Numa das áreas com maior população negra na capital baiana, a proximidade com um porto, um complexo industrial e uma refinaria de petróleo vem causando impactos na saúde da população e do ecossistema desde os anos 1950.
Grande parte dos cerca de 4 mil habitantes vive da pesca e da coleta de mariscos, atividades diretamente prejudicadas pela contaminação das águas e pela degradação dos manguezais da região.
Pesquisa recente detectou nas crianças da Ilha de Maré concentrações de metais pesados como cádmio e chumbo em níveis quatro vezes maiores do que o permitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Parece até mentira, mas existe um bairro de Salvador onde a energia elétrica só chegou no final da década de 1980, e a água encanada apenas no final do século 20. A título de comparação, a primeira rua com energia elétrica da cidade data de 1908. A rede de esgoto não existe até hoje. Não por acaso, este é o autodeclarado bairro mais negro da capital baiana: no censo de 2010, 93% dos cerca de 4 mil moradores se declararam pretos ou pardos. Um bairro que, na verdade, é uma ilha: a Ilha de Maré.
A proximidade com o Porto de Aratu, o Centro Industrial de Aratu e a refinaria de petróleo Landulpho Alves-Mataripe, que até 2021 pertencia à Petrobras, têm sido responsáveis pelo adoecimento da população da Ilha de Maré e seu ecossistema local há mais de setenta anos. Em uma pesquisa que está sendo realizada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com crianças locais, foi detectada uma concentração de metais pesados como cádmio e chumbo quatro vezes maior do que o permitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Como se não bastasse, recentemente, em plena pandemia de covid-19, uma área de 53 hectares de manguezal próxima à ilha foi devastada pela empresa Bahia Terminais para a construção de um empreendimento portuário próximo ao Porto de Aratu, descumprindo decisão judicial. A liminar emitida pela 3º Vara Federal Cível aponta falhas no licenciamento emitido pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), como a ausência de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) e inconsistência entre as informações apresentadas pela empresa no pedido de licenciamento e as reais dimensões do empreendimento.
A Maré é mulher
Existem atualmente cinco comunidades na Ilha de Maré autodeclaradas remanescentes quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares. Em Bananeiras, a mais antiga delas, os moradores mais velhos contam que os primeiros habitantes foram homens escravizados que fugiram do Engenho Freguesia no século 16 — hoje a sede do Museu do Recôncavo Wanderley Pinho —, e se abrigavam no que chamavam de “Paraíso”, local de difícil acesso no interior da ilha.
Segundo Marizélia Lopes, pescadora, a mariscagem no manguezal sempre foi um espaço de organização da luta negra. Ela conta que era durante a catação dos mariscos que, longe dos olhos da casa-grande, as mulheres aproveitavam para montar as estratégias de fuga dos homens do engenho. Os homens atravessavam a nado de um lado a outro e as mulheres voltavam afirmando que eles haviam se afogado.
“Por isso que até hoje, na maré baixa, a gente conversa tanto, fofoca e se organiza para fazer os enfrentamentos. Isso é uma herança dos antigos”, diz Marizélia. “Porque até hoje o nosso direito à escuta e à consulta não é respeitado. Infelizmente, em nosso país existe um processo de negação dos povos históricos para tentar afirmar que o nosso lugar é na obrigação e não na construção. Mas a verdade é que nenhum ‘progresso’ pode chegar para tirar o desenvolvimento dos que já existem.”
Para Daiane Bonfim, mariscar não é uma profissão, mas sim uma terapia: “A gente trabalha para nós. Ninguém diz a hora que eu tenho que ir ou voltar. O patrão da gente é a Lua e o vento.”
É nesse espaço de troca que se formam lideranças e se organizam as lutas pelos direitos coletivos. É uma rede de troca de afeto e apoio para vencer os desafios do dia a dia. “Desde os doze anos a gente se sustenta”, diz Marizélia Lopes. “O primeiro batom, a primeira blusa, quem garantiu fui eu. O nosso modo de ser foi a gente que construiu e garantiu. Não dependo de homem nenhum para ter o que é meu.”
Nas marés de marisco, as coroas de areia que se formam na maré baixa acabam também se transformando em creche, pois não existe um local adequado para as mães deixarem seus filhos, que acabam precisando acompanhá-la na mariscagem. Por isso, a creche foi uma das primeiras reivindicações das moradoras da ilha para a Petrobras, ainda em 2004. Uma forma de cobrar uma contrapartida da empresa, que já estava no local há cinquenta anos. Na época da sua instalação, não havia leis para garantir o direito dos moradores locais nem pesquisas para mensurar os impactos ambientais na região e na população.
Segundo Eliete Paraguaçu, liderança do quilombo de Porto dos Cavalos, em 2004 foi a primeira vez que houve um enfrentamento direto com a empresa. Quando chegou a proposta da Petrobras para o projeto de cultivo de ostra, a comunidade negou. A oferta do marisco naquele trecho da baía é naturalmente grande, não havia necessidade de tanques para seu cultivo. A comunidade então pediu que fosse implementado um centro de formação e uma creche comunitária — o que foi negado pela Petrobras.
Derramamento de petróleo
No ano de 2008, os perigos de ter por perto uma refinaria de petróleo e um porto como o de Aratu se fizeram presentes na vida dos moradores da Ilha de Maré. O navio de bandeira norueguesa NCC Jubail, que estava a serviço da Petrobras, derramou cerca de 5 mil litros de óleo lubrificante na Baía de Todos-os-Santos, contaminando fauna e flora locais e colocando toda a população que trabalha e consome os pescados da região em situação de vulnerabilidade.
Na ocasião, Eliete Paraguaçu liderou um grupo de mulheres que ocuparam as balsas da Petrobras, prendendo uma série de equipamentos por alguns dias e que só foram liberados através de uma liminar da justiça a favor da Petrobras. Finalmente, em 2012, uma pauta da comunidade foi entregue com as seguintes reivindicações: cercar os poços de petróleo e as tubulações, que já haviam causado acidentes com as crianças, implantar o projeto Mariscar é Uma Arte para o beneficiamento do marisco e um telecentro. Novamente os pedidos não foram aceitos e a orientação da empresa foi que os moradores da Ilha de Maré entrassem em um edital para conquistar suas reivindicações via concorrência pública.
As mulheres colocam seus corpos na luta e na lama. Suas peles ficam em contato com o mangue durante horas na catação de mariscos. Não existem informações sobre as consequências deste contato prolongado com contaminantes que estão sendo inseridos no meio ambiente de diversas formas e durante muitos anos. A falta de informação é uma constante entre as empresas e os moradores da Ilha. “Nem o Estado cumpre a sua função de garantir o direito à vida do cidadão”, diz Marizélia.
Então, em 2014, Eliete Paraguaçu e as “Mulheres das Águas”, como se autodeclaram as mulheres da comunidade de Porto dos Cavalos, fizeram uma nova ocupação e desta vez retiveram durante 17 dias uma sonda da Petrobras que não poderia ficar parada, forçando a empresa a negociar diretamente com os moradores e a oferecer o valor de R$ 2 milhões pela liberação do equipamento.
“R$ 2 milhões é um trocado pelo tempo e pela miséria que se estabeleceu na comunidade desde a chegada da empresa”, diz Eliete, já emendando: “Por onde o desenvolvimento passa, ele traz miséria e fome. Meu território é explorado pela Petrobras há quase 80 anos e a única coisa que ela deixou aqui foi pobreza e passivos ambientais. A gente não tem um funcionário da Petrobras na Ilha de Maré. Mas em Porto dos Cavalos tem 21 poços de petróleo”.
Eliete conta que foi só em 2021 que a comunidade pôde assinar com a Petrobras um projeto de contrapartida para todos estes anos de exploração, chamado Mariscar é Uma Arte. Neste projeto, foram construídas algumas unidades distribuídas dentro da Ilha de Maré para beneficiamento dos mariscos. Nelas é possível fazer todo o processo de lavagem e armazenamento do produto até a sua venda.
“Onde tem o dito ‘desenvolvimento’, tem pobreza e fome”, argumenta Eliete. “A gente vive uma guerra silenciosa na Baía de Todos-os-Santos. Não é diferente de uma guerra que tem na Europa. Na Europa a gente vê sangue. Mas na Baía de Todos-os-Santos a gente morre silenciosamente e sem a digital de quem nos mata: a poluição química e o racismo ambiental.”
O inimigo invisível
Imagine a rotina de acordar cedo, ao som dos pássaros, em uma ilha no meio das águas calmas e quentes da Baía de Todos-os-Santos, navegar em seu barco, pescar seu próprio alimento e vender o excedente. Esta era a rotina de Altamira Simões, de 75 anos, que viu o seu sossego terminar quando, há seis décadas, viu o Porto de Aratu começar a se instalar na região.
“Eu lembro que, quando o porto estava sendo construído, eu saía com meu marido para pescar de manhã cedo, íamos a um local muito bom, que sempre dava peixe”, conta Altamira. “Mas começamos a ser ameaçados. O vigilante apontava a arma para nós, expulsando a gente dos locais em que nós já costumávamos ir pescar.”
Além da perda de territórios para seu sustento, Altamira começou a perceber a diminuição da oferta dos mariscos sob os efeitos dos impactos ambientais do porto, pois o ecossistema do estuário estava sendo degradado pela obras de drenagem para aumentar a profundidade da Baía de Aratu para as embarcações maiores poderem atracar no local.
No trecho do texto retirado do portal da Petrobras, onde se descreve a implantação da Refinaria Landulpho Alves em 1950, a primeira do Brasil, pode-se ler: “Um dia, começaram a chegar os equipamentos: imensos tanques metálicos, torres e tubulações. Eles vinham de trem, de balsas, saveiros e até em trenós improvisados com tubos e puxados por tratores. Com as máquinas, vieram os homens. Gente de todo o Brasil e também do exterior: Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Polônia, Itália. O povo do Recôncavo Baiano — acostumado a lidar com lavoura, pesca e canavial — ia aprender um novo ofício: refinar petróleo”.
Permanece a dúvida se o povo do Recôncavo Baiano realmente pôde aprender um novo ofício, ou se este desenvolvimento trouxe melhorias para a qualidade de vida da população que já vivia neste território. Na prática, as relações entre a Petrobras e os moradores da Ilha de Maré mal passaram do escambo, com a petroleira oferecendo marmitas de alimentação ou óleo diesel em troca de um quilo de mariscos ou um cacho de banana.
Em 1950 não havia leis ambientais específicas para regular a implementação destes empreendimentos e muitas trocas informais foram sendo feitas por particulares. Então houve caso de moradores na Ilha de Maré venderem seus terrenos por preços muito baixos ou até mesmo serem expulsas de seu território. “Muitas pessoas perderam suas terras sem nenhuma contrapartida”, diz Eliindúte.
Chumbo no sangue das crianças
Mais de 70 anos depois, é importante contrastar o texto oficial da empresa responsável pela implantação da refinaria com a opinião dos moradores da Ilha de Maré e da pesquisadora Neuza Miranda, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que afirma que o aporte de contaminantes a partir da implantação de uma indústria petroquímica sem um estudo de impactos, invadindo territórios e transformando costumes de uma população de forma predatória, é uma prática sistemática de racismo ambiental.
A alimentação dos moradores da Ilha de Maré é tradicionalmente baseada em peixes e mariscos — 90% dos habitantes vivem da pesca. Mas após décadas de ação antrópica aliada à exposição a gases e vapores da indústria petroquímica, muitas espécies vegetais não resistiram e já não conseguem ser cultivadas na ilha, tais como bananeiras e mangueiras, que adoecem e morrem.
Mas isso não é o pior, segundo a pesquisa liderada pela professora de Nutrição da UFBA, Neuza Miranda, com 116 crianças da Ilha de Maré. O estudo identificou que 89% delas têm uma concentração de chumbo maior do que 10 mg/dL no sangue. Em algumas amostras, o número sobe para 19 mg/dL. Vale lembrar que o normal é zero, mas que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera até 5 mg/dL aceitável.
Na década de 1970, a gasolina produzida nas refinarias recebia uma espécie de antidetonante que era exatamente o chumbo tetraetila, para evitar que o combustível fosse muito inflamável. Posteriormente o chumbo foi proibido pela OMS, exatamente pelo alto nível de contaminação em todo o mundo. O mineral é neurotóxico e afeta o desenvolvimento ósseo e cognitivo das crianças. Um dos principais resultados da pesquisa de Neuza Miranda é a constatação de que, quanto maior a frequência de consumo de pescado na dieta da criança, maior é sua concentração de chumbo no sangue e no cabelo.
Além do chumbo, o cádmio também foi detectado nas crianças, sobretudo na região oeste da ilha, em Porto de Cavalos, que está muito próxima à refinaria Landulpho Alves. O cádmio é prejudicial aos rins e pode causar osteoporose em adultos e nas crianças, afetando seu desenvolvimento corpóreo. O metal está presente em muitos tipos de baterias que, quando descartadas no ambiente, voltam para a cadeia alimentar através da contaminação de peixes e mariscos. Além das baterias, o cádmio também está presente em vapores petroquímicos que chegam à região através dos vapores expelidos pelas indústrias do complexo industrial de Aratu.
Talvez esta seja a pior notícia possível para uma população que vive dos alimentos ofertados pelo mar. Se um dia a alimentação baseada em peixe e marisco foi sinônimo de qualidade de vida, hoje ela é de doença. Onde já se viveu a fartura da oferta de frutos do mar, hoje o medo de adoecer é uma constante. Mas os pescadores e marisqueiras da Ilha de Maré mandam avisar que não vão deixar de consumir os alimentos do mar. Este é seu modo de vida, e já são mais de 522 anos de resistência.
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Imagem do banner: Marizélia Lopes, liderança do quilombo de Bananeiras em Ilha de Maré e o Porto de Aratu ao fundo. Foto: Rafael Martins