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Mercedes Bustamante: “O avanço do desmatamento no Cerrado é alarmante”

  • Especialista no Cerrado, a bióloga e professora da Universidade de Brasília elenca os porquês do crescimento exponencial do desmatamento no bioma, a savana mais biodiversa do planeta.

  • Mercedes Bustamante também conta os motivos pelos quais os números de degradação na Amazônia apontam queda, enquanto no Cerrado eles aumentam e de que maneira isso pode acarretar em crises hídrica e elétrica.

  • Segundo ela, é necessário um plano entre sociedade civil, empresas e poder público para reverter a situação.

Mercedes Bustamante é uma das maiores especialistas em mudanças climáticas e na ecologia de ecossistemas do Brasil, sendo referenciada nesses temas também internacionalmente. Bióloga e professora titular da Universidade de Brasília, tornou-se uma voz ativa na defesa do Cerrado brasileiro, bioma que vem sofrendo com uma devastação que acontece a passos e medidas largos. Recentemente, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) noticiou que os primeiros meses de 2023 tiveram uma taxa de desmatamento superior ao mesmo período do ano anterior.

Na medida em que a destruição cresce no Cerrado, na Amazônia os números apontam queda. Isso se deve, em parte, pelo fato de 82% do desmatamento na savana acontecer em propriedades privadas, onde a atuação do Governo Federal – que vem sinalizando comprometimento para com essa agenda – tem limitações. Ainda assim, segundo Mercedes, é possível controlar a situação por meio de políticas públicas e ações casadas entre diferentes segmentos dos setores público, privado e sociedade civil. Ela nos contou a respeito nesta entrevista exclusiva à Mongabay. 

Mongabay: De acordo com dados do Inpe, o desmatamento no Cerrado cresceu 35% nos cinco primeiros meses deste ano em comparação a 2022. A que se deve essa devastação?

Mercedes Bustamante: O avanço do desmatamento no Cerrado é realmente alarmante pelos patamares de perda de vegetação nativa e exatamente por ser um bioma que já perdeu uma fração significativa da cobertura original [50%, segundo o MapBiomas]. Isso significa que mesmo taxas menores de desmatamento já seriam preocupantes.

A maior parte dessa devastação está concentrada em áreas privadas. No entanto, há várias possibilidades de políticas públicas para controle do desmatamento. É preciso lembrar que toda supressão deve contar com autorização do órgão ambiental que pode autorizar dentro do limite do Código Florestal, ou seja, em tese poderia autorizar supressão abaixo do máximo permitido [20% da área da propriedade, no caso do Cerrado]. Adicionalmente, incentivos positivos também podem ser construídos visando a conservação e uso racional da propriedade.

Desmatamento detectado pelo alerta Deter, do Inpe, em área de Cerrado em São Felix de Balsas, município maranhense situado na região do Matopiba, em 2018. Imagem: Oton Barros (DSR/OBT/INPE)

Mongabay: Enquanto o desmatamento no Cerrado cresce, na Amazônia ele cai. Por que isso acontece?

Mercedes Bustamante: O desmatamento atual está muito concentrado na região conhecida como Matopiba [que envolve os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia] e mesmo no Matopiba há a concentração em alguns municípios. O vetor principal é a expansão da agricultura e isso está associado ao menor grau de proteção do Cerrado na Lei de Proteção da Vegetação Nativa [Código Florestal], à menor capacidade de estados e municípios nessa região de implementarem mecanismos eficientes de gestão ambiental e ao impacto econômico e político do agronegócio. Adicionalmente, trata-se de um bioma que recebe menos visibilidade internacional. Embora isso venha mudando, a mudança ainda não chega ao ponto de representar uma pressão para reverter o quadro atual.

Mongabay: Há quem chame a savana de “bioma de sacrifício”, como se desmatar o Cerrado não comprometesse, inclusive, os demais biomas. Mas há uma integração entre eles, certo?

Mercedes Bustamante: Por ocupar uma fração territorial expressiva e fazer transições com quase todos os demais biomas brasileiros, dada sua distribuição na porção central do Brasil, a conversão do Cerrado tem, além de impactos locais já quantificados, impactos que extrapolam suas fronteiras. A questão dos recursos hídricos é central para a segurança hídrica, energética e para a própria viabilidade da agricultura.

Um exemplo importante é o caso da Bacia do São Francisco, em que a fração coberta por Cerrado supre 70% da vazão. Isso impacta diretamente toda a região que depende dessa bacia. Outro exemplo crítico é o Pantanal. A planície pantaneira recebe água das partes altas que estão no Cerrado.

Sempre-vivas com o Morro do Cabeludo ao fundo, em área do Parque Estadual da Serra dos Pireneus, em Pirenópolis, Goiás. Foto: Danilo Rogério, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Mongabay: O que precisa ser feito para reverter essa situação?

Mercedes Bustamante: O Cerrado necessita de um plano que coloque em marcha instrumentos e incentivos que não dependam somente do nível de proteção definido legalmente, e que não é suficiente para proteger a biodiversidade e o bom funcionamento dos ecossistemas que garantem o provimento de serviços ambientais. Considerando a estrutura fundiária do Cerrado, é fundamental o envolvimento do setor privado e financeiro, além de representações da sociedade civil que também representem as vozes de toda a diversidade cultural e social do bioma.

A situação lá exige hoje um plano bem articulado entre sociedade civil, empresas e poder público, dada a dimensão dos desafios. Mais conhecimento e informação sobre o bioma são essenciais, incluindo forma de manejo e estudos de resiliência frente aos processos de degradação nas diferentes escalas. 

Mongabay: Atualmente, a senhora está à frente do Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Qual o papel das pesquisas científicas nesse contexto de desmatamento e emergências climáticas?

Mercedes Bustamante: Os sistemas de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação são centrais para gerar soluções compatíveis com a transformação necessária para o enfrentamento das crises ambientais globais e que permitam a conservação do Cerrado onde ele ainda persiste e sua restauração em áreas degradadas. Tanto a conservação como a restauração podem gerar possibilidades de desenvolvimento sustentável e justo e garantir resiliência à população brasileira frente aos impactos do aquecimento global.

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Imagem do banner: Mercedes Bustamante. Foto: Naiara Demarco (CGCOM/CAPES)

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