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Samela Sateré Mawé, jovem ativista indígena: “Somos guerreiros digitais”

  • Uma das principais vozes da juventude indígena, Samela Sateré Mawé conta à Mongabay sobre a importância das redes sociais como ferramentas para o ativismo praticado pelos povos originários.

  • Ela também fala sobre vídeos que produz como meios de decifrar a diversos povos indígenas assuntos que são difíceis de compreender através dos jornais: “Criar vídeos didáticos para a internet se dá dessa questão de descomplicar a notícia e democratizar, para que todo mundo entenda o que realmente está acontecendo”.

  • Recém-chegada da COP27, conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, Samela compartilha o que sentiu do evento, além de perspectivas para 2023.

“Nada sem nós por nós”. No vídeo do Instagram da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), a jovem ativista Samela Sateré Mawé aparece em um dos espaços do evento mais cobiçado do ano em se tratando de clima, a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP27), realizada no Egito em novembro, para deixar seu recado de que é necessário que haja presença indígena nas decisões sobre medidas a serem tomadas em torno das questões ambientais.

A estudante de biologia formada pela Universidade do Estado do Amazonas é uma das vozes ativas da juventude indígena na atualidade e faz, do território virtual, um lugar de ativismo e educação. Citando a recém eleita deputada federal indígena Sônia Guajajara, reitera que é preciso “demarcar as telas e ocupar as redes”.

Confira a entrevista que ela concedeu à Mongabay:

 Mongabay: Você faz parte de uma linhagem de mulheres forjadas na luta pela floresta e pelos povos originários. Sua avó, inclusive, criou a Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé. Conte para a gente sobre a influência dessa ancestralidade feminina em quem você é enquanto ativista.

Samela Sateré Mawé: Ter nascido em uma Associação de Mulheres Sateré Mawé, ter sempre vivenciado a luta, a coletividade, as reuniões, os atos, os manifestos, estar sempre ouvindo as palavras das mulheres, da minha avó, da minha mãe, e também das outras mulheres dentro do movimento indígena, foi essencial para a minha formação enquanto mulher, ativista, amazônida, nesse âmbito. A influência delas foi essencial para mim. Elas trilharam um caminho que abriu portas para mim e eu sou muito grata a elas por tudo o que fizeram. A minha avó criou essa associação onde a gente vive hoje, que a gente levanta a bandeira até hoje, na década de 1990. É uma associação que vive do artesanato, da luta e da resistência.

Mongabay: Temos visto cada vez mais lideranças indígenas femininas. Neste ano, Sônia Guajajara e Célia Xakriabá foram eleitas deputadas federais. A que você atribui essa presença maior de mulheres indígenas, ou com maior visibilidade, em espaços ocupados majoritariamente por homens brancos?

Samela Sateré Mawé:  As mulheres indígenas têm alcançado um protagonismo cada vez maior dentro do movimento indígena. Antes a gente via só homens saindo das aldeias, saindo dos territórios, falando sobre as pautas dos povos indígenas, como saúde, educação, demarcação de Terras Indígenas e tudo o mais. Mas quando a gente vê o levante das mulheres indígenas, a gente se sente mais representada no que tange à luta do movimento indígena.

A gente ainda sofre muitas violências e violações dentro desse espaço, a maioria dos povos é patriarcal, e as mulheres indígenas têm a força, têm o cuidado, têm a ancestralidade do que é ser mulher, né? E trazer isso para o movimento indígena, ter protagonistas bem fortes, como Sônia Guajajara e a Célia [Xakriabá], que foram eleitas deputadas federais e agora representam os nossos povos num âmbito um pouco maior, que é o âmbito da política.. para mim é muito importante ter essas mulheres ocupando esses espaços, é uma questão de representatividade, mesmo.

Samela Sateré Mawé com a mãe, Regina Sateré Mawé, na Associação de Mulheres indígenas Sateré-Mawé. Foto: Daniel Araújo/divulgação

Mongabay: Txai Suruí, liderança jovem indígena, costuma usar a expressão “demarcação de telas” – da deputada federal Sônia Guajajara – para falar sobre a importância da presença indígena nas redes sociais a fim de informar, denunciar, celebrar pautas relacionadas aos povos originários e à preservação de nossos biomas. O que representa, para você, esse território virtual?

Samela Sateré Mawé: Na verdade foi no ano de 2020, quando a gente, na pandemia, não conseguiu fazer o nosso Acampamento Terra Livre [evento de mobilização dos povos indígenas do Brasil em torno de seus direitos constitucionais], que é realizado há 17 anos, a gente teve que fazer ele de forma online. Então, Sônia Guajajara criou o termo: “vamos demarcar as telas e ocupar as redes”. Daí, a gente fez o maior Acampamento Terra Livre online que já teve. Foi um mês de programação, um mês onde as mulheres indígenas aprenderam o que era live, aprenderam o que era meet, o que era zoom, o que eram as redes sociais, a importância da internet para a luta do movimento indígena.

Eu falo também da importância da demarcação das telas, de demarcar as telas e ocupar as redes, porque além de ser uma importante ferramenta de luta e resistência de preservação dos biomas, é uma forma também de descomplicação, desconstrução, decolonização da cultura, do que as pessoas pensam em relação aos povos indígenas. Para mim, a presença indígena é essencial dentro das redes sociais. Eu sempre falo que os nossos antepassados lutaram com as ferramentas que tinham e, agora, a gente tem uma ferramenta que alcança muitos espaços, que é a internet, as mídias sociais, que é a tecnologia, e a gente precisa usar isso a nosso favor. Então, é isso que representa esse território virtual. Nós somos guerreiros digitais.

Mongabay: Você costuma produzir muitos vídeos didáticos, para Instagram e Youtube. Como se dá a escolha das pautas e a produção de roteiro?

Samela Sateré Mawé: A produção de conteúdos veio muito da desconstrução e do descomplicar a notícia. A gente vê uma notícia muito estereotipada, muito errada em relação aos povos indígenas nas grandes mídias e, também, pouco se entende do que as pessoas falam quando falam sobre leis, quando falam sobre pautas, sobre projetos de lei.

A gente precisava, mesmo, era democratizar a notícia, fazer com que nossos parentes entendessem o que se estava falando nos grandes jornais, nas grandes mídias, nas matérias, e tudo o mais. Porque, muitas vezes, um texto muito grande o parente não iria entender, e nem os jovens, nem as crianças. E, às vezes, quando ele passa também na televisão, na forma como matéria, não dá para entender também. Às vezes são usados termos muito errados em relação aos nossos povos. Então, a forma de criar vídeos didáticos para a internet se dá dessa questão de descomplicar a notícia e democratizar, para que todo mundo entenda o que realmente está acontecendo.

E a escolha das pautas vem diretamente do que está acontecendo no momento: quando acontece uma invasão de território, quando lançam um projeto de lei, quando há uma questão política muito forte no país e que é necessário que esse tema seja discutido pelos nossos povos e que todo mundo entenda, tanto o mais velho quanto o mais novo. Aí vem a descomplicação da matéria, do tema e da pauta.

Samela Sateré Mawé em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas em ato contra a PL 490, que prevê alterações nas regras de demarcação de terras indígenas de acordo com um marco temporal. Foto: Matheus Ponce/divulgação.

Mongabay: Os Sateré Mawé mais velhos veem suas produções audiovisuais? O que acham delas?

Samela Sateré Mawé: Para o meu povo específico, ainda é muito difícil a produção audiovisual. Poucas aldeias têm o acesso à internet, quanto mais o acesso ao Instagram. O que mais eles têm acesso é ao Whatsapp e ao Facebook. Então, é muito nova a criação de conteúdo, o ingresso no território digital. Mas eles veem como uma forma importante de alcançar outros povos e ter uma representação do nosso povo nesse âmbito.

Mongabay: Samela, você acabou de voltar da COP27 [Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima], que aconteceu no Egito e contou com uma numerosa delegação brasileira. De uma forma geral, como você avalia o evento?

 Samela Sateré Mawé: Eu vim de uma COP26, no ano passado, que foi totalmente diferente dessa COP. A gente foi para uma COP26, que foi uma COP de denúncia das ameaças que a gente estava sofrendo nos nossos territórios, que ainda sofremos, né, mas que estavam sendo incentivadas pelo Governo Federal. E essa COP foi um pouco diferente, porque estamos em um governo de transição, então a gente espera que as nossas pautas sejam ouvidas, mas agora nossa luta era mais para que as pessoas levassem em consideração nós, povos indígenas, no que tange essas grandes reuniões sobre meio ambiente, mudanças climáticas e tudo o mais. Porque nós queremos ser protagonistas da defesa do território, do meio ambiente.

A gente traz a questão de que “nada é por nós sem nós”, então quando as pessoas debatem assuntos sobre nossos territórios, sobre as nossas vidas, sobre os nossos biomas, sobre a preservação do que a gente vem fazendo há muito tempo, nada mais justo do que nós estarmos incluídos e inseridos nessa pauta. E a gente precisa, mesmo, buscar essa justiça social, essa justiça ambiental. E assim a gente estava na COP.

É claro que é um espaço de construção, não foram espaços de decisão. E que a gente quase não teve conversas com os políticos, com as pessoas que tomam as decisões, que propõem as leis, vetam projetos de lei e tudo o mais, mas acredito que a gente já estava nesse espaço. Mas a gente precisa também estar em diálogo aberto com os políticos, com as pessoas que estão debatendo sobre isso. É preciso que as pessoas incluam os povos indígenas no plano de governança do Governo Federal, porque nós somos os povos originários desse país, e a COP27 provou o quanto está dividido o nosso país, porque os políticos pouco debateram com os povos indígenas, pouco nos chamaram para o debate, pouco nos chamaram para o diálogo, mas nós estávamos lá, dando a cara a tapa para mostrar que nós estávamos, sim, nos importando com o que eles estavam falando lá, que a gente estava ali para vigiar, para denunciar tudo.

Mongabay: Uma carta-intenção, redigida por jovens amazônidas e que propõe espaço de participação no Consórcio Amazônia Legal, foi protocolada na COP27. Fale, com mais detalhes, do que se trata esse documento.

Samela Sateré Mawé: Nós escrevemos uma carta para o Consórcio da Amazônia Legal, a juventude amazônida que fez essa carta. Nós nos reunimos para escrever. A gente cobrava a demarcação dos territórios indígenas, a inclusão da juventude em um conselho da juventude, para que a gente seja consultado nesses grandes acordos mundiais, grandes acordos que tangem nosso bioma amazônico, que a juventude esteja nesses espaços, que a gente tenha vez, voz e fala quando as pessoas forem fechar grandes negócios, grandes empreendimentos dentro dos nossos territórios e dos nossos biomas, e cobrar um espaço para a juventude nesse novo governo de transição.

Foto: César David Martínez/divulgação

Mongabay: Para além da viagem ao Egito, você tem participado de eventos, por diversos países, relacionados a temáticas ambientais. Como os estrangeiros têm te recebido mundo afora? E você sentiu alguma mudança nessa recepção após o resultado da eleição presidencial?

 Samela Sateré Mawé: Estar em outros países, ter que sair da sua aldeia, do seu território, da sua cidade, para falar sobre os efeitos das mudanças climáticas e sobre os efeitos que as consequências das ações de outras pessoas sobre o seu território causam é muito dolorido, porque a gente não queria ter que sair de casa para falar: “Nossa, olha aqui o que vocês estão fazendo”, as consequências das ações, “vocês precisam parar, precisam consultar, precisamos dialogar, precisamos entrar em debate”. É muito difícil, mas eu acredito que com o novo governo a gente possa ter um diálogo mais aberto, e que os nossos territórios sejam mais preservados.

Mongabay: Quais as suas perspectivas para 2023, o que acredita que irá postar nas redes sociais no próximo ano em se tratando de pautas ambientais e de direitos humanos?

Samela Sateré Mawé: Eu espero que a gente possa pautar mais a demarcação de territórios indígenas, que a gente possa pautar mais políticas voltadas aos nossos povos, pautar mais representatividade indígena no Congresso Nacional, representatividade indígena em todos os espaços.

Eu espero não mais pautar violências, violações, assassinatos, desmatamento, queimadas nos territórios indígenas. Não quero mais pautar isso nas redes sociais, quero pautar somente demarcação, saúde, educação, representação, tudo isso.

Mongabay: A entrevista começou com uma pergunta sobre mulheres da sua família que te antecederam, sobre a importância da ancestralidade em quem você é. Agora, a pergunta mira o futuro: que ancestral deseja ser para aqueles que virão?

Samela Sateré Mawé: Quando a gente fala que o futuro é ancestral é que a gente busca que as pessoas se voltem para dentro de si, se voltem para o seu eu, e entendam que a gente também é floresta, também é planeta, que a gente faz parte da Terra. E que nós somos o futuro e que isso está totalmente ligado a nossa ancestralidade, porque quando a gente se entende enquanto parte de um bioma, enquanto parte de um ecossistema, enquanto parte de um todo, a gente não vai se degradar.

É por isso que a gente fala que o futuro é ancestral. E é isso que eu desejo para as próximas gerações, para os outros que virão. Que eles nunca se esqueçam de quem eles são: que eles são Terra, que eles são bioma, que são Amazônia, e que a gente não pode se autodestruir.

Como uma família indígena ameaçada se tornou símbolo de resistência na Amazônia

Imagem do banner: Samela Sateré Mawé. Foto: Daniel Araújo/divulgação

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