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Enfraquecimento da reforma agrária abre espaço para violência contra assentados no Pará

A man prepares palms to replace the roof of the school that was burnt down in the Projeto Assentamento Dorthy Stang near Anapu in Pará state, Brazil. August, 2022.

  • Moradores de um assentamento sem-terra em Anapu, no Pará, acusam o Governo Federal de favorecer grandes latifundiários, grileiros e corporações às custas de camponeses pobres e sem terra.

  • Este ano, os assentados já sofreram três ataques por parte de fazendeiros, com casas incendiadas e uma escola destruída.

  • Em 2021, o Incra fez um acordo com a mineradora Belo Sun em que cede 2.400 hectares de terras reservadas à reforma agrária para a exploração de ouro em troca de equipamentos e uma porcentagem dos lucros da mineração.

  • Em protesto, camponeses sem-terra ocuparam uma das áreas incluídas no acordo; desde então, têm sofrido ameaças e intimidações por parte de apoiadores da Belo Sun e de seguranças armados contratados pela mineradora.

Eles vieram à noite, movendo-se silenciosamente ao longo do caminho de terra enquanto lanternas escaneavam o chão. Chegando a um pequeno barraco de madeira coberto por uma fina folha de metal, esvaziaram o conteúdo de uma garrafa plástica e a incendiaram. Ao amanhecer, o agricultor José Garcia, de 43 anos, inspecionou solenemente o que restava de sua casa nos últimos três anos. Tábuas de madeira carbonizada ardiam no chão de concreto. As molas de metal retorcidas de um colchão se estenderam para fora como se quisessem escapar das chamas. Difícil de substituir seria o pequeno fogão a gás, junto com dezenas de mudas que o fazendeiro esperava ver crescer como seus quatro filhos. Foi o terceiro ataque este ano.

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As 54 famílias do Lote 96 compõem metade do Projeto de Assentamento (PA) Irmã Dorothy Stang, uma comunidade agrícola na margem leste do Rio Xingu, perto de Anapu, no estado do Pará. A comunidade recebeu o nome da freira norte-americana que foi assassinada em 2005 por se dedicar à causa dos direitos pela terra na fronteira sem lei da Amazônia. Mais de uma década depois, a tão esperada justiça pela qual ela lutou só piorou sob o mandato de extrema direita de Jair Bolsonaro. Os moradores acusam o Governo Federal de favorecer grandes latifundiários, grileiros e corporações às custas de camponeses pobres e sem terra.

“Eles não querem a gente aqui”, diz Garcia, lembrando a história da região ensanguentada onde cresceu. “Muitos morreram por um pedaço de terra.” Como aqueles antes dele, o agricultor veio a Anapu à procura de um lugar para construir uma casa para sua esposa e filhos. Viver na cidade é caro e o emprego estável é escasso, especialmente para aqueles com apenas a educação básica. Na cidade de Novo Repartimento (PA), onde morava, Garcia trabalhou fazendo biscates, mas seu objetivo sempre foi possuir seu próprio pedaço de terra. “Quando cheguei aqui, achei ótimo. O solo é rico”, conta. “Meu sonho é plantar e cultivar.”

José Garcia reconstrói o que resta de sua casa depois que foi incendiada por pistoleiros no Projeto de Assentamento Irmã Dorothy Stang, perto de Anapu, no Pará. Foto: Andrew Johnson

Anapu fica no coração do Arco do Desmatamento, uma área em forma de meia-lua que se estende por milhares de quilômetros ao longo da fronteira agrícola da Amazônia, indo de Rondônia ao Maranhão. Depois que o Brasil caiu sob o domínio da ditadura militar em 1964, os generais no poder ficaram paranóicos com a possibilidade de a Amazônia ser invadida por estrangeiros ou comunistas. A solução dos militares foi subjugar, colonizar e converter grande parte da Amazônia em uma fábrica para a produção de matérias-primas e energia. Estradas como a rodovia Transamazônica, que corta Anapu e o Rio Xingu, foram planejadas juntamente com uma série de grandes projetos de infraestrutura, como portos, minas e hidrelétricas.

Após a retirada violenta das populações indígenas, vieram os madeireiros, e com eles os tratores. Mas o que era necessário eram colonos para limpar a área e trabalhar a terra. Dezenas de milhares de camponeses sem terra foram incentivados a vir de todo o país para encontrar sua fortuna na fronteira amazônica. Em 1970, o governo militar criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão federal responsável pela divisão de uma “terra sem homens para homens sem terra”.

No entanto, o plano logo foi prejudicado por uma burocracia complexa, falta de investimento e má supervisão do governo em uma região de extensão maior que a da França. Na ausência do Estado, a especulação imobiliária desenfreada, a fraude e a corrupção favoreceram os latifundiários oligárquicos que buscavam expandir seus domínios. Como resultado, o Incra passou a ser mais um órgão colonizador do que de reforma agrária. Atualmente, apenas dez por cento das propriedades agrícolas do Brasil cobrem 73% das terras cultiváveis do país. A desigualdade da terra na região continua a contribuir para a devastação contínua da floresta amazônica.

Poucos dias depois de chegar ao Lote 96, em 2019, José Garcia percebeu que realizar seu sonho não seria fácil. Seus vizinhos eram latifundiários, alguns deles responsáveis ​​por atos de violência e assassinatos na região. Dois anos atrás, uma casa próxima foi incendiada. Meses depois, um barraco que abrigava uma família foi derrubado por um trator. Em seguida, a casa de farinha foi incendiada. Em maio deste ano, depois de reconstruir sua casa anteriormente destruída, a mesma família viu a segunda incendiada. Então, depois de anos de luta pelo reconhecimento federal, em julho o PA recebeu a declaração da portaria pelo Incra, apenas para vê-la imediatamente rescindida devido a “vícios” inexplicáveis ​​no processo. Semanas depois, a casa de José Garcia foi incinerada, seguida pela única escola que atende a comunidade.

Os restos da escola que foi incendiada no Projeto de Assentamento Irmã Dorothy Stang. Foto: Andrew Johnson

“A maior parte da violência rural [do Brasil] está na Amazônia, especificamente na fronteira agrícola no estado do Pará”, explica Luciano Mansor de Mattos, professor e pesquisador que atualmente trabalha para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Há décadas ele estuda o desenvolvimento da região e sua história de assentamentos, que, segundo ele, se encontram com os interesses do capital, muitas vezes com consequências violentas. “[O governo] nunca teve consideração com quem estava na terra, mas sim com quem chegou com dinheiro.”

Após o retorno da democracia no Brasil em 1985, sucessivas administrações supervisionaram um aumento dramático nos assentamentos, mas o Incra continuou paralisado por falta de financiamento, planejamento e supervisão. Na região conhecida como Amazônia Legal, os colonos foram obrigados a preservar 80% de suas propriedades para proteger a floresta em pé, mas houve problemas.

A infraestrutura necessária para dar aos pequenos produtores acesso aos mercados era praticamente inexistente. Os agricultores careciam de técnicas e equipamentos para desfrutar da pouca terra que lhes era permitido cultivar. Para piorar as coisas, as famílias recebiam pouca ou nenhuma compensação por sua preservação da floresta em pé. Onde ainda havia mata, muitos recorriam à venda de sua valiosa madeira. A floresta agora sem valor sucumbiu à prática de corte e queimada e, sem fertilizantes, o subsequente empobrecimento do solo muitas vezes deixaria a pecuária como a única opção restante para sobreviver.

O fracasso do que tinha potencial para resolver o abismo da desigualdade na propriedade da terra em um país do tamanho de um continente contribuiu para a expansão da monocultura em toda a região, com consequências devastadoras para a floresta, as populações indígenas locais e os camponeses teimosos o suficiente para resistir sua expansão. Os últimos quatro anos sob o governo de Bolsonaro pioraram uma situação que já era ruim.

“Com este governo não há nem diálogo”, lamenta Mattos, citando cortes no crédito, equipamentos e treinamento dos pequenos agricultores, bem como programas de alimentação escolar, que eram um mercado valioso para muitos pequenos produtores. Em maio, o Incra publicou um memorando interno alertando seus superintendentes regionais de que estava sem recursos para manter suas atividades além do mínimo.

“Vai levar vinte anos para reconstruir o que eles destruíram em quatro anos”, declara Mattos.

Um homem busca água em um poço no acampamento sem-terra Nova Esperança, na região de Volta Grande do Xingu, no Pará. Foto: Andrew Johnson

Junto com o agronegócio, o Governo Federal tem incentivado a expansão dos interesses minerários na Amazônia, inclusive usando os assentamentos como moeda de troca. Um exemplo recente é o acordo do ano passado entre o Incra e a Belo Sun, uma mineradora canadense que planeja construir a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil, às margens do Rio Xingu.

O pacto previa a abertura de quase 2.400 hectares de terras públicas reservadas à reforma agrária desde 1999 para a exploração minerária pela Belo Sun em troca de caminhões, laptops, sistemas de GPS e uma porcentagem indeterminada dos lucros da mineração. Desde então, a legalidade do acordo foi contestada por defensores públicos estaduais e federais, mas a decisão do juiz ainda não foi tomada.

Em protesto à venda de terras públicas a uma mineradora estrangeira, cerca de cem camponeses sem-terra do entorno, juntamente com o apoio de populações indígenas locais, formaram um acampamento em áreas incluídas no acordo entre o Incra e a Belo Sun. Os ocupantes do campo, batizado de Nova Aliança, disseram esperar pressionar as autoridades para anular o pacto e garantir seus direitos a terras federais não utilizadas. O acampamento e seus membros receberam ameaças e intimidações de apoiadores locais de Belo Sun, bem como de sua empresa de segurança privada, Invictus, que patrulha ilegalmente áreas públicas com homens armados.

“É assustador quando eles aparecem”, diz Almerindo da Silva, 57 anos, a respeito da segurança privada. “Eles estão recebendo seus salários, mas a gente? Se a gente não trabalha, vamos morrer de fome”, disse ele, ao lado de um abrigo feito de galhos e folhas de palmeira onde come e dorme com sua esposa e dois filhos pequenos. Nenhum dos dois frequenta a escola.

Almerindo da Silva e um de seus filhos no acampamento sem-terra de Nova Aliança, na região de Volta Grande do Xingu, Pará. Foto: Andrew Johnson

O assentamento de famílias pobres e a criação de novos assentamentos para a reforma agrária praticamente pararam com o governo atual, seguido de longo declínio desde o último governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Durante os dois mandatos de Lula como presidente, mais de 600 mil famílias foram assentadas, em nítido contraste com as menos de 10 mil nos quatro anos de Bolsonaro. Como resultado, o Incra foi efetivamente transformado em um sistema de entrega de títulos às custas de camponeses sem terra como os do Lote 96 e do acampamento Nova Aliança.

Para Ana Laíde Barbosa, representante do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, que apoia comunidades marginalizadas lutando por seus direitos e pelo meio ambiente, isso é apenas parte da cartilha da extrema direita brasileira. “O que o Incra está fazendo é a antirreforma agrária, totalmente o contrário da sua competência. Por isso continuaremos insistindo na anulação dos contextos concedidos a Belo Sun por entendermos que é desvio de função deste órgão, que está burlando a legislação fundiária”, diz ela.

Na última campanha à presidência, Lula declarou que nem mais uma árvore precisa ser cortada para dar lugar à economia, ecoando estudos que apontam para o uso altamente ineficiente da terra no Brasil e na Amazônia. Mas mesmo o próximo governo Lula terá que enfrentar forças políticas poderosas que representam interesses regionais privados, como as de fazendeiros e garimpeiros — muitos deles se opõem violentamente à noção de custódia pública da Amazônia.

‘Guerra do dendê’: empresa campeã de multas é acusada de violência no Pará

Imagem do banner: Um homem carrega palmeiras que serão usadas para cobrir o teto da escola que foi incendiada no Projeto de Assentamento Dorothy Stang, em Anapu, Pará. Foto: Andrew Johnson

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