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Pescadores e cientistas falam dos impactos de Belo Monte sobre os peixes do Rio Xingu

  • Sete anos após o início das operações da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, pescadores confirmam o que cientistas vêm constatando em estudos: os peixes desapareceram do Rio Xingu.

  • Segundo o Ministério Público Federal, a construção da usina causou a morte de mais de 85 mil peixes, o equivalente a quase 30 toneladas, entre 2015 e 2019.

  • O maior impacto foi na dispersão de frutos por parte de peixes frugívoros: com a vazão do rio reduzida, os frutos agora caem em áreas secas, fazendo com os que os peixes busquem alimento em outros territórios e comprometendo toda a cadeia alimentar acima deles.

  • Os pescadores até hoje aguardam a reparação da Norte Energia, consórcio de empresas responsável pela construção de Belo Monte, que reassentou as famílias em áreas distantes das áreas de pesca e descumpriu promessas de entrega de equipamentos.

Sobre a hidrelétrica de Belo Monte, biólogos e pescadores concordam e afirmam a mesma coisa, cada um na sua forma de explicar: a usina expulsou o peixe do rio. Pescadores trazem o saber tradicional e o conhecimento originário de quem sabe como o Rio Xingu vive e respira. Os outros, pessoas das letras e dos livros, trazem o conhecimento acadêmico consigo, traduzindo as informações científicas que o rio lhes propõe como objeto de estudo. Ambos concordam que a ictiofauna foi a primeira vítima desse empreendimento. A partir daí, aconteceu uma reação em cadeia no ecossistema e na sociedade do entorno da barragem.

O pescador abandonou o remo para aprender palavras difíceis como “condicionantes”, “verbas de reparação” e “mitigação de impactos”. Restou apenas a luta por uma reparação financeira e cansativa, que é a cobrança diária da classe para a Norte Energia, consórcio responsável pelo destino do pescado e dos pescadores. Antes, as articulações eram para conseguir o sustento no rio, mas hoje eles se articulam para garantir o direito de existir.

O represamento da água para a produção de energia nos municípios de Vitória do Xingu, Altamira e Brasil Novo é tema de inúmeros trabalhos de pós-graduação desenvolvidos no Pará e no Brasil. E, mais do que isso, é motivo das principais lutas de classe e processos judiciais envolvendo os povos tradicionais e originários, que tiravam do Rio Xingu seu sustento e, principalmente, que tinham o rio como símbolo de sua existência e identidade.

A usina de Belo Monte e seu reservatório; das 18 turbinas, apenas uma gera energia sete anos após o início das operações. Foto: João Paulo Guimarães

O fim de uma cadeia alimentar

Toda essa linha de acontecimentos evoluiu a partir da quebra de uma cadeia natural que se desenvolvia no Rio Xingu. A ictiocoria — dispersão de frutos e sementes por parte de peixes frugívoros — foi o principal processo que se encerrou com a barragem de Belo Monte. Da mesma forma, o peixe que se alimenta de outros peixes deixou seu te rritório também em busca de alimento. E, por último, o pescador precisou partir em busca desses peixes. Uma cadeia de nutrição que deixou de existir, mas que trouxe consequências financeiras e existenciais para o povo do rio.

O biólogo Edilberto Leonardo Costa Rodrigues, estudante de Pós-Graduação em Biodiversidade e Conservação da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Altamira, fala sobre esses impactos na cadeia de alimentação: “Tem algumas espécies de peixe, como o acari-zebra [Hypancistrus zebra], que já se encontram ameaçadas. Não é um peixe de consumo; é ornamental e tem sua venda direcionada para aquaristas, mas tem sua função no ecossistema”.

Edilberto, que trabalha num projeto de aquicultura de peixes ornamentais apoiado pela Norte Energia e participa do Monitoramento da Ictiofauna e Investigação Taxonômica na Área de Influência da UHE de Belo Monte, diz que o acari-zebra chegou a entrar em situação de vulnerabilidade, o que significa próximo da extinção, porque é uma espécie endêmica. “Hoje alguns indivíduos são criados aqui ou em laboratório, mas a gente já vê o retorno dessa espécie ao rio como incerto porque um peixe criado em laboratório e depois solto no rio não cumpre seu papel natural”, diz.

Ao ser perguntado se a Norte Energia levou em consideração esses impactos na cadeia natural do rio, Rodrigues responde que não: “Se qualquer estudo fosse realmente levado em consideração, então a barragem não teria acontecido”.

Consultada pela Mongabay a respeito dos estudos de impacto, a Norte Energia respondeu que “o projeto de engenharia de Belo Monte foi concebido de forma a priorizar o meio ambiente e a reduzir o impacto na região, contemplando a contribuição de questionamentos das comunidades e dos ambientalistas. Essa concepção garantiu que nenhuma terra indígena fosse alagada pelo empreendimento, ao tempo que estabeleceu um trecho do rio, conhecido como Volta Grande do Xingu, em que a vazão seria reduzida. Esse trecho compreende cerca de 100 km do Rio Xingu, que tem cerca de 1.800 km de extensão.”

O biólogo Edilberto Rodrigues e os aquários do projeto de aquicultura de peixes ornamentais apoiado pela Norte Energia. Foto: João Paulo Guimarães

“A boniteza daqui acabou”

Os relatos de pescadores sobre o pós-represamento coincidem com os estudos sobre o tema. São relatos que constroem essa mesma lógica a partir dos saberes tradicionais. Os frutos e os peixes estão muito magros, dizem eles. O nível da água não chega aonde chegava antes e, por isso, muitas árvores que entravam no período de frutificação acabam por despejar seus frutos no seco. Ou seja, em áreas não alagadas. Na busca por alimento e por território, os peixes acabam entrando nos igapós atrás de comida e abandonam áreas próximas ao Rio Xingu, onde antes era possível obter renda com a pesca e sustentar financeiramente a atividade — o que inclui gastos com gelo, gasolina, diesel, equipamentos de pesca e manutenção das voadeiras e rabetas.

O pescador conhecido como Mambira, ou Geraldo Costa dos Santos, expulso do rio que lhe dava sustenta, relata que a fêma do pacu está seca, sem gordura e sem saída para venda e consumo. “A boniteza daqui acabou. Quando a gente nasce, a gente já sonha em segurar o remo, mas agora não dá mais pra bancar a despesa da pesca”, lamenta. “A gente sabe pescar em água doce e correnteza. Com a água parada, só é pau seco e não tem o que o peixe comer. Essas frutas, sarão, caferana, é tudo fruta que eles comem e que não tem mais. Não tem mais condições.”

À Mongabay, a Norte Energia respondeu que “tendo em conta o monitoramento socioambiental do Trecho de Vazão Reduzida realizado nos últimos oito anos, cabe esclarecer que os impactos detectados vêm se mostrando de menor magnitude do que a prevista nos Estudos de Impacto Ambiental”.

O Ministério Público Federal (MPF), por sua vez, sustenta que a construção da hidrelétrica causou a morte de mais 85 mil peixes — o equivalente a quase 30 toneladas — entre 2015 e 2019, destroçados ao se aproximarem das turbinas de Belo Monte. Em denúncia apresentada em 2021, o MPF acusa a Norte Energia de agir com dolo, ou seja, maneira intencional, descumprindo a determinação do Ibama de suspender a operação até que se apresentasse um “plano efetivo de mitigação de impactos à ictiofauna.”

Geraldo Costa dos Santos, de apelido Mambira, segura o remo que usava para pescar, hoje abandonado. Foto: João Paulo Guimarães

Não bastasse isso, a Norte Energia se propôs a organizar a transição do pescador para o ofício de agricultor e se comprometeu a liberar apetrechos e estrutura para a produção de roças e hortas domésticas para 785 grupos familiares de pescadores identificados. Prometeu a execução de tanques de piscicultura para cada colônia de pescadores e veículos para cada colônia que fosse trabalhar na produção familiar. Segundo a empresa, esse material foi entregue conforme o previsto, mas, em audiências públicas promovidas pelo MPF em agosto de 2022, os pescadores recusaram os kits.

Os pescadores foram retirados da beira do rio e de suas casas para serem remanejados para os chamados Rucs, Reassentamentos Urbanos Coletivos, bairros construídos com uma estrutura parca e incapaz de manter a sociabilidade de uma classe que antes era acostumada com o rio em frente às suas casas e que, de repente, tem de conviver com a distância, a falta da água em suas torneiras e a falta da saúde e educação para seus filhos. Existem seis Rucs em Altamira, bairros periféricos sem estrutura social e sem políticas públicas. Por causa de Belo Monte, o pescador não deixou apenas de pescar. Ele deixou de ser pescador.

À espera de uma voadeira

Márcio da Silva Marinho é morador de um dos Rucs, de nome Jatobá, e fala sobre sua relação com a Norte Energia, que já aprovou a entrega de uma voadeira — embarcação de pequeno porte — e de equipamentos de pesca. Mas até agora nada. “Tem um depósito lá na Perimetral cheio de voadeira e eles não entregam. Eles enrolam mesmo”, diz. “Eu vivo de pesca que herdei de meu pai e meu avô. As malhadeiras que eles dão são muito fracas e a tela é puída. É material que não presta.”

Márcio da Silva Marinho, pescador do Rio Xingu reassentado pela Norte Energia em um Reassentamento Urbano Coletivo na periferia de Altamira. Foto: João Paulo Guimarães

Eliza de Assis Ribeiro ainda vende peixe na porta de sua casa e consegue uns 300 reais por mês. Ela é uma das poucas pessoas que conseguiram receber alguns dos direitos que a Norte Energia se comprometeu a dispor, o que inclui uma verba de reparação no valor de 20 mil reais, uma voadeira, motor e equipamentos. Mas o local de pesca agora é muito mais distante, diz ela.

Em resposta enviada à Mongabay, a Norte Energia alega que “até agora 1.340 pessoas já receberam a verba de reparação, de um universo de 1.976 pescadores que já atuavam na fase rio antes do empreendimento”. No entanto, conforme consta numa carta que a própria empresa enviou ao Ibama em 27de março de 2023, apenas 875 pessoas receberam a devida remuneração. Mesmo o “universo de 1.976 pescadores” parece estar subestimado, pois, como diz a própria Norte Energia na carta, existem ainda 3.909 solicitações de estudo de caso por parte de pessoas que se autoidentificam como pescadores. O número de atingidos, portanto, pode se aproximar de 6 mil pessoas.

Antes de Belo Monte, a pesca era possível em áreas mais próximas, o que não exigia o frete para chegar até o rio (que custa entre 70 e 90 reais) e nem o custo dobrado com gasolina e gelo para manter o pescado fresco. Hoje, diz Eliza, eles precisam contornar cachoeiras e áreas de correnteza com pedras que tornam a viagem para pescar muito mais longa, cara e perigosa. Dependendo da época, demoram uma hora e vinte subindo o rio para chegar no ponto de pescaria.

Tucunaré criado em aquário no projeto de aquicultura de peixes ornamentais apoiado pela Norte Energia como forma de reparar os impactos de Belo Monte. Foto: João Paulo Guimarães

“O ruim disso tudo é que hoje eu tô longe do rio e não vale mais a pena pescar pra ganhar dinheiro porque eles afastaram a gente da água e o peixe foi embora pra longe”, diz ela. “A gente gasta mais pra trabalhar do que pra ganhar dinheiro com a pesca.”

Segundo a Norte Energia, a empresa está “realizando o processo de retorno de 322 famílias ribeirinhas para pontos localizados na Área de Preservação Permanente (APP) do reservatório, com acompanhamento do Ibama e também do Conselho Ribeirinho e seu grupo de apoio. Cerca de 40% dessas famílias já foram reassentadas e 7% estão em andamento”.

O Conselho Ribeirinho e entidades associadas alegam que “nenhuma família foi plenamente reassentada, visto que não tem acesso às áreas e condições previstas no projeto”, conforme consta em uma Carta em Defesa do Território Ribeirinho enviada em 8 de março deste ano a órgãos governamentais. “A área destinada ao reassentamento ribeirinho já foi reduzida de cerca de 32 mil hectares para cerca de 9 mil, fruto de estudos técnicos detalhados, alterações na linha da APP variável do reservatório e redução das áreas destinadas ao uso familiar, inferior ao módulo fiscal mínimo previsto para o estado do Pará”, diz a carta, assinada por 28 entidades.

Usina de Belo Monte reduziu a vazão do Xingu em 85% – um crime, segundo indígenas

Imagem do banner: Eliza de Assis Ribeiro, pescadora em Vitória do Xingu (PA). Foto: João Paulo Guimarães

NOTA: Em 15/05/2023, o presente texto teve alterações em relação à versão anterior, no qual constavam algumas informações equivocadas, conforme apontadas pela Norte Energia. No texto, afirmávamos que Belo Monte teve impactos negativos em Mato Grosso, o que não se confirmou após nova checagem. Quanto aos kits de agricultura, que dissemos não terem sido entregues, estes foram de fato enviados aos ribeirinhos, que os recusaram. Também publicamos que são cinco os Rucs em Altamira, quando o correto são seis. E, por fim, afirmamos que apenas uma turbina de Belo Monte está funcionando e que a usina só trabalha 4 meses por ano, quando na verdade a hidrelétrica opera de acordo com a vazão do Rio Xingu, que varia ao longo do ano. Todas as incorreções foram atualizadas nesta versão. 

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