Notícias ambientais

Sul do Brasil vê o retorno dos peixes após proibição da pesca de arrasto 

Porto de pesca em Rio Grande (RS). Foto: Marcelo Curia

  • Pescadores artesanais e industriais relatam incremento no volume e variedade de espécies na Lagoa do Patos e na costa do Rio Grande do Sul.

  • Fartura coincide com o período posterior à aprovação de uma lei que veta a pesca de arrasto motorizada na costa gaúcha, sancionada em 2018.

  • Construída por pescadores e cientistas e aprovada por unanimidade no parlamento, a lei contrariou interesses de aliados do presidente Jair Bolsonaro.

  • Indicado pelo atual mandatário ao STF, o ministro Kassio Nunes Marques derrubou tese em vigor na corte e suspendeu efeitos da norma. Palavra final é do plenário, que não tem data para analisar caso.

YouTube video player

Nos 22 anos em que trabalha como pescadora artesanal no Rio Grande do Sul, poucas vezes Viviane Machado Alves viu a enseada que se abre a 100 metros da porta de sua casa receber tanta fartura de peixes como agora. De cabeça, ela lista uma quantidade extraordinária de tainhas, linguados, peixe-rei e papa-terra, mas também “várias espécies que nunca tinha visto, nem comido”, conta.

O marido, que está na profissão há 50 anos, chegou a jogar fora uma garoupa — pescado de alto valor comercial e muito apreciado em pratos da culinária local — porque não conhecia aquele bicho que caiu em sua rede, no inverno passado. “Mas quando veio pela segunda vez no mesmo dia, decidi levar pra casa e mostrei para o meu tio, que tem mais de 80 anos. Ele se espantou, porque na última vez que tinha visto uma garoupa ele era uma criança”, revela Paulo Matias.

O casal pertence à mais antiga colônia de pescadores artesanais do Rio Grande do Sul, a Z1, e arma suas redes no entorno da Ilha dos Marinheiros, no município de Rio Grande, no extremo sul do Brasil. A área onde pescam está dentro da Lagoa dos Patos — a maior laguna da América do Sul —, distante 20 quilômetros, em linha reta, do canal que a conecta ao Oceano Atlântico.

Relatos semelhantes chegam do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, inclusive de pescadores que não usam barcos porque amarram suas redes na altura da arrebentação das ondas. “Na pesca de cabo de beira de praia, a gente tem visto um volume muito maior de capturas de pescada”, exemplifica a coordenadora da Câmara Técnica de Pesca do Conselho Gaúcho de Aquicultura e Pesca Sustentável, Ana Spinelli.

Porto de pesca em Rio Grande (RS). Foto: Marcelo Curia/Mongabay

Também quem pesca em alto-mar, e em escala industrial, comemora abundância. “De 2018 pra cá, tivemos duas boas safras de camarão e de corvina”, atesta o armador de pesca de Rio Grande João Gonçalves, enquanto faz a manutenção em sua embarcação Yasmin, que tem capacidade para manter uma pequena tripulação embarcada e trabalhando por vários dias consecutivos.

A realidade observada agora difere frontalmente daquela revelada em 2018 pelo então governador José Ivo Sartori, quando enviou para a Assembleia Legislativa um projeto de lei para instituir uma política de desenvolvimento sustentável da pesca no Estado: “Visa a reverter o atual estado de crise do setor pesqueiro gaúcho, evitando que o mesmo entre em colapso”, escreveu o chefe do Executivo gaúcho, em mensagem aos parlamentares que expunha os motivos da proposição.

Aprovada, a lei alcançou seu objetivo. Mas provocou uma reação na indústria pesqueira ao proibir “toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas no Rio Grande do Sul, incluindo as 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado” — uma área de 22 quilômetros mar adentro que era utilizada sobretudo por grandes embarcações do estado vizinho de Santa Catarina como principal local de pesca de arrasto.

Entre os prejudicados estavam vários associados do poderoso Sindicato dos Armadores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região (Sindipi) — segundo a entidade, alguns barcos tiravam mais de 70% de sua receita anual da pesca de camarão-ferrinho e camarão-vermelho (do tipo santana) dentro do mar territorial do Rio Grande do Sul.

O interesse da categoria se tornou uma questão institucional da República quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, em janeiro de 2019, e nomeou um empresário da pesca de Itajaí, maior porto de Santa Catarina, como secretário da Pesca de seu governo.

Sob a batuta de Jorge Seif Júnior, o Ministério da Agricultura aprovou um plano de retomada do arrasto voltado apenas ao estado do Rio Grande do Sul — chancelado por uma liminar no Supremo Tribunal Federal dada por outro indicado do presidente, o ministro Kassio Nunes Marques, que contrariou o entendimento anterior da corte e permitiu a reabertura do mar do Rio Grande do Sul para este tipo de rede, considerada predatória.

O debate ainda não terminou, porque compete ao pleno do STF a palavra final sobre o assunto. Enquanto isso, decisões também liminares, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) garantem que os barcos de arrasto fiquem longe do território gaúcho.

Mas o avanço do calendário eleitoral traz um novo componente à história. Seif Júnior tornou-se candidato ao Senado em Santa Catarina pelo mesmo partido pelo qual o presidente Bolsonaro buscará a reeleição, o PL, e o tema pode catapultar votos em um estado que se mostra um dos mais fiéis ao presidente em meio à crise de imagem pela qual passa.

João Gonçalves, armador de pesca em Rio Grande (RS). Foto: Marcelo Curia/Mongabay

Pesca ineficiente

Como o nome indica, a pesca de arrasto é feita arrastando redes pelo fundo do mar. Cada barco puxa uma ou duas, dependendo do alvo, e as áreas percorridas podem chegar a 5 mil campos de futebol em uma única viagem, segundo o Greenpeace. A prática garante à indústria grandes volumes de pescado, mas é trágica para o meio ambiente e, consequentemente, para pescadores menores, cujas áreas de atuação ficam vazias depois da passagem das grandes embarcações industriais.

As redes do arrasto literalmente varrem o leito oceânico, transformando um complexo ecossistema em um deserto. Com a força dos motores, a malha estica e se torna mais estreita, colhendo peixes, crustáceos e o que mais aparecer. Mesmo filhotes que nunca se reproduziram acabam apanhados, comprometendo a capacidade de recuperação da biodiversidade.

Os exemplares que não possuem tamanho para serem comercializados são jogados no mar, mas já estão sem vida, esmagados pelo peso dos outros. Para piorar, ao revolver os sedimentos marinhos, o arrasto mexe em um importante repositório de gás carbônico, o que acaba piorando os já graves efeitos do aquecimento global sobre os oceanos.

“Depois que as redes de deriva foram proibidas, sem sombra de dúvida a pesca de arrasto é a modalidade mais nociva e predatória que existe”, explica o professor Ignacio Moreno, do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

“Causa toda uma mudança na comunidade de organismos que usa o fundo do mar para se alimentar, viver e se esconder e gera um grande descarte, inclusive de espécies ameaçadas de extinção. É uma exploração ineficiente”, resume Luís Gustavo Cardoso, chefe do Laboratório de Recursos Pesqueiros Demersais e Cefalópodes da Universidade Federal de Rio Grande (Furg).

Já seria um quadro ruim em qualquer parte do mundo — e por isso, muitos países vêm questionando a viabilidade da pesca de arrasto no longo prazo.

Mas a costa do Rio Grande do Sul reúne duas características que pioram a situação. A primeira é que 70% do arrasto no estado acontece para a captura de camarão, uma modalidade que exige redes mais apertadas para fisgar os pequenos crustáceos, trazendo junto outros animais ainda menores. Além disso, esse pedaço de fundo do mar é reconhecido por ser local de reprodução e parto de várias espécies marinhas, algumas das quais ocorrem apenas na região sul do continente. Das 66 espécies marinhas que ocorrem na área, 22 têm algum nível de ameaça de extinção.

“É onde as raias e tubarões se agregam para se reproduzir, outros animais vão para se alimentar, os juvenis estão crescendo. É de fato um berçário”, observa Martin Dias, diretor científico no Brasil da Oceana, uma organização internacional de conservação marinha que subsidiou o debate sobre a legislação gaúcha.

As características geológicas — uma costa plana e muito rasa, em comparação com outras partes do país, com um leito liso, feito basicamente de areia e lama — que atrai os animais para procriação, também é o que os deixa mais vulneráveis, com poucas chances de achar um esconderijo. Para o arrasto, entretanto, é o ideal, porque não há obstáculos que possam danificar as redes.

Colônia de pescadores Z3, em Pelotas (RS). Foto: Marcelo Curia/Mongabay

Unanimidade inédita

A lei que instituiu a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Rio Grande do Sul foi aprovada por unanimidade no parlamento gaúcho. Sancionada pelo governador no dia 5 de setembro de 2018, recebeu o número 15.223/2018. Fruto de uma inusual união entre pescadores artesanais e industriais, cientistas e ongueiros — gente que muitas vezes opera de lados diferentes do balcão —, foi celebrada sem reservas no Estado.

Ajudou muito o fato de não haver frotas de pesca de arrasto originárias do Rio Grande do Sul em atuação: todos os barcos desse tipo que atuavam em águas gaúchas eram de fora. Mas havia argumentos científicos e econômicos, além de apelo social para a medida.

“Nós juntamos todos os pescadores do Rio Grande do Sul, de rio, de mar, de lagoa. Os artesanais e os industriais, todo o setor pesqueiro. E trabalhamos durante oito meses para escrever a lei. O embasamento é todo nosso”, recorda Viviane Machado Alves, que é uma das coordenadoras regionais do Movimento dos Pescadores e Pescadoras (MPP) no Rio Grande do Sul e articulou essa união.

O argumento científico veio da Universidade Federal de Rio Grande, que produziu estudos indicando o impacto ecológico, econômico e social que a proibição da pesca de arrasto poderia ter no estado.

As pesquisas projetaram que cada tonelada de peixe descartada pelos barcos de arrasto, por serem indivíduos muito jovens e pequenos para serem vendidos, poderia se transformar em 10 toneladas em apenas dois anos, descontadas as mortes naturais e outros fatores que não a pesca.

Com isso, a captura das quatro principais espécies-alvo na região (corvina, pescada, castanha e pescadinha) cresceria 709%, com incremento de receita para a indústria local de pescado de 400%. O benefício alcançaria as próprias frotas de arrasto porque, além das 12 milhas náuticas, a prática segue permitida, e haveria mais peixes e em tamanho mais adequado para o comércio.

Do ponto de vista ambiental, o impacto mais positivo viria para duas espécies antes abundantes na região e hoje ameaçadas de extinção, a raia-viola (Pseudobatos horkelii) e o cação-anjo (Squatina guggenheim), cujas populações cresceriam, respectivamente 395% e 386% neste período.

Ainda não há estatísticas científicas para saber se as previsões se confirmaram, mas a impressão geral é que sim.

Além dos relatos de pescadores, já há indícios de recuperação da população de raias-viola, segundo dados preliminares coletados pelo Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul no município litorâneo de Torres.

Pesquisadores estão medindo o tamanho dos exemplares que caem acidentalmente nas redes de pescadores artesanais e as notícias são “bem positivas”, segundo Federico Sucunza, que lidera o estudo. “Noventa por cento dos indivíduos estão acima do comprimento de primeira maturação, ou seja, já se reproduziram”, comemora. A expectativa é ampliar a escala do estudo para confirmar se o fenômeno se repete em outros lugares. A pesca da raia está proibida no Rio Grande do Sul e os exemplares precisam ser descartados quando caem nas redes.

“Além de proteger os pescadores, a sua sobrevivência, a gente também está protegendo os ecossistemas, né? A gente tá protegendo o oceano”, resume Viviane Machado Alves, a pescadora da Ilha dos Marinheiros.

Viviane Machado Alves, pescadora artesanal da Ilha dos Marinheiros (Rio Grande, RS) e o companheiro Paulo Matias, também pescador. Foto:  Marcelo Curia/Mongabay

Amigos no governo 

O empresário Jorge Seif Júnior não tinha nenhuma experiência em cargos públicos quando assumiu a Secretaria de Aquicultura e Pesca em 2019, logo nos primeiros dias do mandato do presidente Jair Bolsonaro. No currículo publicado em uma página do governo, ele destaca os 40 anos em que trabalhou no setor pesqueiro, além da afinidade ideológica com o mandatário, de quem se tornou tão próximo a ponto de ser chamado de “06” — uma referência aos irmãos Flávio Bolsonaro (01), Carlos (02), Eduardo (03), Renan (04) e a filha Laura, que não é conhecida por um número, como os mais velhos.

Então detentor de um cargo que representa tanto pescadores industriais como artesanais, Seif Júnior escolheu se alinhar aos interesses dos grandes empresários, reunidos sob o Sindicato dos Armadores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região (Sindipi). Foram os dados da entidade que embasaram uma decisão do ministro Kassio Nunes Marques, que declarou a norma do Rio Grande do Sul inválida, e o “Plano para retomada sustentável da atividade da pesca de arrasto na costa do Rio Grande do Sul”, que a Secretaria da Pesca e da Aquicultura lançou em março de 2021, na esteira da liminar de Nunes Marques.

O Sindipi é a maior organização sindical de pesca do Brasil e uma das maiores da América Latina. Entre os 451 barcos que representa, alguns tiravam 70% de sua receita da pesca de arrasto no Rio Grande do Sul, fatos que a colocam como interlocutora natural no debate.

Mas o Sindipi também é a instituição que defende a pesca industrial em Itajaí, município em que a família Seif mantém uma frota de embarcações e a empresa JS Manipulação de Pescados — o que levantou dúvidas sobre a motivação de Seif Júnior para aderir a um dos lados colocados na história. Itajaí é o maior polo pesqueiro industrial do Brasil. A cidade, que hoje tem o porto como principal mola propulsora da economia, teve a pesca como principal fonte de renda durante décadas.

“O pessoal de Santa Catarina tem poder, conexões políticas. A Secretaria de Pesca foi o ponto focal de articulação, através do secretário Seif Júnior, que tem as portas muito abertas junto ao presidente Bolsonaro”, observa o diretor científico da Oceana, Martin Dias.

A articulação chegou aos gabinetes do Supremo Tribunal Federal, que julga uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei que proíbe o arrasto no Rio Grande do Sul, protocolada pelo Partido Liberal — sigla pela qual o presidente Bolsonaro buscará a reeleição e que também abrigou em seus quadros o próprio Seif Júnior, que tentará uma vaga no Senado Federal por Santa Catarina.

Indicado ao cargo por Jair Bolsonaro, Nunes Marques se notabilizou por tomar decisões que agradam ao chefe do Poder Executivo — incluindo votos a favor de um  deputado bolsonarista que mentiu nas eleições e de outro condenado por atentar contra a democracia, a quem o presidente concedeu indulto.

Um mês depois de assumir a cadeira no STF, o magistrado concedeu, em dezembro de 2020, liminar a favor do PL e dos interesses do Sindipi, liberando a pesca de arrasto no Rio Grande do Sul. Detalhe: seu antecessor na vaga, o ex-ministro Celso de Mello, havia avaliado o mesmo pedido, e não viu afronta à Constituição. Bolsonaro comemorou em uma live, ao lado do protegido: “Parabéns ao Kassio Marques por esta feliz liminar. Vamos pescar aí, pessoal”.

Antes de sua decisão, Nunes Marques se encontrou três vezes com Seif Júnior para tratar do tema. A agenda do magistrado, entretanto, não esteve disponível para uma conversa solicitada pela bancada parlamentar do Rio Grande do Sul, que pede urgência para apreciação do tema no plenário da casa. Ao lado de pescadores artesanais e industriais do Estado, o grupo tenta uma audiência pelo menos desde abril deste ano, mas até agora só conseguiu ser recebido pelo chefe de gabinete de Nunes Marques.

Kassio Nunes Marques segura há 19 meses o encaminhamento do assunto ao plenário. Questionado sobre a colocação da ADI em pauta nas sessões colegiadas do STF, a corte se limitou a dizer que “não há prazo”, e ignorou os demais questionamentos da reportagem. Procurado pela Mongabay para comentar o assunto, Seif Júnior não respondeu às perguntas encaminhadas por escrito à sua assessoria. Já o Ministério da Agricultura, à qual a Secretaria da Pesca é ligada, sequer acusou o recebimento de e-mails com indagações sobre o tema.

Procurado pela Mongabay, o Sindipi diz que foi o Rio Grande do Sul que politizou o debate ao focar a proibição “apenas em uma modalidade que não é realizada por pescadores gaúchos, sem comprometer o capital político dos parlamentares daquele estado”. A íntegra das considerações da entidade pode ser lida neste documento.

Colônia de Pescadores Z3, em Pelotas (RS). Foto: Marcelo Curia

Plano insustentável

O Rio Grande do Sul não é o único estado da federação a proibir a pesca de arrasto em sua costa para proteger o meio ambiente e garantir a sustentabilidade da atividade. Uma lei que vetou a prática no Amapá também foi parar no STF, que, de forma unânime, autorizou o estado a legislar sobre uma área que inclusive excede o mar territorial, abrangendo 30 milhas desde a costa.

Em São Paulo, a restrição foi dada através da criação de três Áreas de Proteção Ambiental, que seguem, cada uma, regras próprias de manejo da pesca. Ao todo, dez estados brasileiros editaram normas locais para evitar que o arrasto acabe com a biodiversidade e os estoques pesqueiros.

Mas o plano de retomada da pesca de arrasto que a Secretaria de Aquicultura e Pesca elaborou, na esteira da liminar de Kassio Nunes Marques e com a promessa de tornar a atividade sustentável, volta seus olhos apenas para o Rio Grande do Sul — cuja área excluída aos barcos de arrasto representa apenas 0,78% dos 1,7 milhão de km² em que a atividade está permitida, segundo cálculos da Oceana.

“Não é um plano para pesca sustentável de arrasto industrial na costa do Brasil. São medidas para serem usadas lá naquele pedacinho de mar. No resto da costa, você pode continuar trabalhando do mesmo jeito. Ficou muito claro o oportunismo, ali se vê como foi uma política direcionada”, lamenta o diretor científico da Oceana, Martin Dias.

Mobilização de pescadores em defesa da Lei Estadual 15.223, que proíbe a pesca de arrasto até as 12 milhas da costa. Foto: Marcos Jatahy/Oceana

Além de mudar as regras apenas na costa gaúcha, a organização avaliou que as medidas elencadas pela pasta eram insuficientes para garantir a sustentabilidade. A maior falha é não estabelecer um volume de pesca razoável, capaz de garantir ao mesmo tempo rentabilidade à indústria e espaço para a recuperação da biodiversidade — um equilíbrio que é possível.

“A situação atual no Rio Grande do Sul é de sobre-exploração da pesca. As espécies estão sendo levadas a níveis que não geram os rendimentos máximos nem reposição sustentável. É um problema histórico”, observa Luís Gustavo Cardoso, pesquisador da Furg.

Uma das medidas de controle incluídas no plano repetia uma norma editada em 2004 que obriga barcos de arrasto a instalarem equipamentos de escape para tartarugas marinhas. Mas isso nunca foi fiscalizado, logo ninguém usa. Outra sugeria que barcos que usam duas redes de pesca fossem utilizados como teste para ver se uma malha mais aberta traria bons rendimentos sem aprisionar espécies ameaçadas: eles pescariam com a malha normal em um lado e a mais aberta em outro, comparando os resultados ao final da jornada. A fiscalização do cumprimento das novas regras ficaria a cargo da própria tripulação.

Sem meias-palavras, a Oceana taxou o plano de greenwashing. “A inclusão do termo ‘sustentável’ se trata, na realidade, de uma tentativa deliberada de mascarar impactos, incertezas e fragilidades na pesca e no ordenamento do arrasto”, acusa a instituição.

Por estas razões, a Justiça Federal entrou em campo. Acionada pelo governo do Rio Grande do Sul, deu razão ao argumento de que a medida colocava em risco o trabalho e a renda de pescadores locais e a biodiversidade.

“Em resumo, as portarias afrontam a própria lei federal, sem comprovar razões técnicas para sua adoção, mormente porque desconsiderados os interesses da comunidade diretamente afetada e diante da ausência de estudos especificamente voltados à efetiva e concreta sustentabilidade da biomassa e da biodiversidade marítima riograndense”, entendeu a juíza federal Clarides Rahmeier, que em abril de 2022 proibiu o retorno das embarcações catarinenses ao litoral do Rio Grande do Sul. Sua decisão foi validada em junho por um desembargador em segunda instância.

As liminares favoráveis renovaram o otimismo entre os pescadores. “A gente voltou a ver jovens ingressando na pesca, coisa que não se via mais e era motivo de preocupação”, relata Ana Spinelli, do Conselho Gaúcho de Aquicultura e Pesca Sustentável.

Na colônia Z3 de pescadores artesanais, em Pelotas, Nadir Lirman Vargas aproveita o período de defeso, em que as redes ficam guardadas para recuperação da fauna da Lagoa dos Patos, para reformar seu barco. Vai aumentar a capacidade do porão de 4 mil quilos para quase seis. “Faz uns anos eu desisti de ser pescador, vendi barco e tudo. Mas agora, a gente vê a melhora”, admite.

“Enquanto está proibido, nós estamos vivendo. Mas é só deixar o arrasto trabalhar de novo que acaba com tudo em seis meses”, sentencia o armador de pesca João Gonçalves. “Daí meus netos não vão ver peixe”, conclui.

Imagem do banner: Porto de pesca em Rio Grande (RS). Foto: Marcelo Curia

Exit mobile version