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Ribeirinhos no Amazonas ganham direito inédito de uso da terra, mas precisam ainda expulsar as madeireiras

House built on the bank of the Manicoré River, in the southern Amazonas state, in the Amazon, Brazil. People from the communities near the Manicoré River are fighting for their land rights to be acknowledged and their forest protected. Casa construída na margem do Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia. As comunidades ribeirinhas estão lutando para terem seus direitos territoriais reconhecidos e sua floresta protegida.

  • Em março, 15 comunidades ribeirinhas do Rio Manicoré, no Amazonas, conquistaram, de maneira coletiva, uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU); é a primeira que isso ocorre no estado.

  • Parte destes ribeirinhos luta, desde 2006, para que o território seja transformado em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Mas, por medo e desinformação espalhados por madeireiros e grileiros, a maioria dos comunitários não aprova a reserva.

  • Considerada uma das áreas mais preservadas da Amazônia, Manicoré tem registrado recordes de desmatamento desde 2015; no primeiro semestre de 2022, foram mais de 150 km2 de vegetação nativa cortados.

Liderados por uma professora e uma agricultora familiar, 15 comunidades tradicionais das florestas públicas de Manicoré, município no sul do Amazonas, conquistaram em março o reconhecimento e o direito de uso coletivo do território após 16 anos de luta.

É a primeira vez na história do Amazonas que povos tradicionais ganham uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) coletiva por tempo indeterminado. Também é a primeira vez que a concessão é aplicada a famílias que não vivem em uma unidade de conservação.

“Criamos o Território de Uso Comum do Rio Manicoré, uma experiência inédita de proteção”, diz o procurador do Estado Daniel Viegas, chefe da Procuradoria do Meio Ambiente, explicando que, para emitir a CDRU aos ribeirinhos do Rio Manicoré, o governo amazonense teve que alterar a legislação fundiária estadual.

Formado por um mosaico de três Terras Indígenas, nove Unidades de Conservação e quase 9 mil km2 de florestas públicas não destinadas (é nesta área que vivem os ribeirinhos), a região do Rio Manicoré é uma das mais preservadas da Amazônia brasileira.

Além da preservação ambiental de uma área de extrema importância para a Amazônia, a CDRU ajudará a manter o modo de vida tradicional dos cerca de 4 mil ribeirinhos que vivem no território, entre extrativistas, agricultores familiares e artesãos de canoa e remo.

“O Manicoré vive do açaí, castanha, tucumã, banana, cacau e da roça. Vivem todos bem, do que a natureza dá, sem desmatar”, afirma a agricultora familiar Maria Clea Delgado, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), uma das responsáveis pela conquista da Concessão.

Mulher ribeirinha na região do Rio Manicoré; moradores se deslocam pelo território por meio de canoas e barcos. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

Quando a Mongabay visitou as comunidades, em junho, os comunitários se preparavam para a Festa do Açaí da comunidade do Estirão, a uma hora de barco do município de Manicoré.

“Todo mundo planta açaí aqui”, diz o agroextrativista Manoel Tomé Correa, exibindo com orgulho a pequena plantação de açaí da família — que inclui tios, os pais, dois irmãos e os sobrinhos, todos vizinhos.

“A Festa do Açaí do Estirão é a melhor festa do Rio Manicoré, um dia e uma noite de festa. Tem forró, tem a dança do açaí. Todo o dinheiro conseguido na festa vai para a nossa associação comunitária”, conta o agroextrativista.

Toda a família de Manoel nasceu na comunidade e trabalha coletando açaí, castanha e andiroba. Do açaí, eles fazem o suco e o creme; da andiroba, extraem o famoso óleo do fruto, usado para quase tudo no Amazonas: de repelente natural a remédio para curar dor de garganta. Tudo o que colhem e coletam do próprio quintal é vendido em Manicoré ou para atravessadores que percorrem o rio em busca dos produtos da floresta.

“Tem que preservar a floresta para depois não faltar. Aqui, a gente vive tranquilo. Mas estão destruindo aí para dentro, a gente ouve. Se destruírem, como vamos sobreviver?”, diz Manoel, que nunca saiu da comunidade.

Para a gestora ambiental Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, a CDRU é uma importante conquista na luta dos povos do Rio Manicoré.

“Apesar de a CDRU não ser um instrumento de conservação ambiental, ela tem objetivos que se aproximam dos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, como a garantia da permanência das populações tradicionais e a manutenção das suas atividades sustentáveis, além do próprio reconhecimento do território”, explica Mazzetti.

O procurador do Estado Viegas concorda. “Por meio da regularização fundiária, a Concessão de Direito Real de Uso produz efeitos sobre a proteção ambiental, já que o texto da CDRU traz limites para a exploração no território”, afirma.

De acordo com a Lei nº 9.985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), populações tradicionais que vivem em reservas, florestas nacionais e demais unidades de conservação podem fazer uso dos recursos naturais de forma racional e desenvolver atividades econômicas sustentáveis, como o extrativismo, mas fica proibida a caça e a pesca profissional e a exploração dos recursos minerais.

O agricultor Manoel Tomé Correa mostra o óleo de andiroba feito pela família em uma comunidade no Rio Manicoré. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

“Balsas de madeira entram e saem toda semana”

Apesar da conquista, o objetivo da Caarim, formada por parte dos 4 mil ribeirinhos que habitam a área, é o de transformar a região em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

“Lutamos para que aqui seja uma RDS por causa das invasões e do desmatamento no nosso território. Queremos proteção”, explica a professora municipal Marilourdes Cunha da Silva, fundadora da Caarim.

Quem navega pelas águas que cortam a extensão territorial do município de Manicoré consegue avistar balsas que chamam atenção pelos nomes — Dona Raimunda, Fátima, Rosa —, mas também pela quantidade de toras de madeira que carregam. Algumas também levam gado e tratores.

“Tem muito madeireiro na região oferecendo dinheiro pra gente cortar árvores nativas. Por um angelim desse tamanho, estão pagando 400 reais”, conta um ribeirinho ao avistar um angelim de cerca de 30 metros de altura, nativo da região e cobiçado pelos madeireiros. “Tem gente que aceita cortar porque é um dinheiro rápido, mais rápido que plantar uma roça e ter que esperar meses para colher”,  diz o morador, que por segurança não será identificado.

“Balsas com madeira entram e saem daqui toda semana. Três, quatro balsas carregadas de madeira saindo do Rio Manicoré toda sexta-feira. Isso [vem acontecendo] mesmo depois da CDRU”, relata uma moradora. Por segurança, ela também não será identificada.

Na altura do Rio Madeira, nas margens da área urbana de Manicoré, há, ainda, dragas de garimpo revirando o solo e poluindo as águas do rio.

Balsa com toras de madeira no Rio Manicoré em agosto de 2022. Foto: Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim)

“Já me ofereceram trabalho aí nessas balsas de garimpo do Madeira, mas eu disse não. Depois disso, uns homens apareceram na porta de casa com um amigo meu para tentar me convencer”, conta um ribeirinho que nasceu em uma das comunidades e hoje vive na área urbana.

De fato, o trânsito de balsas demonstra que a paisagem preservada das florestas de Manicoré tem mudado na última década: o território por onde se estende o município registrou mais de 150 km2 desmatados apenas no primeiro semestre de 2022. A quantidade já é maior que o desmatamento ocorrido nos doze meses de 2021, quando o município bateu recorde histórico, com 134,7 km2 devastados, segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes/Inpe).

“A gente já fotografou [as balsas de madeira], mandou para o MPF, fez ofício pedindo para fiscalizar e nunca recebemos nenhuma resposta. É por isso que queremos que essa área seja uma RDS, para frear esse desmatamento”, diz a presidenta da Caarim, Maria Clea.

Quanto ao garimpo, dados da Agência Nacional de Mineração levantados pela Mongabay mostram que existem 19 requerimentos de lavra garimpeira para uso industrial ativos em Manicoré.

Sobre as denúncias, a reportagem procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público do Amazonas. O Ibama não respondeu os questionamentos e o MP-AM afirmou que as denúncias dos comunitários são objeto de inquérito civil no Ministério Público Federal.

“Agora, estamos preocupados em como será o desmatamento nesse semestre. Estamos vendo que se os próximos meses forem igual a maio e abril, os desmatadores virão com tudo”, diz Clea.

Em março, mês em que o território do Rio Manicoré passou a ser protegido pela CDRU, o Greenpeace flagrou um desmatamento de 1.900 hectares no meio da floresta nativa. Em agosto, a organização voltou a sobrevoar a região e registrou uma queimada de grandes proporções na área desmatada, cuja fumaça chegou inclusive a encobrir o céu de Manaus, a cerca de 330 quilômetros dali.

Queimada registrada em agosto de 2022 dentro da CDRU do Rio Manicoré em área desmatada em março. Foto: Christian Braga/Greenpeace

O levante de mulheres ribeirinhas

Maria Clea e Marilourdes lutam há 16 anos pela criação da RDS do Rio Manicoré. Elas se conheceram ao acaso em 2006, durante um deslocamento de voadeira, espécie de canoa motorizada, pelo Rio Manicoré — os rios funcionam como ruas e estradas para os ribeirinhos, uma vez que não há vias terrestres que liguem uma comunidade a outra. Algumas comunidades estão a horas de barco da sede do município.

“Começamos a conversar sobre a situação do Manicoré e descobrimos que nós duas tínhamos criado associações em nossas comunidades. Pensamos: ‘Por que a gente não cria uma associação geral?’”, conta Clea, conhecida na região por histórias como a vez em que entregou nas mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma carta pedindo energia elétrica para as comunidades do Rio Manicoré.

Antes de fundarem oficialmente a Caarim, o primeiro passo da dupla foi descobrir “quem era o dono do rio”, como diz Clea, uma vez que os ribeirinhos que habitam o local há décadas não têm escritura das terras por essas serem florestas públicas não destinadas.

“Descobrimos que as terras são do estado (Amazonas) e buscamos orientação do Incra para saber o que poderia ser feito para nos proteger. Foi aí que nasceu a ideia de se criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável”, explica a agricultora.

A professora Marilourdes lembra com orgulho que, quando nasceu a Central das Associações, ribeirinhos de todas as comunidades apoiavam a criação da reserva.

“Nos primeiros anos, nossas reuniões tinham mais de 400 ribeirinhos, mas lá por volta de 2014, começou um movimento contrário. Começaram a espalhar uma conversa de que, se fosse aprovada a reserva, o ribeirinho seria proibido de caçar, pescar, tirar madeira para construir sua casa ou canoa, essas coisas. O comunitário ficou com medo de perder suas terras e a luta foi retrocedendo”, diz Marilourdes.

Segundo as lideranças, os boatos foram espalhados por políticos da região e pessoas ligadas a madeireiros ilegais vindos de Santo Antônio de Matupi, distrito de Manicoré.

A tensão entre apoiadores e não apoiadores piorou em 2015, quando aconteceu uma audiência pública sobre a proposta de criação da RDS do Rio Manicoré e a maioria dos presentes foi contra. “Fomos impedidas de falar nessa audiência pública”, afirma Clea.

Comunitários que apoiavam a Caarim na época relataram ter sofrido intimidações de anônimos, como ter suas voadeiras empurradas no rio para longe de suas comunidades.

O episódio conseguiu desarticular por cerca de quatro anos a luta da professora e da agricultora.

“De 2015 para cá, aumentou muito a grilagem de terras, a pesca ilegal, a extração de madeira da floresta. Os madeireiros colocaram a motosserra para funcionar quando viram que aquela audiência pública não deu em nada”, diz Clea.

Porto de comunidade ribeirinha no Rio Manicoré. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

“Vi a destruição chegar”

O agricultor Raimundo Caetano, morador da comunidade Barro Alto, conta que foi contra a reserva por muitos anos, até sentir o desmatamento chegar perto da sua casa.

“Em 2015, eu fui um dos primeiros a ser contra a reserva. Eu não entendia como podia ser uma coisa boa. Me levantei de uma reunião da Caarim e nunca mais voltei. Com o tempo, eu fui vendo com meus próprios olhos a destruição chegar aqui”, conta Raimundo.

Dados do Prodes/Inpe confirmam a percepção da presidenta: a taxa anual de desmatamento em Manicoré aumentou 148% em 2015 (mais de 75 km2 desmatados) em relação a 2014.

“Não é de hoje que os madeireiros estão rondando o rio, mas estão desmatando cada vez mais rápido. Eles passam aqui de balsa cheia. É muito preocupante para a gente. Tem períodos que minha mulher e minha mãe ficam com medo de ficar em casa sozinhas, porque a gente escuta eles derrubando as árvores no mato, fazendo extração de cedro-vermelho, copaíba, angelim, essas madeiras de qualidade”, diz Raimundo.

Segundo a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), a madeira de cedro-vermelho é considerada a segunda mais valiosa da América Latina e está protegida pela Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestres (Cites). Além disso, tanto o cedro quanto o angelim estão na lista do Serviço Florestal Brasileiro de espécies ameaçadas de extinção.

“A gente não tem segurança no Rio Manicoré, não tem como se defender. Eu gosto de viver aqui, de pescar, de matar uma caçada para comer com a minha família, de trabalhar na minha roça. Não quero sair. Então, hoje, eu acho muito importante ser uma reserva aqui”, defende o agricultor.

Desde 2017, Manicoré integra a lista do Ministério do Meio Ambiente de municípios prioritários no combate ao desmatamento. No entanto, o município perdeu uma área de 476 km2 nos últimos cinco anos, mais que o dobro do tamanho da cidade de Recife, em Pernambuco.

“Manicoré está à mercê porque aqui não tem fiscalização”, comenta Marilourdes.

A reportagem procurou o Ministério do Meio Ambiente para comentar os dados de desmatamento em Manicoré. A pasta não se pronunciou sobre o município, mas afirmou que “dados do Deter relativos a julho para a Amazônia  indicam o menor índice para o mês desde 2018”.

Alertas de desmatamento na região do Rio Manicoré entre janeiro de 2015 e dezembro de 2021. Imagem: Mongabay

“Bora retomar a luta?”

Marilourdes e Clea voltaram a trabalhar ativamente pela criação da reserva durante a pandemia de coronavírus.

“Eu circulo muito pelo Rio Manicoré e estava vendo cada vez mais invasores aqui. Procurei a Marilourdes e disse: Bora retomar a luta? Senão, vão acabar com as nossas terras’”, lembra Clea.

“Praticamente voltamos para a estaca zero quando retomamos a luta, mas a gente não desistiu, continuou explicando para os comunitários que a RDS não será prisão, será libertação”, diz Marilourdes.

No início da pandemia, a Central de Associações entrou com uma ação pedindo ao governo estadual do Amazonas a demarcação da reserva, mas o processo foi suspenso em novembro de 2021.

Segundo o procurador Viegas, o motivo foi a falta de apoio de parte dos ribeirinhos. Agora, para reabrir o processo, a Caarim precisa reunir assinatura de apoio das 15 comunidades. “Muitos estão com dificuldade de aceitar a CDRU. Então, não há clima para se falar sobre criação da reserva no momento”, explica.

“Eu quero isso aqui preservado, mas estão dizendo que, se virar reserva, a gente não vai mais abrir roça nem derrubar árvore pras nossas necessidades”, diz um agricultor de 33 anos, que não quis se identificar.

Viegas tem percorrido o Rio Manicoré em agosto para ouvir os ribeirinhos e explicar a importância da CDRU. “Senti que muitos não têm noção do risco que estão correndo de perder as terras”, conta o procurador.

Em abril, o Greenpeace identificou um desmatamento de 280 hectares no Igarapé Grande, afluente do Rio Manicoré, que vem aumentando progressivamente. Em junho, a destruição já havia pulado para 930 hectares.

“A CDRU foi emitida, mas só um título não basta. Agora, o estado precisa agir fiscalizando esse território, retirando invasores, coibindo qualquer desmatamento ou exploração ilegal de madeira”, diz a porta-voz do Greenpeace, Chistiane Mazzetti.

Em junho, o Greenpeace Brasil reuniu pesquisadores de universidades da Amazônia e realizou uma expedição pelas florestas do Rio Manicoré com o objetivo de estudar a biodiversidade local e mostrar a importância de se preservar a região. Em um mês de pesquisa de campo, os cientistas identificaram mais de 60 espécies de lagartos, serpentes e anfíbios, além de centenas de espécies de plantas, incluindo novas espécies.

Raimundo Correa, ribeirinho da região de Manicoré, na plantação de açaí cultivada por ele e sua família há 40 anos. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

“Vão lotear nossa floresta”

Um morador conta que dois homens de Santo Antônio de Matupi foram até a casa de seu sogro em maio dizendo que estavam coletando assinaturas para a construção de uma estrada para ligar Matupi e as comunidades ao município de Manicoré.

“Disseram que era pra ajudar a gente a escoar o que produzimos, mas o que eles querem, na verdade, é ter acesso às nossas terras”, afirma o ribeirinho.

“Tem um ‘linhão’ que passa na floresta, dentro da CDRU. O objetivo de quem está fazendo isso é ligar Matupi a Manicoré com uma estrada. Se isso acontecer, temos certeza que vão lotear nossa floresta”, diz Clea.

“Estamos preocupados com a estrada que desce para Santo Antônio do Matupi. Nós não temos a mesma cultura de destruição que eles têm lá. Em Matupi, se usa maquinário para desmatar, usam o trator, a motosserra. No Manicoré, a gente usa o machado, foice”, comenta Marilurdes.

Segundo o Observatório BR-319, rodovias e ramais — estradas clandestinas abertas a partir de estradas oficiais — são os principais vetores de desmatamento na Amazônia atualmente.

Em 2021, a organização mapeou a extensão dos ramais em Manicoré e descobriu que a extensão territorial do município tem mais de 1.422 km de ramais, a maioria aberto a partir da BR-230 (Transamazônica) dentro e nos arredores do distrito de Santo Antônio do Matupi.

Desse total de ramais, 845 km deles estão em florestas públicas não destinadas (área que engloba a CDRU do ribeirinhos), cerca de 296 km em Terras Indígenas (TIs Tenharim Marmelos, Tenharim Marmelos/Gleba B e Sepoti) e quase 67 km em Unidades de Conservação.

“Exemplos com outras rodovias na Amazônia, como a BR-163 no Pará, mostram que é um desafio controlar o avanço do desmatamento e da grilagem quando se tem uma estrada para escoar a produção”, explica Mazzetti.

Pequeno desmatamento no Ramal da Democracia, no município de Manicoré, que liga a BR-319 à margem esquerda do Rio Madeira. Foto: Christian Braga/Greenpeace

Amacro e o novo Arco do Desmatamento

Outro fator que preocupa os especialistas é o fato de Manicoré ser uma das 32 cidades que integram o projeto da Amacro (acrônimo de Amazonas, Acre e Rondônia), uma proposta de regionalização do agronegócio para o interior desses estados, ricos em florestas públicas não destinadas.

“Isso preocupa porque o Arco do Desmatamento já chegou na região da Amacro.

A área da CDRU do rio Manicoré ainda não tem um impacto direto, mas é uma questão de poucos anos até o Arco do Desmatamento chegar ali”, diz Mazzetti.

Desde 2018, Manicoré é o quinto município que mais desmata no estado do Amazonas, segundo dados do Inpe.

“A gente pode perder todo o nosso território se continuarem destruindo. Território, né, porque antes da CDRU a gente dizia ‘nosso lugar’, mas agora a gente pode dizer que essas florestas de Manicoré são ‘nosso território’”, diz Clea.

Quando questionada se teme pela própria vida, Clea responde que não, mas afirma estar preocupada após o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips ocorrido em junho.

“Preocupa porque, assim como a gente, o Bruno e o Dom eram guardiões da floresta. E, assim como a gente, eu vi tantas vezes o pessoal do Vale do Javari pedir proteção e nada ser feito. É também como aconteceu com o nosso querido Chico Mendes. Então, medo eu não tenho, mas a gente não sabe o que pode acontecer estando nessa luta”, diz Clea.

A reportagem procurou a Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas (Sema) para comentar as informações mencionadas nesta reportagem, mas não obteve retorno.

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Imagem do banner: Casa de ribeirinhos no Rio Manicoré. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

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