Esculpido em madeira e retinto como o breu, o santo que concede fertilidade à terra, aos animais e às mulheres é cultuado todos os anos na Baixada Maranhense, no território do povo Akroá Gamella.
O ritual, que sincretiza elementos do catolicismo, dura quatro dias e tem como ápice uma caminhada de indígenas personificados como cães de caça em busca de comida e bebida para oferecer a São Bilibeu.
Antes celebrado durante o Carnaval, o ritual hoje ocorre no dia 30 de abril, data que marca o ataque desferido contra os Akroá Gamella em 2017 por parte de fazendeiros em disputa de terras.
Ele se chama Bilibeu. Ou São Bilibeu, ou ainda Bilibreu. Esculpido em madeira e retinto como o breu, o santo que concede fertilidade à terra, aos animais e às mulheres é cultuado todos os anos na Baixada Maranhense, entre as cidades de Viana, Matinha e Penalva, no território do povo Akroá Gamella. “Bilibeu vive nas matas, nos igarapés, no céu e entre nós”, conta a pajé Maria Roxa Akroá Gamella.
O ritual, que sincretiza elementos do catolicismo, dura quatro dias e tem como ápice uma corrida que este ano durou 12 horas consecutivas. A ideia é percorrer todas as aldeias do território e fazer jus à máxima dos Akroá Gamella que diz “nossas escrituras são os nossos pés”, numa clara afirmação de que a invasão das terras tradicionais, que ocorreu principalmente entre as décadas de 1960 e 1980, não descaracterizam a posse imemorial indígena. “Os antigos faziam assim. Caminhavam anualmente para visitar os quatro pontos do território”, conta Borges Akroá Gamella.
Considerados extintos pelo Estado brasileiro, os Akroá Gamella foram por décadas chamados de “caboclos”. Com a identidade (e a cultura, consequentemente) censurada, os indígenas mantiveram em segredo o culto às entidades espirituais que dizem habitar o território. Bilibeu, entretanto, não precisou ser escondido: permaneceu público porque foi inserido dentro das comemorações do Carnaval. “Ele sobreviveu porque esse é um período em que tudo pode”, explica Domingos Akroá Gamella, um dos responsáveis por rezar a novena do santo.
Bilibeu, portanto, sempre pôde existir e sair às ruas no festejo no qual dezenas de crianças e adultos pintados de carvão marcham incorporando os “cachorros de Bilibeu” que, de casa em casa, de aldeia em aldeia, saem em caça. A matilha de cachorros e cachorras, sob orientação do cachorro-mestre, do gato-maracajá e da onça buscam comida e bebida para oferecer ao santo, que em um determinando momento do ritual morre, é enterrado sob o choro de mulheres, e renasce na manhã seguinte para continuar dando fartura e fertilidade ao povo Akroá Gamella. “Eu corro como cachorro de Bilibreu desde os 12 anos”, conta Pyn Capric Akroá Gamella, hoje com 24 anos.
Uma das principais graças concedidas por Bilibeu é fecundar mulheres. Por debaixo das roupas, Bilibeu tem um falo. Quando mulheres engravidam, Bilibeu é o pai. E nos rituais subsequentes aos nascimentos, mãe e filho agradecem. Isto é, pagam suas promessas. A mãe amamenta Bilibeu com o leite de seus seios, tal como prometido, e os filhos, quando crescem suficientemente, tornam-se cachorros, formando parte da matilha. São os cachorros de Bilibeu, os filhos de Bilibeu. É a necessidade de continuar vivendo (e nascendo) que mantém o ritual vivo ano após ano desde tempos imemoriais.
O ritual teve passabilidade carnavalesca, mas foi também marcado pela estranheza dos que o veem de fora. Sobreviveu no limiar entre a brincadeira e o bizarro, pois no dia da caça os cachorros sublimam a humanidade e se permitem comer carne fresca aos olhos de todos. As galinhas ofertadas ao santo são estraçalhadas numa briga violenta de indígenas personificados como cães. E o cachorro vencedor corre, carregando na boca, a cabeça da ave que conquistou. Bilibeu se alimenta, através dos seus cães, de porcos, aves, cachaça e o que mais o dono das casas, nas quais a matilha passa, oferta. Na corrida, o presente de Bilibeu é jogado aos ares ou enterrado para que os cachorros, com suas patas, encontrem.
“Eles são mesmo índios?”
Se antes Bilibeu era celebrado no Carnaval, hoje o povo Akroá Gamella escolheu outra data para o ritual. O dia 30 de abril é, desde de 2018, a data em que a corrida acontece, marcando um evento de muita dor, tristeza e revolta. Foi nesse dia, no ano de 2017, que dois Akroá Gamella foram decepados e outras duas dezenas deles ficaram feridos em um embate desproporcional contra fazendeiros e pretensos donos de terras da região. “Eles quiseram transformar em um dia de luto, nós transformamos em um dia de luta”, afirma Kum’tum Akroá Gamella.
O massacre — ou ataque, como os Akroá Gamella o denominam — aconteceu no final do dia 30 de abril de 2017. “São 17h, foi mais ou menos nesse horário que nós fomos atacados há exatos cinco anos.”, discursa Kum’tum Akroá Gamella em uma das paradas que os cachorros fizeram durante a caça. “A corrida de hoje é fundamental para a juventude passar a conhecer os caminhos. A gente só luta por aquilo que a gente conhece”, afirma ele aos jovens que estão ali.
Em 2017, fazia três anos que os Akroá Gamella tinham se autodeclarado publicamente como indígenas, e àquela altura já haviam retomado cerca de uma dezena de terras – o que começava a gerar reações por parte dos pretensos proprietários de terra, grupos políticos anti-indígenas e líderes religiosos locais. Os “contra”, como eles chamam seus adversários políticos, estavam começando a se organizar para responder às retomadas Akroá Gamella.
Segundo os indígenas, a igrejas evangélicas foram locais de articulação para o ataque, onde líderes religiosos pediam dinheiro ou armas para responder às retomadas de terra. “O . S. [líder evangélico] saía nas igrejas pedindo dinheiro ou arma. Se [a pessoa] não tivesse 300 reais, poderia doar uma arma”, conta um Akroá Gamella que prefere não se identificar e não dar o nome completo das pessoas envolvidas por medo de retaliações.
Um dia antes do ataque, o deputado federal Aloísio Mendes, hoje do partido evangélico PSC (Partido Social Cristão), e os mesmos líderes religiosos locais deram uma entrevista a uma rádio local convocando a população para um protesto: a Manifestação pela Paz. Durante o ato, no palanque, o mesmo deputado incitava a população contra os indígenas. Em um dos poucos trechos disponíveis na internet, se vê o deputado afirmando que “ninguém aqui tem sangue de barata, ninguém vai mais aceitar essa provocação”. Era uma profecia sobre o que viria a acontecer horas depois.
“Foi um momento difícil, não gosto muito de lembrar, não. ”, conta Zé Canário Akroá Gamella, que perdeu totalmente o movimento de uma das mãos por conta dos cortes de facão desferidos contra ele. “Eu peguei um tiro nas costas, foi cortado o braço, a perna. Uma cirurgia na boca e na cabeça. Espancamento eu não tive quantia”, relembra Aldeli Akroá Gamella, que também teve os membros decepados.
Por sua brutalidade, o episódio atraiu a atenção da imprensa do mundo inteiro. A emergência étnica dos Akroá Gamella estava sendo colocada em xeque pela maior parte da imprensa local, por parte da sociedade envolvente e por agentes do Estado. A pergunta “Eles são mesmo índios?” ecoava por detrás da veiculação da notícia do dia 30. E os agentes do Estado reforçavam a dúvida utilizando termos como “supostos indígenas” e “pseudoindígenas” para se referir a eles. E “supostas terras indígenas” para se referir às terras que eles estavam reivindicando como suas.
Encantaria
Muitos Akroá Gamella foram evangélicos. Mas, quando se autodeclararam como indígenas, tiveram que optar entre a comunidade evangélica ou a identidade do povo. Alguns optaram pela primeira, outros pela segunda. “Aí, eu declarei que eu sou índio do povo Akroá Gamella. Quando eu cheguei pintado, eles ficaram logo desconfiados, dizendo que isso não era coisa de crente, era coisa de demônio”, conta outro Akroá Gamella, que prefere não se identificar.
Bilibeu não é o único Encantado do povo Akroá Gamella. Pelo contrário, o território é repleto de entidades espirituais. A própria ação de retomada das terras tradicionais em 30 de abril de 2017 tinha o intuito de resgatar um lugar sagrado, o Fragato, onde segundo os indígenas vive uma Mãe d’Água que corria o risco de morrer em meio à desertificação causada pela fazenda sobreposta ao território.
Bilibeu, entretanto, é o mais icônico dos Encantados. Seu ritual foi mantido com riqueza de detalhes durante décadas, mesmo em meio ao período de suposta extinção da população indígena. “Belibeu não está aqui, nem está ali”, afirma Pjhcre Akroá Gamella. “Pergunta baixinho no ouvido de Bilibeu onde ele vive que ele vai te responder”, provoca ela, deixando em aberto perguntas sobre um ritual que, depois do processo de autodeclaração pública, está sendo resignificado para ocupar lugar de destaque dentre as manifestações sagradas do seu povo.
Imagem do banner: “Cachorro” de Bilibeu com máscara feita de pindoba. Foto: Ana Mendes