode levar um agricultor à falência, especialmente aqueles que dependem excessivamente de crédito de curto prazo para financiar as operações. O aumento do risco é compensado, no entanto, pelo potencial de retorno.
O custo de produção em 2020, incluindo combustível, fertilizantes, pesticidas, mão de obra e atividades na fazenda, foi de aproximadamente US$ 700 por hectare no Mato Grosso. A produtividade varia de duas a quatro toneladas por hectare, enquanto o preço internacional da soja tem oscilado entre US$ 200 e US$ 600 por tonelada desde 2000. Os agricultores do interior da América do Sul recebem um preço com desconto que reflete o custo do transporte até o terminal de exportação, onde é carregado em navios oceânicos de transporte de grãos. Em um ano bom, os produtores de soja podem dobrar seu capital, mas em um ano ruim, alguns vão à falência. Embora esses cálculos não incluam investimentos de capital em equipamentos agrícolas ou terras, eles revelam o potencial de risco-recompensa do setor.
Embora a cultura da soja seja lucrativa, ela só pode ser cultivada em rotação com outras culturas, devido à proliferação de patógenos de plantas em sistemas de produção de monocultura. Os agricultores da Bolívia e do Brasil realizam duas colheitas por ano, o que também lhes permite distribuir o risco climático entre uma colheita de verão (estação úmida) e uma de inverno (estação seca). Muitos optam por plantar uma cultura de cobertura em uma das duas épocas de cultivo, o que lhes permite melhorar a matéria orgânica do solo e reduzir o risco de ocorrência de pragas.
Os agricultores estão optando cada vez mais por cultivar um grão de ração como cultura rotativa porque isso pode melhorar seus resultados e diversificar suas oportunidades de mercado. O milho é a cultura de rotação mais comum no Brasil, enquanto o sorgo tolerante à seca é preferido na Bolívia. A rotação de soja com grãos para ração trouxe benefícios substanciais para a economia agrícola, pois aumentou o fornecimento e a acessibilidade de rações para aves e suínos.
A expansão do modelo de produção de soja/milho continua em ritmo acelerado na Amazônia brasileira (HML nº 4, nº 5, nº 6, nº 7, nº 11, nº 12, nº 13, nº 14, nº 15, nº 16 e nº 23) e na Bolívia (HML nº 30 e nº 31). Houve quedas na produção, mas, de modo geral, o setor tem expandido sua pegada espacial ano após ano por mais de quarenta anos. No Mato Grosso, a produtividade média aumentou de cerca de 3,1 em 2000 para 3,5 toneladas por hectare em 2019; os produtores da Bolívia tendem a usar menos fertilizantes e outros insumos e têm uma média de 1,8 a 2,2 toneladas por hectare. Mato Grosso produz cerca de 27% da safra total de soja do Brasil, proporção que se manteve estável na última década, embora a produção total tenha aumentado 50% desde 2010.
Os municípios que mais produzem são Sorriso, Nova Mutum e Nova Ubiratã, situados ao longo da BR-163, ou Diamantino, Sapezal e Campo Novo do Parecis, situados mais a oeste, ao longo da BR-364 (HML#15). Os agricultores de cada um desses municípios colheram entre um e dois milhões de toneladas de soja em 2019. A expansão foi mais acentuada nos municípios associados à BR-158, onde as plantações de soja aumentaram em 500.000 hectares entre 2016 e 2019. Um fenômeno semelhante está ocorrendo em Tocantins, no nordeste do Pará e no Maranhão aproveitando os custos mais baixos de transporte proporcionados pelo Ferrocarril Norte-Sul.
As paisagens com a maior taxa de conversão para soja incluem várias localizadas no centro-norte do Mato Grosso, onde a agricultura se tornou mais atraente após a pavimentação da BR-163. Da mesma forma, a proliferação do cultivo de soja em municípios adjacentes aos portos fluviais dos rios Madeira, Tocantins, Tapajós, Xingu e Amazonas reflete o desejo dos investidores de melhorar os retornos por meio da redução dos custos de transporte; mais surpreendente e preocupante é a instalação de campos de soja em municípios remotos do norte da Amazônia.
O cultivo de soja na Amazônia brasileira foi associado por acadêmicos e jornalistas ao desmatamento no início dos anos 2000, quando o desmatamento anual na Amazônia brasileira ultrapassou 2,5 milhões de hectares por ano. A revelação do desmatamento relacionado à soja coincidiu com um período em que as importações europeias de soja do Brasil atingiram o recorde histórico de 50 milhões de toneladas por ano. A pública associação entre a soja e o desmatamento da Amazônia levou a uma campanha de grande visibilidade pelo Greenpeace e outras ONGs, que resultou na Moratória da Soja.
A Moratória da Soja contribuiu e coincidiu com uma política com várias facetas, chamada de PPCDAm, que foi organizado pelo governo de Lula da Silva para reduzir o desmatamento na Amazônia brasileira. As reduções foram particularmente impressionantes no Mato Grosso, onde o desmatamento por agricultores caiu para quase zero, uma história de sucesso essencial para o futuro de um dos mais importantes setores de exportação do Brasil. No entanto, a mudança real no uso da terra associada à expansão do modelo de produção de soja/milho é uma história mais matizada.
Dos aproximadamente 10 milhões de hectares de soja plantados em Mato Grosso em 2020, cerca de 30% foram cultivados em terras originalmente cobertas por vegetação florestal, enquanto os outros setenta por cento foram estabelecidos em paisagens dentro do bioma Cerrado. Em nenhum dos casos, no entanto , a conversão foi sempre uma operação direta que desmatou a vegetação nativa para estabelecer uma fazenda de soja em funcionamento; aproximadamente 75% da terra envolvida foi primeiramente desmatada para plantar pastagens como parte de uma operação de produção de carne bovina que foi posteriormente convertida para o cultivo de culturas anuais.
Os agricultores se expandem por meio da conversão de pastagens em vez de florestas porque é mais econômico. As propriedades florestais tendem a ser mais remotas, o que aumenta os custos de transporte, e seu desmatamento exige a contratação de maquinário pesado.
A preferência comercial dos agricultores coincide com o interesse dos pecuaristas, que decidem monetizar a valorização do capital que obtiveram por serem pioneiros no estágio inicial. Alguns pecuaristas se mudam para as fronteiras florestais, onde a terra é barata.
Em 2016, a quantidade de pastagens em Mato Grosso foi estimada em aproximadamente 20 milhões de hectares, enquanto o total de terras cultivadas foi relatado como sendo de 10 milhões de hectares. A maioria dos analistas projeta que o modelo de produção de soja/milho continuará a se expandir e a área de pastagem diminuirá no curto prazo. No Mato Grosso, é mais provável que essa expansão ocorra na camada norte dos municípios (HML nº 16), onde (1) as paisagens são adequadas para a agricultura mecanizada porque têm topografia plana e solos profundos e bem drenados, e (2) a terra é de propriedade privada e os agricultores podem se expandir para a região sem violar os critérios da Moratória da Soja.
Da mesma forma, a construção da Ferrogrão catalisará a expansão da agricultura intensiva nessas paisagens anteriormente remotas, que terão uma vantagem devido aos custos mais baixos de transporte. Da mesma forma, se a Ferrovia Paraense for estendida para o sul até a fronteira entre o Mato Grosso e o Pará, as paisagens de criação de gado ao longo da BR-158 provavelmente serão convertidas em terras agrícolas.
A mudança no uso da terra também afeta as bacias hidrográficas que drenam essas paisagens. Tanto o desmatamento quanto a conversão do Cerrado degradam as propriedades físicas da camada superficial do solo, o que torna as terras cultivadas suscetíveis à erosão superficial e aumenta o transporte lateral de nutrientes para a rede de córregos. Isso aumenta o potencial de eutrofização em habitats aquáticos devido ao aumento de nitrogênio resultante do uso de fertilizantes ou de culturas fixadoras de nitrogênio, como a soja.
Os pesticidas estão presentes em todo o sistema aquático, às vezes em níveis que podem representar sérios riscos à saúde. A crescente adoção de sistemas de irrigação por pivô central ameaça diminuir seriamente os fluxos de água, especialmente na bacia do Tapajós.
Na Bolívia, a expansão da soja é, em grande parte, consequência do desmatamento direto, que inclui não apenas as florestas úmidas próximas ao sopé dos Andes, mas também as florestas sazonais e secas da Chiquitania e do Gran Chaco. Ao contrário do Mato Grosso, onde predomina a conversão de pastagens em terras agrícolas, a expansão do cultivo de soja pode estar diretamente ligada a novos desmatamentos. A expansão do setor agrícola tem sido uma das principais prioridades de sucessivos governos, incluindo o de Evo Morales, que adotou uma política para dobrar a área cultivada até 2025.
Apesar das políticas favoráveis, a expansão é limitada pelas particularidades da agricultura na Bolívia. Os produtores enfrentam riscos significativos relacionados ao clima, bem como desafios relacionados à infraestrutura precária de estradas secundárias, instalações de armazenamento inadequadas e políticas governamentais contraditórias que limitam o uso de organismos geneticamente modificados.
Os produtores bolivianos podem competir nos mercados de exportação devido aos solos férteis e às terras baratas, ambos consequência da expansão da fronteira agrícola. Eles também se beneficiam de um sistema de transporte multimodal a granel (ferroviário e hidroviário), que atenua o alto custo do transporte, consequência de sua geografia.
“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).