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Por que a última reserva da Amazônia ainda não saiu do papel depois de quatro anos

  • Criada em 2018, a Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi ainda espera por um plano de manejo e pela criação de um conselho de representantes das comunidades locais.

  • Enquanto a Resex não sai do papel, os ribeirinhos veem o rio do qual dependem para sua subsistência ser saqueado pela pesca predatória.

  • Com o sinal vermelho das leis e da Justiça ignorados, duas icônicas espécies em risco de extinção local — a tartaruga-da-amazônia e o pirarucu — encontram em projetos comunitários sua tábua de salvação.

5 de junho de 2018. Após duas décadas de apelos por sua homologação, finalmente é assinado o Decreto 9.401, que estabelece a Reserva Extrativista (Resex) Baixo Rio Branco-Jauaperi, na divisa entre os estados do Amazonas e Roraima, a 500 km de barco de Manaus.

Os moradores da região começam, enfim, a acreditar em uma legislação ambiental que salvaguarde sua subsistência em meio à floresta em pé e rios piscosos.

Quatro anos depois de sua homologação pelo Ministério do Meio Ambiente, porém, a última Unidade de Conservação constituída na Amazônia ainda não saiu do papel e se deteriora junto com a confiança dos ribeirinhos na efetividade da lei.

A área de 581.173 hectares (quase quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo) sequer tem constituído ainda seu conselho deliberativo, cuja atribuição principal é aprovar o plano de manejo.   Previsto na Lei 9.985, o documento é essencial para estabelecer o conjunto de medidas e projetos que a comunidade entende como adequados para o uso sustentável dos recursos naturais da Resex.

Dentro da Resex Baixo Rio Branco-Jauaperi há 15 povoados e um número estimado de 200 famílias, o que corresponde a uma população de 600 moradores, cuja principal atividade econômica é o artesanato. Para a criação do conselho deliberativo, é necessário reunir representantes de todas as comunidades e dos órgãos públicos em uma assembleia inaugural, que depois se reunirá periodicamente para debater e implementar o plano de manejo.

A lei é clara, mas não identifica de onde sairão os recursos para transportar, no mundo real, moradores que vivem a várias horas, muitas vezes dias, de distância e onde o único meio de transporte são embarcações privadas cujo combustível, caro, é artigo de luxo.

A reportagem da Mongabay esteve na Resex e teve uma boa ideia das dificuldades para a criação do conselho deliberativo sem apoio do Estado. Foram sete dias de viagem pelo rio para cobrir 120 km e visitar apenas quatro comunidades da reserva.

Coleta de açaí na comunidade de Marrau, na Resex Baixo Rio Branco-Jauaperi. Foto: Octávio Ferraz

Pesca predatória

Enquanto a Resex não sai do papel, os ribeirinhos veem o rio do qual dependem para sua subsistência ser saqueado de maneira sistemática. Afluente do Rio Negro, o Jauaperi já foi um dia repleto de pirarucus, tucunarés, peixes-boi, tartarugas e muitas outras espécies de animais, mas hoje sucumbe paulatinamente à predação da fauna amazônica.

Em 2001, mesmo ano em que ribeirinhos da região realizaram o primeiro pedido pela criação da Resex, a invasão de embarcações vindas das cidades de Manaus e Novo Airão, ambas no Amazonas, somada à pesca predatória feita por pescadores das próprias comunidades locais, já reduzia o pescado no Rio Jauaperi a números alarmantes.

Os relatos de ribeirinhos indicavam atuação constante dos chamados “geleiros” (barcos de pesca com alta capacidade de armazenamento de peixes em gelo), que utilizam redes de arrasto. Estendidas de uma margem a outra, as redes fechavam o leito do rio e capturavam toda a fauna aquática, deixando famílias inteiras sem sua base alimentar.

“A pesca predatória acontecia dentro e ao redor das nossas comunidades. Os peixes que não tinham valor comercial eram descartados e apareciam mortos nas praias. Cenas terríveis como essa fortaleceram nossa vontade de fazer o acordo ser aprovado”, diz Francisco Parede de Lima, presidente da Associação dos Artesãos do Rio Jauaperi (AARJ), entidade criada em 2004 para fomentar o artesanato como forma sustentável de viver da floresta.

O acordo mencionado por Francisco é um instrumento de valor legal regulamentado pelo Ibama através da Instrução Normativa 29/2002, que facilita a gestão participativa da sociedade na preservação do meio ambiente.  No Jauaperi, ele foi selado em 2005, quando grupos comunitários locais propuseram a pescadores tradicionais e associações de pescadores comerciais que se comprometessem formalmente a cessar as atividades até a recuperação consolidada do estoque de pescado. Como na época a quantidade de peixes no rio estava de fato muito baixa, os pescadores firmaram o pacto.

O acordo valeria por três anos, tempo em que apenas a pesca de subsistência seria permitida na região. Ao fim do prazo, estava previsto um estudo científico sob a responsabilidade do Ibama para atestar a recuperação do estoque pesqueiro. Não foi, porém, o que aconteceu.

Tão logo o rio deu sinais de melhora, barcos geleiros voltaram a aparecer no Rio Jauaperi. “Foram as pessoas aqui de dentro que iniciaram as pescas ilegais ainda no primeiro ano de acordo e abriram a porta para os pescadores de fora quebrarem o pacto”, conta Francisco.

Após o fim da validade inicial do acordo, e sem interesse do Ibama em realizar a pesquisa e fiscalizar seu cumprimento (alegando falta de recursos), uma liminar da justiça local proibiu em setembro de 2009 a pesca comercial, ornamental e esportiva (com exceção da pesca de subsistência). A decisão impôs multa de R$ 1.500,00 aos infratores, mas não há registros de que tenha jamais sido aplicada.

O embargo atingiu um trecho de 120 km do Rio Jauaperi, desde sua boca no Rio Negro até a última comunidade, nos limites com a Terra Indígena Waimiri Atroari, unidade vizinha à atual Resex que também depende do rio para sua subsistência e cujos moradores haviam votado a favor do acordo.

Passados oito anos, a decisão liminar foi mantida na sentença de mérito da juíza federal Jaiza Fraxe, proferida em agosto de 2017. Na sentença, a juíza voltou a determinar ao Ibama e à União que realizassem o estudo de estoque num prazo de 12 meses, o que não ocorreu até hoje. Houve também apelação da decisão, que ainda se encontra sem julgamento no tribunal.

Apesar da decisão judicial favorável ter afastado grande parte dos geleiros que vinham de Manaus, a pesca predatória de grandes quantidades de peixes e tartarugas feita por alguns pescadores da própria região e de barcos de Novo Airão e Barcelos continua a desrespeitar a lei e a dilapidar o rio até hoje. Segundo Paul Clark, vice-presidente da AARJ, uma única embarcação chega a retirar cinco toneladas de peixe em apenas uma semana, avidamente absorvidos nos mercados clandestinos da região.

São ao menos 17 anos, portanto, de descumprimento no mundo real daquilo que as leis, o acordo e as decisões judiciais deixam muito claro no papel: para recuperar o quadro desolador decorrente da sobrepesca no Rio Jauaperi, somente a pesca de subsistência deveria ser permitida.

Pesa na dificuldade de cumprir a lei o fato de que muitos dos pescadores ilegais são pessoas próximas dos moradores das comunidades, às vezes vizinhos e até parentes. Isso inibe as denúncias. Além disso, as poucas denúncias que acabam chegando ao ICMBio de Novo Airão — que tem um único barco para atender dois Parques Nacionais e duas Resex — quase nunca são investigadas. Quando são, não costumam gerar punição e, quando geram, não costumam ser executadas.

A reportagem teve acesso a um auto de infração registrado pelo Ibama em 2011 que apreendeu na Comunidade de Itaquera 900 kg de pescado, 60 malhadeiras (redes de pesca), oito zagaias (instrumento de pesc) e quatro rabetas (barco a motor). Conforme informaram moradores locais, a multa relativa a esta fiscalização nunca foi paga.

“Em tantos anos que estou aqui só vi uma fiscalização que surtiu efeito. Mesmo assim, em pouco tempo tudo voltou a ser como antes porque as blitze não têm frequência e ninguém acredita em punição”, lamenta Francisco.

Porto de Novo Airão, às margens do Rio Negro. Foto: Octávio Ferraz

 

Tartarugas e pirarucus

Com o sinal vermelho das leis e da Justiça ignorados, duas icônicas espécies em risco de extinção local — a tartatura-da-amazônia e o pirarucu — encontram em trabalhos encabeçados pela AARJ sua tábua de salvação.

O projeto Bicho de Casco saiu do ativismo do escocês Paul Clark, que assumiu a missão de engajar os ribeirinhos na luta pela preservação do meio ambiente e de sua base alimentar desde que se radicou no Jauaperi com sua esposa italiana, Bianca Bencivenni, há aproximadamente 30 anos. Além de alfabetizarem e promoverem a educação ambiental de crianças das escolas locais, desde 2003 passaram a preservar praias de desova da tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa).

O objetivo é proteger a espécie da ação dos traficantes de animais silvestres, recolhendo os ovos para chocar por 90 dias em caixas de areia colocadas em local seguro até a soltura dos filhotes, realizada assim que suas carapaças estejam duras o suficiente para serem reintroduzidos na natureza.

Atualmente são mobilizadas seis comunidades num total de sete praias do Rio Jauaperi, capacitando voluntários que recebem 4 reais (financiados por doações privadas) por cada quelônio solto, na tentativa de criar um estímulo econômico.

“Depois que começou o trabalho, eu vejo quelônios pequenos que não via antes. Espero que em cinco anos recupere bem”, conta João Soares (o Seu João), que mora em uma casa isolada em Marrau, a última localidade da Resex antes do território dos Waimiri Atroari, de quem é vizinho e amigo. Sem a fiscalização do Estado, o jeito é apelar para a ajuda dos indígenas: “Se aparecerem os tartarugueiros [traficantes], eu chamo o cacique e eles vêm aqui defender a gente”.

Bacia com tartarugas-da-amazônia antes da soltura. Foto: Octávio Ferraz

A cada ano são protegidas e retornadas ao Rio Jauaperi cerca de três mil tartarugas. Mas esse número aparentemente alto esconde uma população reduzida pela atuação dos traficantes, que pilham os locais de desova e chegam a vender uma tartaruga adulta por cerca de mil reais nos mercados clandestinos de Novo Airão e Manaus.

“No presente, noventa por cento da predação, incluindo tráfico de quelônios e pesca ilegal, acontece através de moradores do rio. O nosso desafio é alcançar estas pessoas e convencê-los da nossa causa”, revela Paul, um dos idealizadores da Resex e amigo pessoal do Seu João.

De acordo com o professor e ambientalista, que também é sócio-fundador e atual vice-presidente da AARJ, a questões política é o principal entrave da efetivação da Resex.

“O ICMBio local colabora muito com a gente, mas tem problemas de financiamento vindo das instâncias superiores e não consegue cumprir o seu dever”, diz Francisco. “Depois de quatro anos, estamos lutando para formar o conselho deliberativo. Falta recurso e vontade política.” Procurado pela reportagem, o ICMBio não se manifestou.

Outro importante projeto da AARJ é o manejo do pirarucu (Arapaima gigas), maior peixe com escamas de água doce do mundo, que está ameaçado de extinção. O programa foi iniciado recentemente na comunidade Samaúma e tem o apoio e capacitação do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e da Reserva Extrativista Rio Unini, onde os comunitários participam de projetos similares com relativo sucesso.

A proposta partiu de um abaixo-assinado após a moradora Orlandina Peres de Menezes flagrar e ser ofendida por pescadores ilegais de comunidades vizinhas. Em seguida, a solicitação foi enviada para o ICMBio local, que reconheceu e autorizou o projeto mesmo sem o plano de manejo da Resex exigido pela letra da lei.

Para garantir o manejo sustentável, é necessário realizar o zoneamento dos lagos (como são chamadas as áreas de pesca no rio) e monitorar o número de peixes. O passo seguinte é a contagem, feita para identificar os pirarucus juvenis e adultos (acima de 1,5 metro) e registrá-los em um formulário. Por fim, são definidas as cotas de captura, que podem chegar a até 30% da população, a partir da avaliação anual do estoque pesqueiro.

“Começamos em agosto com quatro comunitários trabalhando na vigilância dos lagos protegidos”, conta Divina Menezes, presidente da associação comunitária de Samaúma e filha da Dona Orlandina.

“A perspectiva é que entrem mais recursos e que no futuro tenhamos um retorno, mas precisamos de fiscalização do ICMBio, de quem também esperamos o envio das placas de sinalização do projeto e o início das primeiras oficinas para estabelecer o conselho deliberativo, prometido para setembro.”

Paul Clark com uma bacia de sementes de pracaxi. Foto: Octávio Ferraz

Dois outros projetos, no entanto, ainda estão em compasso de espera.

O primeira trata da reutilização da madeira morta que restou do incêndio sem precedentes de 2016, que queimou grandes áreas dentro da reserva. A ideia é usar os restos de árvores na construção de casas e no artesanato sustentável promovido pela AARJ. Feito em 2019, o pedido não teve resposta do ICMBio até hoje.

Já o segundo está em fase de estudo de capacidade operacional e tem como objetivo a construção de uma miniusina de beneficiamento da semente do pracaxi (Pentaclethra macroloba), cujo óleo é usado em cremes cosméticos faciais. A expectativa, se o projeto sair do papel, é também beneficiar a castanha e gerar renda com preços justos, quebrando a relação com os atravessadores.

“Nossa meta é criar cem empregos e ter uma população adulta com renda sustentável que garanta a entrada de dinheiro para dissuadir a atividade predatória”, diz Paul Clark.

Com os pés no chão e muitos planos na cabeça, Paul Clark e Francisco Parede se apegam ao ativismo que estão incutindo nos comunitários para poder sonhar uma Reserva Extrativista real e sustentável, que mude efetivamente a relação comercial com a floresta amazônica.

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* Esse trabalho é fruto de uma parceria entre o Transnational Law Institute (TLI) do King’s College de Londres e da Mongabay e foi parcialmente financiado com recursos do projeto The Laws of Sustainable Development do TLI. Uma versão mais longa, em inglês, e com todas as referências citadas pode ser encontrada na página do projeto.

Imagem do banner: Rio Jauperi, Amazonas. Foto: Octávio Ferraz.

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