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Mulheres indígenas marcham novamente pelos direitos dos povos originários

III Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, setembro de 2023. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

  • Buscando consolidar o protagonismo na luta pelo território e a construção do seu lugar político, cerca de 8 mil mulheres indígenas ocuparam Brasília durante a III Marcha das Mulheres Indígenas.

  • Cientes do papel dos povos originários na preservação da biodiversidade, o encontro teve programação para debater emergências climáticas e a importância da participação das mulheres indígenas na Conferência do Clima da ONU, a ser realizada em Belém em 2025.

  • Na iminência da aprovação do marco temporal, a demarcação dos territórios indígenas adquiriu contornos urgentes na marcha deste ano.

“A nossa voz é uma voz política”, afirma Samela Sateré Mawé, comunicadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). E foi ao som dos maracás, cantos e rezos que cerca de 8 mil mulheres indígenas dos seis biomas brasileiros, além de convidadas internacionais de povos originários da América Latina, Estados Unidos, Rússia, Malásia, Uganda, Nova Zelândia, Finlândia e outros, realizaram entre os dias 11 e 13 de setembro em Brasília, DF, a III Marcha das Mulheres Indígenas.

A marcha teve como objetivos fortalecer a atuação política e a ocupação de espaços de representatividade pelas mulheres indígenas, e também iniciar diálogos para a elaboração de políticas públicas para os povos originários dentro e fora de seus territórios, atendendo a demandas específicas de suas realidades. “Precisamos ecoar nossas vozes para que nossos corpos-território se façam presentes em todos os espaços e lugares de tomadas de decisão e poder”, diz Daniele Guajajara, comunicadora da Anmiga.

A realização da I Marcha das Mulheres Indígenas em 2019, e sua segunda edição em 2021, juntamente com a criação da Anmiga, impulsionaram o empoderamento e protagonismo das mulheres indígenas na luta pelos direitos dos povos originários, levando ao surgimento de inúmeras organizações ou departamentos em entidades históricas do movimento indígena para representá-las, alcançando mais de 90 organizações presentes em todos os biomas brasileiros.

I Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida em Brasília em 2019. Foto: Inaê Guion

Em 2022, avançaram ainda mais na representatividade indígena feminina na política ao pleitear 17 candidaturas a cargos de deputadas federais e estaduais. “Testemunhamos a vitória histórica das nossas mulheres Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, que hoje estão nos representando no Ministério dos Povos Indígenas e na Câmara dos Deputados”, destaca a coordenação da Anmiga.

Agora, durante a III Marcha, em uma iniciativa da deputada federal Célia Xakriabá, protagonizaram outro momento histórico ao protocolar um Projeto de Lei de Combate à Violência contra as Mulheres Indígenas, o primeiro escrito em duas línguas indígenas – Akwen e Guarani.

Um ato de resistência em que quebram hierarquias e dicotomias, as marchas se potencializam em um movimento político e de criação de práticas decoloniais que desafiam as narrativas da sociedade em uma necessidade de transformação, oferecendo novas perspectivas. “Mulheres de várias frentes que se juntam para acreditar que é possível construir e trazer nossa voz e nossa luta para a política a partir da nossa realidade local e externa, fora do nosso território”, destaca Puyr Tembé, Secretária Estadual dos Povos Indígenas do Pará, cofundadora da Anmiga e organizadora das Marchas das Mulheres Indígenas.

Sessão solene na Câmara dos Deputados em homenagem à III Marcha das Mulheres Indígenas, em 11 de setembro de 2023. Foto Lula Marques/Agência Brasil

“A luta pela mãe terra é a mãe de todas as lutas”

Para Joênia Wapichana, primeira mulher indígena no parlamento brasileiro (eleita deputada federal em 2018), e atual presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o mote da I Marcha das Mulheres Indígenas — “Território: nosso corpo, nosso espírito” — foi muito forte, pois representou o verdadeiro sentimento do indígena em relação à terra.

“A gente não se separa da terra. O indígena, desde quando ele nasce, tem uma conexão especial com a terra. O tema já diz isso. O território que é o ponto central dos direitos.  É a relação com o que, a partir da terra, provê o necessário para sobreviver”, declarou Joênia na época.

“É necessário e urgente nos reconectarmos com a Mãe-Terra, pois essa é a única forma de mantermos nossos corpos vivos”, diz o Manifesto Reflorestarmentes, publicado durante a II Marcha sob o tema “Mulheres Originárias: reflorestando mentes para a cura da Terra”. “O Reflorestarmentes não é somente do reflorestar a terra. É também de construir, de pensar que mundo, que Amazônia, que Brasil teremos”, elucida Puyr.

II Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida em Brasília em 2021. Foto: Inaê Guion

Desta vez com o tema “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais”, a III Marcha reforça o papel dos povos originários na preservação da biodiversidade e se afirma como garantia de futuro para toda a humanidade. “A luta pela Mãe-Terra é uma luta compartilhada”, afirma Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas. “Num momento que o mundo inteiro discute medidas para reduzir o aquecimento global, nós chegamos para dizer que, sem a demarcação das Terras Indígenas, sem a proteção dos nossos biomas, não haverá solução para essa crise climática. É por isso que o tema da biodiversidade chega agora muito forte, que para nós não é somente um tema, é a proteção da nossa vida, da nossa existência”, enfatiza a ministra.

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Entre plenárias, debates e grupos de trabalho, a III Marcha abordou importantes pautas ambientais, incluindo emergências climáticas, sustentabilidade e garimpo ilegal, além da participação das mulheres indígenas na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. “O estado do Pará vai sediar a COP30, e esta não pode ser construída sem a presença dos povos indígenas, sobretudo sem a presença das mulheres. Iremos construir a pauta que queremos, o espaço que queremos dentro da COP. Que COP queremos mostrar para o mundo? Que mundo queremos a partir dessa COP que está vindo para o Brasil?”, reflete Puyr.

Manifestantes na III Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, setembro de 2023. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Sem demarcação, não há justiça climática

Na manhã do dia 11, primeiro dia da marcha, as mulheres participaram do Colóquio Internacional sobre Justiça Climática e Democracia, realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para debater como a Justiça Climática se relaciona com temáticas como direitos humanos, democracia, minorias e responsabilidade intergeracional.

Para Puyr Tembé, não é possível falar de sustentabilidade sem a demarcação dos territórios indígenas, pauta central de todas as marchas. “Nós somos os guardiões da biodiversidade, dos saberes tradicionais e mantemos a floresta viva. Para isso, precisamos combater o desmatamento, o garimpo ilegal, as invasões de Terras Indígenas e lutar pela demarcação dos territórios, pela garantia de direitos das nossas populações. Isso passa por novos modelos econômicos que respeitem as culturas locais, gerem energia limpa e preservem a sociobiodiversidade.”

Sessão solene na Câmara dos Deputados em homenagem à III Marcha das Mulheres Indígenas, em 11 de setembro de 2023. Foto Lula Marques/Agência Brasil

A III Marcha das Mulheres Indígenas aconteceu sob um novo cenário político, no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o qual teve o apoio dos povos indígenas. No entanto, o julgamento do marco temporal, que segue na agenda do STF, e a aprovação do PL 490 pela Câmara dos Deputados, convertido em PL 2903 no Senado e aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), e que pretende transformar a tese do marco temporal em lei, geram preocupação.

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Considerado um atentado contra os direitos indígenas, o marco temporal reflete uma tese jurídica na qual os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Essa tese se contrapõe à teoria do indigenato, desenvolvida por João Mendes Junior e adotada pela última Constituição, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas é um direito originário, anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.

Manifestante na III Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, setembro de 2023. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O julgamento em questão trata de uma ação possessória (Recurso Extraordinário n.º 1.017.365) envolvendo a Terra Indígena Xokleng Ibirama-La Klãnõ, do povo Xokleng, habitada também pelos povos Kaingang e Guarani, e o estado de Santa Catarina. Com status de repercussão geral, a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para todos os processos de demarcação de Terras Indígenas no país. Isso significa que, caso o marco temporal seja aprovado, todas as 1.393 TIs no Brasil serão avaliadas de acordo com essa tese, independente da situação, colocando-as sob ameaça direta.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), bem como a Organização das Nações Unidas (ONU), reiteraram sua preocupação com o possível reconhecimento jurídico da tese do marco temporal pelo STF do Brasil por meio de documentos publicados nos últimos meses.  “Os povos indígenas são guardiões do meio ambiente e da biodiversidade, e não apenas para suas comunidades, mas para toda a humanidade. Em um momento de emergência climática e de altos índices de desmatamento, o debate sobre a tese do marco temporal torna-se de interesse global e urgente”, diz um trecho da publicação da ONU.

Imagem do banner: III Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, setembro de 2023. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

 

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